Anacolutos

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Por FLÁVIO R. KOTHE*

De Dante a Danton e Danto

O anacoluto é uma figura de linguagem em que há uma quebra no discurso, um salto sintático, em que há como que uma desconexão no que está sendo dito. Ele não diz que está fazendo isso. Apenas faz. Esse gap pode estar dentro de uma oração complexa, mas também dentro do discurso, quando há como que um parênteses no sentido. Há, porém, outro tipo de “gap”: ele pode ocorrer entre o significado das palavras e aquilo a que elas se referem. Há uma desconexão, mas fazendo de conta que ela não existe.

Quando um sujeito mente descaradamente, ele quer que se assuma como verdadeiro aquilo que diz. Num primeiro momento, ele pode ser o único que talvez saiba não ser verdade o dito, mas em geral ele já acredita na própria mentira. O receptor do discurso tem a dupla tarefa de entender o que é dito e entender por que foi dito e decifrar o que não é dito, para daí traduzir o dito no que deveria ter sido e não foi.

Espera-se que um título seja um resumo do texto: a chave que o abre e resolve. Como a manchete do jornal. Na era do jornal eletrônico, da dita grande imprensa e de seus afluentes marginais, o leitor matutino de celular tende a percorrer manchetes para descartar o que não precisa ler, pois já está resolvido no título. Resta pouco.

Fabricam-se então títulos chamativos, que prometem o que depois não se cumpre, como se fossem armadilhas para atrair e prender o leitor. Como o que se diz no título e no texto tem a ver pouco com os fatos e muito mais com a postura dos donos da mídia, há um tipo pior de anacoluto: o que esconde os fatos sob qualificativos.

Não importa o país e a língua da mídia, desde que pertença ao Otanistão e não seja um grupo alternativo, o Hamas será sempre terrorista, seus aliados também, Benjamin Netanyahu não será qualificado como genocida nem criminoso, mas Vladimir Putin e Nicolás Maduro serão ditadores e condenados, enquanto o presidente americano será um democrata de olhar puro, não um belicista, genocida, imperialista.

Parece então que aquilo que se aponta no título, na manchete do jornal, esqueceu de estabelecer a ponte com os próprios fatos. É uma espécie de anacoluto absoluto, que a retórica clássica esqueceu de registrar. Ele não só suspende um tema por algum tempo com a introdução de outros, mas esquece de retornar a ele. Esse anacoluto sem ponte faz de conta que não é um anacoluto porque estaria dizendo como as coisas são de fato. Quanto menos perto estiver, mais vezes é repetido, ecoado por órgãos análogos em línguas e veículos diversos.

Quando eu era estudante de graduação, um líder estudantil judeu rico e de esquerda causou espécie ao definir Israel como “braço armado dos Estados Unidos”. A revolta veio principalmente da forte colônia judaica de Porto Alegre, como se ele tivesse feito uma traição à causa (essa acusação foi, aliás, dita publicamente). O que nenhum desses dois lados discutiu era se a relação entre Israel e Estados Unidos era a do rabo com o cachorro, pois, pelo tamanho, parecia evidente que Israel seria o rabo.

Assim se evitava o tema do sionismo que marca a política e a mídia americana. Com os eventos dos últimos meses, parece que Israel é o cão, sendo os Estados Unidos apenas o rabo que abana aprovação (e fornece armas). Um gói não pode falar sobre isso como se fosse tema pautável. Hoje, parece que só um judeu pode fazer críticas ao racismo sionista.

Sugere-se, assim, que se ponha como título o que pouco tem a ver com o texto, como se fosse um anacoluto, esquecido pelo caminho, negando-se como inserção por não ter continuidade. É uma forma mais radical de dissolução: o que se diz e o que são os fatos sofre uma disjunção, como se fossem termos sem diálogo, embora pareçam unos. Basta esquecer testemunhos já não registrados.

Isso tudo, em que a mente crítica está banida e sufocada, não é nada novo. De certo modo, sempre foi assim. No Antigo Testamento, por exemplo, basta Josué pedir a Jeová que o Sol fica parado no céu, para que os judeus tivessem tempo de acabar com os “inimigos” (moradores locais, atacados pelas tropas judaicas sob comando egípcio para tomar “A terra prometida”). Na pintura italiana do renascimento, anjos aparecem na prisão para libertar Pedro, como se isso tivesse sido um fato, ocorrido literalmente como pintado.

Das artes, a mais importante é a literatura, pois ela abrange textos ditos “sagrados” que determinam a visão de mundo e as forças políticas vigentes nos crentes. Nos cursos de Letras brasileiros não se estudam textos sagrados. Quando me pus em aula a examinar a estrutura da história de José e seus irmãos, dava para perceber o mal-estar pairando no ar, tão denso que dava para cortar com uma faca. Quando eu colocava a questão de saber se um quadro renascentista de um pintor famoso perdia qualidade por não ser verdadeiro, o escândalo se tornava ainda maior.

A linguagem pretende ser ponto de união e encontro, diálogo de quem pretende cultivar a arte literária. Cada qual responde pelo que escreve e publica. Em revistas eletrônicas, a editoria em geral nada corta nem acrescenta. Apenas ajusta parâmetros formais. Não é assim, porém, na grande mídia: tudo passa por filtros, o engodo começa nos títulos, passa pelos qualificativos e não termina no ponto final do artigo, pois fica pairando no ar uma disjunção entre fatos e aquilo que deles foi narrado.

Essa linguagem apenas reitera o mesmo, nada acrescenta. Reforça, porém, a fé no mesmo. Como o celebrante do ofício divino que espera o responsório dos hosanas nas alturas e améns. Assim, todos se enganam, achando que estão no caminho da salvação. Quem tenha a pretensão de exercer a razão crítica é expulso em nome da fé, da verdade absoluta. A grande mídia do Otanistão reza como missa e abdica da razão.

Para não perder o anacoluto: Dante é obviamente o autor da Divina Comédia, cuja melhor parte é o Inferno, cheio de fofocas sobre papas, mas que, ao ficar preso a uma visão católica de mundo, recoloca a questão de como avaliar obras em cujos pressupostos não mais se crê. Danton foi líder da Revolução Francesa, quis que a política fosse sensata, mas acabou perdendo a cabeça na guilhotina. Danto é um teórico novaiorquino falecido há poucos anos e seguido por muitos professores de estética: sua tese básica, inversão da tese de Hípias de que belo seria o ouro, é que a obra vai ser tanto mais contemporânea quanto mais for lixo reciclado, mas não queria dizer com isso que o nosso mundo só produz lixo.

A associação dos três nomes próprios é imprópria, mas brinca com a noção de Jakobson de que poesia é a projeção do princípio de equivalência do eixo paradigmático sobre o eixo sintagmático (o que define um dicionário, não o poético, embora seja um recurso bastante usado em sua linguagem).

*Flávio R. Kothe é professor titular aposentado de estética na Universidade de Brasília (UnB). Autor, entre outros livros, de Alegoria, aura e fetiche (Editora Cajuína). [https://amzn.to/4bw2sGc]


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