Carlos Sandroni (1958-2025)

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Carlos Sandroni (1958-2025)

Por MARIA ACSELRAD*

Carlos Sandroni nos ensinou que a música é um laço: tocar junto, na mesma pisada, vale mais do que qualquer nota perfeita. Seguiremos pulsando no ritmo que ele ajudou a compor

Queima da Cansanção, Aldeia Brejo dos Padres, Território Pankararu, 2003 Foto: Maria Acselrad

1.

Não estava nos planos escrever sobre ele, mas com ele. A vida, no entanto, tem suas reviravoltas. Conheço Carlos Sandroni há mais de vinte e cinco anos. Nosso primeiro contato se deu, em 2000, quando cheguei no Recife para fazer meu trabalho de campo de mestrado, sobre a brincadeira do cavalo-marinho da zona da mata norte de Pernambuco. Naquela época eu ainda não estava instalada na cidade, mas isso foi só uma questão de tempo.

Carlos Sandroni, assim como eu, resolveu fazer a piracema, nadando ao contrário do fluxo que historicamente liga a região nordeste à região sudeste. Se distanciando da família, dos amigos, da cidade onde cresceu para se dedicar aquilo que, talvez seja o que há de mais pulsante na cultura brasileira, sua música.

No final da década de noventa, ele se mudou para Recife, para atuar como professor do Departamento de Música da UFPE. De início como visitante, depois como efetivo. Aqui, ele criou o Núcleo de Etnomusicologia (NETMUS) e a Associação Respeita Januário/ARJ,[i] dos quais eu vim a fazer parte. Ambos dedicados ao registro e à valorização das músicas de tradição oral, numa época em que as políticas públicas de cultura inexistiam. Naquele tempo, realizávamos ações de registro e memória, como gravações em terreiros de candomblé, coco e jurema, e oficinas com mestres de cavalo-marinho, reisado, marujada, caboclinho e maracatu, tudo praticamente de forma independente.

Nos anos que se seguiram, Carlos Sandroni que já era uma referência no campo da etnomusicologia, passou a assumir um papel importante ao coordenar inventários junto ao que ficou conhecido como patrimônio imaterial, levando ao reconhecimento do IPHAN expressões da cultura popular, como o samba de roda do recôncavo baiano e as matrizes tradicionais do forró, contribuindo assim com um movimento que a gestão pública, finalmente, se comprometia em consolidar.

Me refiro aos anos 2003-2006, durante o primeiro Governo Lula, quando uma discussão sobre patrimônio ganhou expressiva repercussão na América Latina e, especialmente, no Brasil, a partir da publicação da Convenção para a Salvaguarda do Patrimônio Cultural Imaterial da Unesco, em 2003. Com o objetivo de promover a proteção do patrimônio cultural, que agora incluía sua dimensão imaterial, passavam a ser garantidos o respeito à diversidade das manifestações culturais das comunidades, grupos e indivíduos, através do reconhecimento, valorização e salvaguarda de suas formas de expressão, celebrações, saberes, ofícios e modos de fazer.

2.

Muito antes disso, Carlos Sandroni já ocupava um lugar de liderança e mobilização. Participou da fundação da Associação Brasileira de Etnomusicologia (ABET), durante o encontro do International Council for Traditional Music (ICTM), realizado no Rio de Janeiro, em 2001. Para logo em seguida, coordenar a realização do 1º Encontro da ABET, já em Recife, em 2002, evento que reuniu gerações de etnomusicólogos em torno dos grandes temas da área.

Guardo num lugar especial da memória a ida dos participantes deste encontro, tais como Anthony Seeger, Kazadi wa Mukuna, Elizabeth Travassos, Gerard Béhague, Samuel Araújo, Flávia Toni, entre tantos outros à casa de Arlindo dos Oito Baixos, no bairro de Dois Unidos, periferia do Recife, onde o forró costumava esquentar o salão até altas horas.

Mais recentemente, o XVI International for the Study of Popular Music (IASPM), em 2024, em Recife, também contou com a maestria de sua coordenação, sempre unindo grandes debates teóricos às interações com a música popular e tradicional local. Foi nesta ocasião em que o público participante do evento foi ao delírio, no Cais do Sertão, com Maciel Salu e a Orquestra Experimental de Frevo da UFPE. Nos eventos coordenados por Carlos Sandroni a música nunca se resumia ao coffee break.

Carlos Sandroni também orientou diversos alunos na graduação e no mestrado em Música, projeto pelo qual ele batalhou durante décadas, na UFPE. Antes disso, o que havia era a Pós-graduação em Etnomusicologia, uma especialização lato sensu criada por ele, junto a alguns colegas do departamento de música, e onde fui sua orientanda. Mesmo depois de já ter feito um mestrado e ainda com um doutorado apontando no horizonte, ali encontrei um ambiente fértil, criativo e comprometido com o conhecimento e com a sociedade. Mais propriamente com o que viria a ser meu principal campo de atuação, as culturas populares e tradicionais do estado de Pernambuco.

