Posse da terra em São Paulo

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Por JOSÉ GIACOMO BACCARIN*

De maneira geral, pequenos e médios proprietários mantiveram seu patrimônio imobiliário rural, mas foram e continuam deixando de ser agricultores.

A concentração da posse da área agrícola no estado de São Paulo vem aumentado progressivamente. A participação dos 5% maiores estabelecimentos na área total se elevou de 53% para 66%, de 1996 a 2017, conforme apontam os censos agropecuários do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Ou seja, 5% dos estabelecimentos paulistas controlam 2/3 da área agrícola do Estado, restando 1/3 para os outros 95%.

Outro indicador que corrobora com essa concentração é o Índice de Gini da distribuição da terra entre os estabelecimentos agropecuários, que passou de 0,760, em 1996, para 0,833, em 2017. Esse índice mede a desigualdade e varia entre 0 e 1. Quanto mais próximo a 0 menos desigual é a distribuição da variável considerada e valores acima de 0,4 já indicam alta concentração.

É importante perceber que a concentração da propriedade rural tem se mostrado bem menor do que a da posse ou exploração agropecuária. Basta comparar a distribuição dos imóveis rurais com a dos estabelecimentos agropecuários. Em 2017, os estabelecimentos acima de 1.000 hectares (ha) exploravam 45% da área recenseada em São Paulo, contra apenas 12,5% dos abaixo de 50 ha. Em 2018, os imóveis rurais acima de 1.000 ha possuíam 21% da área cadastrada junto ao Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária, enquanto para aqueles abaixo de 50 ha este valor era um pouco maior, de 23%.

De maneira geral, pequenos e médios proprietários mantiveram seu patrimônio imobiliário rural, mas foram e continuam deixando de ser agricultores. Vivem nos 645 municípios paulistas, onde muitos se dedicam a atividades de serviços, e têm na cessão onerosa da sua área rural para terceiros uma importante fonte de renda familiar.

O aluguel de terras para exploração agrícola deu um salto, entre 1996 e 2017. Naquele ano, 86% da área dos estabelecimentos paulistas eram explorados diretamente pelos seus proprietários, contra 13% explorados via contratos de arrendamento ou parceria e 1% sob outras formas. Em 2017, a importância da área própria reduziu-se para 63%, enquanto a da alugada cresceu para 34%, 19% na forma de arrendamento, 15% em parceria agrícola.

Esclareça-se que a parceria atual não guarda nenhuma relação com a existente ainda na década de 1970, quando o parceiro era de pequeno porte (com área média de 12 ha) e subordinado ao proprietário da terra. Em 2017, a área média tomada em parceria era de 576 ha, contra área média de 88 ha de todos os estabelecimentos agropecuários paulistas. Na realidade, a parceria atual é usada para que se diminua a incidência de Imposto de Renda sobre o proprietário da terra, disfarçando um contrato que, de fato, é de arrendamento.

A expansão do complexo sucroenergético (sucroalcooleiro, na denominação anterior) e de sua matéria prima agrícola, a cana-de-açúcar, ajuda a explicar muito do acontecido na estrutura fundiária paulista nas últimas décadas. A cana-de-açúcar avançou substituindo área de pastagem, especialmente, e de outras lavouras e se concentrando em grandes estabelecimentos. Os dados de 2017 mostram que 78% da área cultivada com cana em São Paulo estavam localizados em estabelecimentos maiores de 1.000 ha. Para o reflorestamento, esse número era de 63%, para outras lavouras, 34% e para pastagem, se resumia a 15%.

Certamente causará surpresa a muitos que a área de pastagem já não se concentre em grandes estabelecimentos paulistas. Aliás, a participação dos estabelecimentos até 50 ha, de 23% na área de pastagem, se mostrava maior que aquela dos maiores de 1.000 ha. Outra informação, enquanto no conjunto dos estabelecimentos 29% da área eram ocupados com pastagem, nos abaixo de 50 ha este porcentual passava de 50%.

Isto não parece estar relacionado com o uso da área para a bovinocultura de leite, mesmo por que a produção de leite nos estabelecimentos agropecuários caiu 23% em São Paulo, de 1996 a 2017. Uma provável explicação é que grande parte dos pequenos agricultores paulistas, diante de falta de outras opções, está preferindo deixar parte significativa de suas áreas com pastagem para exploração da bovinocultura de corte, o que exige menores investimentos e dedicação laboral.

As maiores dificuldades e menor dinamismo recente dos pequenos estabelecimentos ficam evidenciados quando se comparam a renda bruta média e a total. Em 1975, os estabelecimentos até 50 ha obtinham por área renda 3,9 vezes superior aos estabelecimentos acima de 1.000 ha, número que caiu para 1,6 vez, em 2017. Em 1975, 35% da renda bruta da agricultura paulista provinha de estabelecimentos até 50 ha, caindo para 19%, em 2017.

