7 de setembro

Imagem: Dylan Bueltel
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Por SABRINA SEDLMAYER*

Deste 7 de setembro de 2024 seguirei melancolicamente percebendo que Caetano Veloso vive um limiar, uma passagem: a infância da velhice

“Mas minha alegria, minha ironia, é bem maior do que essa porcaria”, já dizia Caetano Veloso.

No último dia 7 de setembro, o show de Caetano Veloso e Maria Bethânia em Belo Horizonte alcançou a proeza de reunir mais de 55 mil espectadores. Um número extraordinário, incomensuravelmente maior do que qualquer aglomeração promovida pela extrema direita do país na mesma data.

A arte, como domingo da vida, mais uma vez demonstrou sua potência, competindo com atividades ditas “patrióticas”: faixas surrealistas penduradas em praças ou erguidas por braços humanos, motocicletas barulhentas percorrendo avenidas e, principalmente, discursos inflados clamando pela defesa da “democracia” e pela anistia aos envolvidos no “ato de 8 de janeiro”.

No entanto, no dia seguinte, um grupo peculiar, a quem chamarei, por falta de melhores predicados, de “amigos do sensível”, começou a manifestar desconforto com o fato de Caetano Veloso ter cantado, naquele show e naquela data, uma música de um pastor evangélico. O episódio gerou uma série de discussões e desencadeou um tipo de atavismo, já adianto, aporético, que dominou a maioria dos argumentos apresentados.

Para alguns, Caetano Veloso deveria respeitar o gosto do seu público fiel e não misturar religião com arte, mpb com hino de louvor. Além disso, teria errado ao mencionar o crescimento das igrejas evangélicas no Brasil durante a apresentação. Para outros desapontados, o gesto foi visto como puramente mercadológico, uma oportunidade de acumular mais capital para a aposentadoria, pois a porcentagem de evangélicos é muito relevante.

O consenso entre os críticos era que a música do pastor Kleber Lucas era pobre e simples, destoando das canções que a plateia sabia de cor (e coração). Estranharam também o discurso de Caetano Veloso antes de entoar “Deus cuida de mim”. Misturava mundos que, na opinião de muitos, deveriam permanecer apartados. Afinal, a república democrática é laica, e a religião deveria, segundo esses descontentes, permanecer separada do cotidiano político e histórico. Fé é um assunto pessoal e intransferível, e o músico, ocupando um lugar de destaque, teria a responsabilidade de manter sua arte livre de influências religiosas.

Curiosamente, esse episódio não gerou memes ou piadas, como ocorreu entre Baby do Brasil e Ivete Sangalo no Carnaval de 2024. Até agora, ninguém “macetou o apocalipse” e tratou o ocorrido de forma satírica. Talvez porque Caetano Veloso já havia se apresentado no programa Fantástico, em outubro do ano passado, ao lado do pastor Kleber Lucas e seu coro de “musicalidade celestial” (sic).

Na ocasião, quando questionado sobre a parceria com mundos tão distintos, Caetano Veloso afirmou que acreditava que foi “Deus” quem promoveu esse encontro. Ele lembrou que, apesar de não ser religioso, tinha sido criado em uma família católica e que gostava de atuar como uma ponte entre o mundo da alta cultura e o fenômeno incomensurável dos crentes evangélicos no Brasil. Vale lembrar como Caetano Veloso cantava os hinos preferidos da Igreja Católica para Dona Canô, sempre que ela pedia.

Parafraseando o hino da discórdia, Caetano Veloso afirmou na TV que continuava aprendendo “um pouco aqui e um pouco ali”, fazendo canções e cantando sobre qualquer tema, seja um pagode ou um filme, sobre a solidão de um quarto de hotel ou a beleza que queria guardar e reter: seja de um menino lindo do Rio ou de uma menina igualmente linda, mais que demais.