Foi quando estudei as rodas, as pareias e os torés pankararu, através dos praiás, suas máscaras rituais de dança – uma brecha aberta por Carlos Sandroni, de forma tão generosa e agregadora, a contrapelo das segmentações departamentais do mundo e da academia.

Roda, Aldeia Brejo dos Padres, Pankararu 2003 foto: Maria Acselrad

3.

Estávamos de acordo que os estudos da dança e da música precisavam andar de mãos dadas. Graças ao projeto Responde a roda, outra vez, disco que celebrou os 65 anos da Missão de Pesquisas Folclóricas (MPF), idealizada por Mario de Andrade, em 1938, cheguei ao território pankararu, no sertão do Moxotó, entre Tacaratu, Jatobá e Itaparica. Publicamos um artigo juntos intitulado “Torés pankararu ontem e hoje”, no livro Regime Encantado do Índio do Nordeste, organizado por Rodrigo Grünewald (Massangana, 2005).

São Gonçalo de Santa Brígida, Bahia, 2003. Foto: Maria Acselrad
Reisado, Aldeia Bem Querer, Pankararu 2003. Foto: Maria Acselrad.

Graças a este projeto, passei mais de dez anos frequentando a região, acompanhando os demais projetos que dali se desdobraram, seja em Tacaratu ou em Arcoverde, agora junto aos pesquisadores locais, ligados às bandas de pífano e aos reisados da região.

Porque Carlos Sandroni faz parte de uma geração de pesquisadores que além de querer “mostrar o Brasil aos brasileiros” na melhor tradição marioandradina (CARLINI, 1994), tem como propósito desenvolver pesquisas colaborativas, participativas e, também reparadoras, junto aos integrantes das tradições populares (SANDRONI, 2014).

Buscando retribuir, devolvendo e disponibilizando a produção resultante das pesquisas aos seus detentores, ali se dava não apenas uma parte importante da pesquisa no sentido ético, mas também no sentido epistêmico. Lembro-me de sua euforia ao localizar Dona Senhorinha, que aos vinte anos havia sido gravada pela MPF cantando em Tacaratu, e que só muitas décadas mais tarde teve acesso ao registro de sua própria voz, aos oitenta e cinco anos já em Recife. Ou ainda Seu Domingos Cunha que ao escutar o pai, Raimundo Cunha, cantando numa das gravações feitas pela Missão, se lançou imediatamente numa eloquente dança em meio ao salão de sua casa.[ii]

4.

Poderia seguir enumerando as tantas iniciativas que desenvolvemos junto aos nossos colegas da ARJ através de projetos como o Conversas com a Cultura Viva,[iii] que apoiou mestres e mestras durante a pandemia, ou ainda aqueles que estávamos batalhando para realizar como a criação, junto à Rede de Articulação entre Pernambuco e Alagoas, do Encontro de Mestres, disciplina que busca contribuir para o combate ao racismo através da descolonização das práticas pedagógicas da universidade, conferindo protagonismo aos mestres e mestras das culturas populares e tradicionais.

Nos últimos anos, começamos a compartilhar perdas como a de Roberto Benjamin, da Comissão Pernambucana de Folclore, a do etnomusicólogo John Murphy, primeiro estudioso de cavalo-marinho, a de Biu Roque e Luiz Paixão, liderança e rabequeiro do Cavalo-Marinho Boi Brasileiro, respectivamente, a de Dona Juracy Simões, liderança da Tribo Canindé do Recife, a de Seu Nelson Ferreira, mestre do Caboclinho União Sete Flexas de Goiana e a de Biu Alexandre, mestre do Cavalo-Marinho Estrela de Ouro de Condado.

Nas horas de estrada que passamos a dividir para nos despedir dessas pessoas que foram tão importantes em nossas vidas, ele me contou que estava se preparando para retornar ao Rio de Janeiro, pois havia conseguido uma transferência para a UFRJ, o que permitiria a ele estar mais próximo de seus familiares. Ali eu me dei conta de como Carlos Sandroni foi importante para mim, de como ele faria falta em Recife, dos tantos momentos da vida em que esteve por perto, do nascimento do meu filho ao lançamento dos meus livros, das gravações de campo aos grupos de estudo, do projeto de doutorado às articulações acadêmicas, das viradas de noite em sambadas pela mata norte.

Carlos Sandroni foi parceiro de muitas jornadas. E de muitos sonhos também. Sonhávamos com um país que se escuta. Porque escutar é uma forma de compreender (NANCY, 2002). Dizem que a audição é o sentido da interioridade. E, também da profundidade (LE BRETON, 2016). Eu acrescentaria que a audição é o sentido da alteridade. Permite aproximar o que está distante. Na música encontramos um reflexo do mundo, um campo de disputas, com todas as suas contradições. Mas a música é também reflexão sobre o mundo, projeto de futuro, conexão, lugar de encontro. Tocando, escutando ou dançando.

