80 anos da vitória russa contra o nazismo

Imagem: Sergei Nesterov
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Por WAGNER MIQUÉIAS DAMASCENO*

A vitória sobre o nazismo foi conquistada pelo heroísmo do povo soviético, não por Stálin – que, aliado inicial de Hitler, facilitou a guerra e custou milhões de vidas

A vitória sobre o nazismo foi uma das maiores conquistas da humanidade. Resultado de um enorme esforço mundial, contou com um levante dos povos europeus, e teve como protagonistas o proletariado soviético e o Exército Vermelho, produto da Revolução de 1917. Hollywood, por mais que tente, não pode apagar esse fato – e isso em nada diminui a participação heroica dos fuzileiros estadunidenses.

Mas, a ameaça de reescrita da história não vem só da Califórnia. Sob o argumento de rebater as narrativas estadunidenses, YouTubers e influencers stalinistas tentam atribuir à Josef Stálin os louros da vitória sobre o nazismo. Nada mais distante da verdade.

Quem derrotou o nazismo?

Na Rússia, a Segunda Guerra Mundial é chamada de “Grande Guerra Patriótica”, de 1941-1945. Mas por que de “1941 à 1945”, já que todos sabemos que a Segunda Guerra Mundial começou em 1939? Porque a URSS, sob o comando de Joseph Stálin, era aliada da Alemanha até 22 de junho de 1941.

Em 23 de agosto de 1939, URSS e Alemanha assinaram, em Moscou, o Pacto Ribbentrop-Molotov (nome dos representantes ministeriais de ambos os países). Esse pacto tinha duas partes: uma pública, de não agressão (mantendo-se a colaboração econômica então vigente) e outra secreta, que previa a divisão da Polônia, Lituânia, Letônia, Estônia e Finlândia.

Leopold Trepper, chefe da Orquestra Vermelha, rede de espionagem soviética, nos conta em suas memórias em que atmosfera foi celebrado o acordo. Após ser capturado pela Gestapo, em finais de novembro, em Paris, ficou sob a guarda de um agente que fizera a segurança pessoal de Ribbentrop na ocasião, em Moscou, e que lhe contou que Stálin ergueu uma taça de champanhe e fez um “brinde inesquecível”: “Sei o quanto a nação alemã ama o seu Führer e por isso tenho o prazer de beber à sua saúde”.[i]

Tal prazer não foi partilhado pelos milhares de comunistas alemães que apodreciam nos campos de concentração, como bem assinalava Leopold Trepper.

Uma semana depois, Hitler invadiu a Polônia, controlando sua porção ocidental e, duas semanas depois, Stálin fez o mesmo, dominando a porção oriental. É o início da 2ª Guerra Mundial. Aliás, Hitler justificou a invasão da Polônia dizendo que perseguia a população alemã em seu território e que a Polônia era uma país fascista![ii]

Esses argumentos, como pode-se notar, foram reeditados pelo ditador Vladimir Putin para justificar a guerra contra a Ucrânia. Em seu discurso no 09 de maio, Vladimir Putin cinicamente disse que “a Rússia tem sido e continuará sendo uma barreira indestrutível contra o nazismo, a russofobia e o antissemitismo”.

No mesmo sentido – e ainda mais explícito – Alexey Labetskiy, embaixador da Rússia no Brasil, em artigo publicado na Folha de S. Paulo, afirma que “A Rússia não está lutando apenas para proteger a gente russofalante do Donbass, Lugansk, Kherson e Zaporíjia – está lutando contra a mesma ideologia que seus avós destruíram em 1945”.[iii] O Governo russo quer nos convencer de que a guerra contra a Ucrânia é uma continuidade da luta contra o fascismo e contra a opressão… aos russos!

Mas, voltemos à Joseph Stálin, o grande organizador de derrotas. Em 18 de dezembro de 1940, Hitler assinou a diretriz nº. 21, conhecida como “Operação Barbarossa”, que ordenava a invasão da URSS antes do fim da guerra contra a Grã-Bretanha. No mesmo dia, Moscou foi avisado disso pelo espião Richard Sorge, que atuava no Japão. Em fevereiro de 1941, Leopold Trepper enviou um despacho com o número exato das divisões que Hitler movia da França e da Bélgica para a URSS e, em maio, informou a data definitiva do ataque.

Confiante no pacto com Hitler, Stálin ignorava esses alertas e deitava em berço esplêndido, com o agravante de estender as perseguições que ocorriam no Partido Comunista Soviético ao Exército Vermelho. Sob acusações forjadas de “conspirações militares-fascistas-trotskistas-direitistas”, Stálin mandou prender e fuzilar vários generais soviéticos, debilitando enormemente o Exército Vermelho.

Em 22 de junho de 1941, a Wehrmacht entrou centenas de quilômetros na URSS, e os caças da Luftwaffe destruíram dezenas de tanques e abateram aviões soviéticos ainda no solo. Como bem assinalou Leopold Trepper, “foi necessário o sacrifício de um povo erguido contra o invasor para inverter as posições. Mas o erro de Stálin custou à Rússia milhões de mortos e prolongou a guerra”.

Foi graças a esse sacrifício heroico que o nazismo foi destruído. Numa guerra que foi das ruas e casas soviéticas até Berlim, com a conquista da capital alemã pelo Exército Vermelho. Foi, portanto, uma vitória apesar de Stálin e, não, graças a ele.

*Wagner Miquéias Damasceno é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).

Notas


[i]Esse fato também foi relatado pelo historiador francês, Jean-Jacques Marie em Stálin. MARIE, Jean-Jacques. Stálin. São Paulo: Babel, 2011, p. 533.

[ii]Ver: MARIE, Jean-Jacques. Stálin. São Paulo: Babel, 2011, p. 535.

[iii]Ver: https://www1.folha.uol.com.br/opiniao/2025/05/80-anos-da-vitoria-na-2a-guerra-mundial-lembrancas-que-nunca-se-apagam.shtml.


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