O icônico grito “É proibido proibir”, em tempos de cancelamento (ainda sofro com os últimos acontecimentos no Ministério dos Direitos Humanos) e da rigidez de certo politicamente correto, emerge novamente, reavivando questões que pareciam superadas, como o controle do imaginário e a repressão à arte imaginativa. É como se a ambiguidade, a ambivalência, a ironia fossem categorias lá do século XX. Como se o intérprete tivesse que ser filiado a um único padrão. Metamorfoses, nunca mais.

Ouvi a música algumas vezes e ela não me marcou, mas também não me irritou. É morna, como café frio, sem cafeína. Não me incomoda tanto quanto “Força Estranha”, que mais parece ser de autoria de Roberto Carlos (“Jesus Cristo, eu estou aqui!) e a evito escutar sempre quando posso. E não seria o mesmo caso? O de pular “Deus cuida de mim” e escolher outras canções entre opções maravilhosas, perversamente pagãs, sacanas, sedutoras, licenciosas, irônicas e alegres?

O debate que surge, após algumas horas de reflexão, é que para muitos a arte deve ser sempre responsável e de bom gosto. Ora, se assim fosse, as viagens espirituais de Tim Maia deveriam ser queimadas junto com o livro Universo em Desencanto. Sabe-se que nem todas as aproximações entre música e religião são tão bem-sucedidas como My Sweet Lord, o mantra Hare Krishna disseminado no Ocidente por George Harrison e os Beatles. Inclusive, letras bíblicas misturadas com Camões já foram cantadas pela Legião Urbana nos anos 1990.

O que incomoda no contexto midiático e mercadológico atual é que a polifonia e o dialogismo são cada vez mais castrados. No entanto, a arte, a música, assim como a literatura, têm o poder de criar linhas de fugas, pensamentos, sensações que não pertencem nem à história nem à filosofia, reinventando a vida e criando parcerias inusitadas. Derrida sugere que “dizer tudo” é o traço da literatura moderna.

Tout dire!

A mistura entre o que um músico pode e deve fazer e o desagrado com um hino no meio de um repertório repleto de canções formidáveis me parece desvinculada também da ideia de liberdade artística. A vida nem sempre é amiga da arte, e esta nem sempre está lá, presente, seja em uma canção ou em um romance. Caetano Veloso, nesse show, seguiu sendo Caetano: fluido, paradoxal, híbrido, equivocado, desconcertante, cantando e traduzindo o que vê e sente. Afinal, traduzir é transpor.

Se o hino de Kleber Lucas não tem a mesma força de outras canções, como a voz de Xande de Pilares traduzindo Caetano Veloso, é uma questão à parte. Nessa algaravia dos descontentes que não me capturou (mas me fez escrever este texto corrido), traço uma linhagem que vem desde Jesus Bleibet Meine Freude, que nasci escutando, de Bach, passa por Baudelaire, Verlaine e outros tantos malditos e satânicos, desembocando nos trópicos com Jorge de Lima e Murilo Mendes (que no auge do modernismo brasileiro eram apelidados jocosamente de “tempo e eternidade” pelos vanguardistas, justamente por serem católicos). Todos eles estão vivos. Continuam queimando nas estantes e dando estalos quando se abre o livro deles. Ah, e o que seria de nós, leitores, sem os versículos do Novo Testamento traduzidos com genialidade por Raduan Nassar?

Deste 7 de setembro de 2024 seguirei melancolicamente percebendo que Caetano Veloso vive um limiar, uma passagem: a infância da velhice. E que, como artista que é e foi, deve escolher como e quando soltar a voz. Seja fazendo memória dos muitos amigos que partiram, cantando para os orixás, se dizendo ateu ou entoando um hino para alguns poucos crentes que deveriam estavam ali, naquela noite quente de clima desértico que nos lembrava que um mundo está acabando.

Bom ter sido num estádio de futebol, o Mineirão, porque ele e Maria Betânia continuam jogando. E bem sabemos que a bola às vezes chega ao seu destinatário.

*Sabrina Sedlmayer é professora titular da Faculdade de Letras da UFMG e presidente da Associação Internacional dos Lusitanistas.


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