Por MICHAEL MOORE*
O cineasta lembra da invasão ao Vietnã e na necessidade de os norte-americanos pedirem perdão por essa guerra genocida e outras promovidas ou apoiadas pelos americanos como a do genocídio contra os palestinos

1.
Há cinquenta anos, em 30 de abril de 1975, o Vietnã derrotou os Estados Unidos da América.[i]
Chamamos esta guerra de “Guerra do Vietnã”. Mas os vietnamitas a chamam, com mais precisão, de “Guerra Americana”. Porque foram os americanos que invadiram o Vietnã onze anos antes para matar e dominar seu povo.
Nesses 11 anos, massacramos dois milhões de vietnamitas e talvez outros dois milhões de pessoas no sudeste asiático, no Camboja, no Laos e além. Em torno de quatro milhões de seres humanos assassinados pelos Estados Unidos! (Contextualizando, isso equivale a cerca de dois terços do número de judeus mortos pelos alemães no Holocausto durante a Segunda Guerra Mundial).
Diferentemente dos alemães, nós, coletivamente, como nação, nunca pagamos por esses crimes contra a humanidade. Nunca admitimos nossa culpa nesse genocídio, nunca nos desculpamos, nunca demonstramos um pingo de remorso, nunca fizemos reparações (e não, não considero as fábricas da Nike como reparação).
E continuamos nossa política de invasão, financiamento e armamento de genocídios até hoje. Financiamos e armamos os massacres na América Central até os anos 1980. Armamos os iraquianos em sua guerra contra o Irã. Depois, passamos mais de duas décadas bombardeando e, por fim, invadindo o Iraque e massacrando o seu povo – enquanto também perdíamos uma guerra de duas décadas no Afeganistão.
Não contamos a nossos filhos, nem ensinamos a nossos alunos, a verdade real sobre as atrocidades que cometemos, desde o primeiro genocídio em massa dos povos nativos das Américas, realizado por nossos ancestrais europeus brancos e cristãos, até os bilhões de dólares de nossos impostos e toneladas de bombas americanas, além de caças de guerra e outras armas de destruição em massa, entregues ao regime de Benjamin Netanyahu em Israel para massacrar dezenas de milhares de civis palestinos.
E, para os dois milhões de palestinos que ainda sobrevivem em Gaza, agora apoiamos um plano horrível de matá-los de fome, com suas casas quase totalmente reduzidas a escombros (92% de Gaza foi destruída, segundo a ONU), sem acesso a água potável ou remédios, e quase todos os hospitais, escolas e universidades bombardeados até virar pó. Levará anos para descobrir, sob os escombros, o número real de mortos. E isso sem contar os ataques diários aos mais de três milhões de palestinos na Cisjordânia ocupada.
Nós, cidadãos americanos, você e eu, somos os financiadores de todo esse sofrimento. Joe Biden bancou isso. E isso custou a ele e a Kamala Harris a eleição. Quase um terço – 29% – dos milhões que votaram em Joe Biden em 2020, mas não votaram em Kamala Harris em 2024, citaram como principal razão o apoio e financiamento do governo Biden/Harris à guerra em Gaza (percentual maior do que os que citaram a economia ou a imigração como motivo principal).
A mídia não vai relatar dessa forma (“É a inflação de alimentos!”, dirão),[ii] assim como nenhuma mídia hoje, neste 50º aniversário, dirá a simples verdade: nós, os poderosos Estados Unidos da América, fomos derrotados no Vietnã por um dos países mais pobres da Terra, um país que não possuía um único porta-aviões, nenhum destroier, nenhum bombardeiro estilo B-52 – nem mesmo um maldito helicóptero de ataque!
Eles não tinham divisões de tanques, nem um único barril de napalm, nenhum veículo de assalto anfíbio, nem mesmo um jipe militar precário que não fosse uma cópia soviética de lata com talvez três rodas. Eles não tinham nada além da vontade de seu povo de se libertar dos americanos, os autoproclamados “amantes da liberdade”.
2.
Eles derrotaram uma superpotência militar – e enviaram 60.000 de nossos jovens para casa em caixões de madeira (nove deles da minha escola, dois da minha rua) e centenas de milhares que voltaram sem braços, pernas, olhos ou a capacidade mental de viver plenamente, para sempre afetados, suas almas destruídas, seus pesadelos intermináveis.