Ao se considerar as diversas regiões paulistas, percebe-se que quanto maior a porcentagem de área plantada com cana-de-açúcar também é maior o porcentual de área sob arrendamento/parceria. As agroindústrias sucroenergéticas (usinas) produzem diretamente 60% da cana-de-açúcar processada em São Paulo e compram de agricultores fornecedores os outros 40%. Da chamada cana própria da usina, 20% são cultivadas em área de sua propriedade e 80% em terras arrendadas ou em parceria. Para o agricultor, a cessão da área para o cultivo de cana proporciona renda mais alta do que se fosse cedida para outras lavouras ou pecuária.

O maior dinamismo sucroenergético e canavieiro em relação a outros complexos agroindustriais e os impactos causados na estrutura fundiária paulista têm diversas causas: históricas, ligadas a estrutura industrial, logística e de consumo do Estado, forte integração vertical entre usina e lavoura canavieira, implementação de políticas públicas, avanços quantitativos e qualitativos da mecanização canavieira. Esta análise não será aqui aprofundada, mas, de pronto, sugere-se que as causas de transformação não sejam resumidas a um atual modismo analítico, de se atribuir tudo à financeirização da agricultura.

Contudo, não se pode deixar de comentar que, desde muito tempo, o complexo sucroenergético tem sido contemplado, de forma privilegiada, por ações e programas públicos, dos governos estadual e federal e institutos de pesquisas. Em 1975, foi criado o Proálcool, concedendo-se fartos subsídios a investimentos, produção e consumo de etanol, contribuindo para que a cana avançasse do centro-norte para o oeste e sul de São Paulo.

A partir daí, sem a pretensão de se esgotar a relação, podem-se citar outros apoios públicos, como a obrigação por lei de se misturar 25% de etanol à gasolina, a cobrança de alíquota bem menor do ICMS do etanol do que da gasolina, a criação do Programa BIOEN pela FAPESP, o fortalecimento da seção de cana-de-açúcar do Instituto Agronômico de Campinas, o PRORENOVA do BNDES, o Protocolo Agroambiental do Setor Sucroenergético Paulista, entre outros.

Muitos julgarão inevitável que o desenvolvimento da agricultura paulista venha acompanhado do aumento da concentração do uso da terra e da exclusão e desalento de pequenos agricultores, bem como de trabalhadores rurais, cujo número caiu fortemente no presente século. E não deixarão de ressaltar os efeitos econômicos positivos do complexo sucroenergético, inclusive o de garantir rendas extras a pequenos proprietários rurais que não se dedicam mais à agricultura.

Sob esta perspectiva, não restaria muito mais aos pequenos agricultores do que torcerem para que os empresários da cana, ao estender suas áreas plantadas, ofereçam propostas de aluguel de suas terras. Ou de serem alcançados pela expansão da mancha urbana e implantação de loteamentos rurais para lazer e recreio, permitindo-lhes a obtenção de ganhos patrimoniais significativos.

Alternativamente, pode-se vislumbrar a possibilidade de se adotarem políticas públicas que incentivem a intensificação da produção e a obtenção de rendas mais altas pelos pequenos agricultores, bem como maior diversidade produtiva no Estado. Isto envolveria o fortalecimento de ações públicas tradicionais, nos campos da pesquisa, da assistência técnica e extensão rural, de crédito rural e de compras públicas de alimentos. Bem como, na consolidação e validação pública de novas tecnologias, inclusive as de base agroecológica. Não se deve desprezar que, atualmente, há possibilidades de que os pequenos agricultores venham a receber por serviços ambientais prestados, na preservação e recuperação de vegetação natural e de fontes de água.

Alternativa nada fácil de ser alcançada. Até porque os últimos governos estaduais sucatearam órgãos e instrumentos públicos de planejamento e execução de ações com maior alcance social. Bem como vêm mantendo estreita relação com os interesses de grandes empresários, inclusive os do complexo sucroenergético, revelando pequena capacidade de considerar as demandas de pequenos agricultores.

A agravar tal fato, enquanto os grandes agricultores têm mostrado capacidade de agir em bloco e de forma permanente, os interesses e reivindicações de pequenos agricultores se manifestam de forma difusa, esporádica e pouco organizada.

*José Giacomo Baccarin é professor na Unesp; de economia agrária e políticas agrícolas nos campus de Jaboticabal, na graduação, e de Rio Claro, na pós-graduação em geografia.

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