5.

Agora, enquanto busco palavras para traduzir a experiência que significa perder Carlos Sandroni, me pergunto sobre o que é, afinal a morte, senão uma longa viagem. Carlos Sandroni viajou para o Rio de Janeiro, e lá eu ainda pude visitá-lo, este ano. Como já me faltavam palavras, cantarolei para ele o chorinho “Eu quero é sossego”, de K-Ximbinho. No ano passado criamos um grupo de estudos de choro com amigos em comum e esta era uma das preferidas do nosso repertório.

Na homenagem organizada para ele, por amigos, colegas e alunos, aqui em Recife, no dia 21 de agosto deste ano, ele ficou muito comovido, mesmo à distância, de ver tanta gente ali reunida, ou através de depoimentos enviados por vídeo, de tantas partes diferentes do mundo, compartilhando experiências e memórias.

Durante o evento, ele nos enviou uma mensagem, que sua irmã Clara, também ali presente, me pediu para amplificar, lendo ao microfone. Carlos Sandroni dizia assim: “Boa tarde, gente. É uma satisfação receber notícias desse evento. Me faz pensar que algumas coisas que eu fiz, que eu falei foram bem recebidas, bem interpretadas. O que é uma alegria grande. Então, vamos lá, bola frente, abração, felicidades”. Este era Carlos Sandroni. Humilde, amoroso, delicado. Que mesmo diante das dificuldades nunca perdia a esperança e o bom humor.   

Se é verdade que todas as viagens são de ida, como costumo pensar, fico imaginando que Carlos Sandroni segue sua viagem por entre as ondas sonoras dos sambas e dos choros, dos maxixes e lundus, dos cocos e dos forrós, dos frevos, dos cavalos-marinhos, reisados, caboclinhos e maracatus. Quem sabe, talvez possamos encontrá-lo na escuta dessas músicas de que ele tanto gostava.

Tocadores de pífano, Aldeia Brejo dos Padres, Pankararu 2003. Foto: Maria Acselrad.

Gostaria de terminar minha homenagem a este mestre, amigo e irmão, lembrando de um artigo que Carlos Sandroni escreveu sobre o processo de ensino e aprendizado nas tradições populares, onde ele identificou a primazia do tocar junto sobre o tocar bem.

Sabemos que nestes ambientes, o aprendizado se dá a partir da observação, da persistência, da insistência, da repetição, mas algo para o qual eu nunca tinha atentado é que ali o que se procura valorizar é estar no mesmo ritmo, na mesma pisada. Mais do que acertar a nota ou o tom, esse é o primeiro passo para se tocar bem. Pois é, Carlos Sandroni. Seguiremos por aqui, pulsando juntos.

*Maria Acselrad é professora do Curso de licenciatura em Dança do Departamento de Artes da Universidade Federal do Pernambuco (UFPE), Autora, entre outros livros, de Avança Caboclo! A dança contra o Estado dos caboclinhos de Pernambuco (EdUFPE).

Referências


CARLINI, Álvaro. Cante lá, que gravam cá: Mário de Andrade e a Missão de Pesquisas Folclóricas de 1938. (Dissertação de Mestrado) São Paulo: Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, 1994.

LE BRETON, David. Antropologia dos Sentidos, Petrópolis/RJ: Vozes, 2016.

NANCY, Jean-Luc. À l’écoute, Éditions Galilée, Paris, 2002.

SANDRONI, Carlos. O acervo da Missão de Pesquisas Folclóricas, 1938-2012. DEBATES – Cadernos Do Programa De Pós-Graduação Em Música, (12), 2014. Recuperado de https://seer.unirio.br/revistadebates/article/view/3863.

SANDRONI, Carlos; VILAR, Gustavo, ACSELRAD; Maria. Torés pankararu: ontem e hoje In: GRÜNEWALD, Rodrigo (org.). Toré: Regime Encantado do Índio do Nordeste, Recife: Editora Massangana, 2005.

SANDRONI, Carlos; BARBOSA, Cristina; VILAR, Gustavo. A transmissão de patrimônios musicais de tradição oral em Pernambuco: um relato de experiência. In: GUILLÉN, Isabel (org.). Tradições e traduções: a cultura imaterial em Pernambuco. Recife: EdUFPE, 2008.

Notas


[i] https://www.youtube.com/watch?v=86oxmecRcmc&t=20s

[ii] https://www.youtube.com/watch?v=mQa1o5-UDbo

[iii] https://www.youtube.com/watch?v=vHNaiBwAfoE&t=17s


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