A disputa Guiana-Venezuela

Imagem: Steve Johnson
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Por FRANCISCO DOMINGUEZ*

A disputa pode ser resolvida através do diálogo, desde que diga não à pressão dos EUA/ ExxonMobil pela guerra

Se havia alguma dúvida sobre as ações empreendidas pelo governo da Venezuela em torno da disputa territorial com a Guiana, os exercícios militares conjuntos entre as Forças de Defesa da Guiana (FDG) e o Comando Sul dos EUA (SouthCom) explicam o que está realmente por trás das coisas.

O território reivindicado pela Venezuela, também conhecido como Guiana Esequiba, tem 159.500 km² a oeste do rio com o mesmo nome. O SouthCom (Pentágono) nunca intervém em disputas territoriais, exceto se o território em questão contiver recursos de importância geopolítica para o imperialismo americano.

Numa entrevista concedida em 21 de janeiro de 2023, a chefe do SouthCom, Laura Richardson, sublinhou a importância da América Latina para a política externa dos EUA devido aos “seus ricos recursos”, um aspecto que ela tem enfatizado desde a sua nomeação em 2021. Ela seguiu destacando “as maiores reservas de petróleo, incluindo petróleo leve e doce, descobertas na Guiana” e “os ricos recursos de petróleo, cobre e ouro da Venezuela”.

A base da reivindicação da Venezuela é o Mapa da Capitania Geral da Venezuela de 1777, criado pela Espanha colonial em 8 de setembro desse ano, que inclui claramente a Guiana Esequiba. Nas vésperas da independência da Venezuela, em 1810, o mapa oficial da capitania, elaborado pela Espanha, também a incluía. Desde a independência da Venezuela, todas as suas constituições (1811, 1819, 1821, 1830, 1857, 1858, 1864, 1874, 1881, 1891, 1893, 1901, 1904, 1909, 1914, 1922, 1925, 1928, 1931, 1936, 1947, 1953, 1961 e a Constituição Bolivariana de 1999) incluíram a Guiana Esequiba como parte integrante de seu território.

A Venezuela proclamou sua independência em 1811 e os esforços de libertação de Simón Bolívar conduziram, em 1821, à formação da Grande Colômbia, que incluía a Venezuela e a Colômbia. A recém-criada República, logo em 1821, queixou-se das contínuas invasões de colonos ingleses ao território venezuelano.

O vice-presidente da Grande Colômbia enviou uma nota formal ao primeiro-ministro britânico, Lord Castlereagh, afirmando que o limite oriental de seu país “termina no Essequibo, sendo a margem esquerda deste rio a fronteira com a Guiana Holandesa” (atual Suriname). A Grande Colômbia sofreu expansão geográfica e variações em 1822, 1824 e 1826, mas sempre incluiu a Guiana Esequiba.

Em 1825, o Império Britânico reconheceu sua independência, com a Guiana Esequiba como parte integrante desse Estado. Com a separação da Grande Colômbia em 1830, a constituição da Venezuela estabeleceu que seu território compreendia a região da [como era chamada antes de 1810] “Capitania Geral da Venezuela”. Em 1834, a Grã-Bretanha reconheceu a independência da Venezuela.

O problema era a Perfidious Albion (o nome preciso de Napoleão para o imperialismo britânico). A Grã-Bretanha encarregou Robert Schomburgk, um botânico, de realizar um levantamento da Guiana Britânica, no qual traçou unilateralmente uma nova linha de demarcação da fronteira que deu à Guiana Britânica 80.000 km² de território venezuelano.

Foram traçadas mais “linhas de Schomburgk”, acrescentando mais território venezuelano à Guiana Britânica que, em 1897, ascendia a 167.830 km² (ver no mapa como isto foi escandalosamente rapace). Em 1887, o presidente venezuelano Guzman Blanco rompeu relações com a Grã-Bretanha porque os britânicos se recusaram a retirar-se da Guiana Esequiba, forçando assim a arbitragem.

A Venezuela estava em turbulência. Em 1892, eclodira uma guerra civil e a Venezuela não estava em condições de pagar as dívidas à França, Espanha, Bélgica, Grã-Bretanha e Alemanha. Quando a guerra civil estourou novamente em 1898, uma coalizão europeia planejava uma intervenção militar (em 1902, uma força naval europeia bloqueou a Venezuela quando navios de guerra britânicos e alemães bombardearam Puerto Cabello).