Todos eles arruinados por uma mentira que seu próprio governo lhes contou sobre o Vietnã do Norte “nos atacar” – e pelos milhões de americanos que acreditaram nessa mentira. O último 5 de novembro mostrou como ainda é fácil para um presidente americano, um homem que mente a todo momento, fazer milhões de seus concidadãos acreditarem em mentiras.
É por isso que precisamos fazer deste dia, 30 de abril, um feriado nacional. Geralmente, feriados nacionais são usados para celebrar vitórias e comemorar triunfos, como a assinatura da Declaração de Independência ou o acontecimento histórico de “salvar todos os índios da fome durante o inverno” (não é verdade), ou seja lá o que o Dia de Ação de Graças (Thanksgiving) signifique. Então, por que criaríamos um feriado para comemorar nossa derrota no Vietnã?
Acredito que precisamos fazer isso por nossos filhos, por nossos netos, pelo bem do nosso futuro – se ainda houver um para nós. Devemos dedicar um único dia por ano a um dia nacional de reflexão, memória e verdade, onde, juntos, buscaremos ativamente o perdão, faremos reparações e aprofundaremos nossa compreensão sobre como isso aconteceu e como é fácil para os ricos, as elites políticas e a mídia apoiarem tal horror – e depois convencer a maioria do país a concordar com isso… pelo menos no início. E como, logo depois que acaba, decidimos que nunca mais precisamos falar sobre isso. Que não podemos aprender nada com isso e não mudar nada depois.
A melhor maneira de honrar as perdas dessa guerra trágica é nos comprometermos a nunca repeti-la – e isso precisa começar com a percepção de que estamos fazendo isso de novo agora. Cada bomba que enviamos a Benjamin Netanyahu é a prova de que não aprendemos nada.
Encorajo todos vocês – quer já tenham visto ou nunca tenham visto – a assistir ao documentário vencedor do Oscar, Corações e Mentes (Hearts & Minds), de Peter Davis. É o filme não ficcional mais poderoso que já vi. Pode ser acessado em várias plataformas de streaming e também noYoutube.
Aqui está um trecho do filme, com Daniel Ellsberg, que revelou o verdadeiro alcance da guerra ao vazar os Pentagon Papers para o New York Times, mostrando como o governo dos EUA mentia sobre a guerra: Daniel Ellsberg: “A pergunta costumava ser: ‘Seria possível que estivéssemos do lado errado na Guerra do Vietnã?’ Mas não estávamos do lado errado. Nós somos o lado errado”.[iii]
E fomos o lado errado novamente no Iraque. No Afeganistão. Em Gaza. Como chegamos aqui? Chegamos aqui porque sempre estivemos aqui. Essa história teve início em 1492 e não parou mais.
Lembrem-se disso.
Ensinem a nossas filhas e a nossos filhos essa verdade sobre nós. Sobre nossa história. Deem a eles esse conhecimento e, com ele, a oportunidade de mudarmos e fazermos escolhas diferentes para nosso futuro. De sermos um povo diferente. Um povo pacífico. Os alemães fizeram isso. Os japoneses também.
Hoje é um dia trágico e solene. E deveria ser um feriado nacional.
Michael Moore é documentarista e escritor. Dirigiu, entre outros, filmes Bowling for Columbine
Tradução: Sérgio Braga.
Publicado originalmente na newsletter do autor.
Notas do tradutor
[i] A foto que ilustra esta matéria foi tirada pelo fotógrafo japonês Kyoichi Sawada (da United Press International), e intitula-se “Soldados Americanos Arrastando VietCong”. A foto ganhou o prêmio World Press Photo of the Year e foi indicada ao Prêmio Pulitzer de fotografia de 1966. Sawada foi assassinado em combate no Cambodja em 1970.
[ii] No original: (“It’s the price of eggs!”). Nesse parágrafo, Moore também faz referência aos surveys publicados pelo instituto Yougov e divulgados pelo Instituto de Políticas Públicas para o Entendimento no Oriente Médio em janeiro de 2025. Link: https://www.imeupolicyproject.org/postelection-polling.
[iii] Como esclarecido por Moore, trata-se de um trecho da fala do ativista e dissidente norte-americano, Daniel Ellsberg, recentemente falecido, inserida no filme Corações e Mentes, que ganhou diversos prêmios de melhor documentário no ano de 1974. Diversas versões do documentário estão disponíveis no Youtube. Sobre Daniel Ellsberg consultar o informativo verbete no Wikipedia: https://pt.wikipedia.org/wiki/Daniel_Ellsberg
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