Em 1897, a controvérsia sobre o território já tinha quase 60 anos e a pesada intervenção dos Estados Unidos obrigou a Venezuela, após a assinatura do Tratado de Washington, a aceitar uma Comissão de Arbitragem composta por cinco membros: dois nomeados pela Suprema Corte dos Estados Unidos, dois pelo Governo britânico e um, não venezuelano, a ser escolhido pelo governo venezuelano.

A Venezuela escolheu o ex-presidente dos EUA Benjamin Harrison como seu conselheiro. Sem surpresas, a Comissão de Arbitragem, em 1899, atribuiu quase 90% do território em disputa (ver mapa da Venezuela) e todas as minas de ouro à Grã-Bretanha, mas não deu qualquer razão para a decisão.

Em 1949, um memorando de Severo Mallet-Prevost (publicado postumamente), secretário oficial da delegação EUA/Venezuela na Comissão de Arbitragem, revelou que Friederich Martens, presidente e juiz da Comissão de Arbitragem de Paris de 1899, violando as regras do Tratado de Washington, tinha conspirado com os dois juízes britânicos para coagir os outros juízes a arbitrar a favor da Grã-Bretanha.

Assim, a Venezuela rejeitou a decisão arbitral de 1899 como fraudulenta. Em 1962, seu ministro das relações exteriores, Falcon Briceño, exigiu a reivindicação dos direitos de seu país sobre o território em disputa. A Venezuela continuou defendendo suas reivindicações históricas sobre a Guiana Esequiba até que a Grã-Bretanha aceitou finalmente iniciar negociações através da assinatura, em 17 de fevereiro de 1966, do Acordo de Genebra.

Este acordo foi reconhecido pela Guiana no momento de sua independência, em 26 de maio de 1966. Assim, a Grã-Bretanha aceitou a existência de uma controvérsia e de um protocolo para resolvê-la, confirmando que a disputa de 125 anos tinha sido causada por invasões coloniais britânicas. O Acordo de Genebra de 1966 continua válido e os argumentos atuais dos meios de comunicação dominantes de que o litígio foi resolvido em 1899 são simplesmente falsos.

Em 1993, contrariando o Acordo de Genebra, a Guiana aprovou uma exploração pela ExxonMobil no disputado bloco Statebrok e, em 2000, foram descobertos enormes depósitos de gás e petróleo. Em 2000, o presidente Hugo Chávez rejeitou a concessão que a Guiana tinha feito à empresa estadunidense Beal Aerospace Technologies Inc. para instalar uma plataforma de lançamento espacial.

No entanto, deixou claro que a Venezuela não seria um obstáculo a projetos de benefícios sociais como “o acesso à água para consumo humano, novas estradas, programas de energia e atividades agrícolas”.

Em 2007, o governo bolivariano expulsou a ExxonMobil dos campos de petróleo da Bacia do Orinoco da Venezuela porque o gigante petrolífero se recusou a cumprir as novas leis. Chávez nacionalizou efetivamente as empresas petrolíferas estrangeiras e aumentou a tributação dos projetos em curso de 34% para 50%.

A ExxonMobil voltou sua atenção para a disputada região de Essequibo e sua exploração, ao abrigo do Acordo de Partilha de Produção com a Guiana, conduziu, em 2015, à descoberta de uma das maiores descobertas de petróleo dos últimos anos (a Exxon recebeu 75% das receitas do petróleo para custos de recuperação e está isenta de quaisquer impostos). O diretor executivo da Exxon era então Rex Tillerson.

Em março de 2015, o presidente Barack Obama declarou a Venezuela “uma ameaça incomum e extraordinária à segurança nacional dos EUA” e, em maio de 2015, a ExxonMobil anunciou a “descoberta” de petróleo na Guiana Esequiba. Em setembro de 2015, Tillerson e o presidente da Guiana, David Granger, reuniram-se em Nova Iorque, onde planejaram sua estratégia contra a Venezuela, que implicava pôr fim ao Acordo de Genebra de 1966 e pressionar a ONU a recorrer à Corte Internacional de Justiça (CIJ) com o apoio do Departamento de Estado.

Em setembro de 2016, Tillerson e Granger voltaram a encontrar-se na ONU e, em dezembro, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, enviou a disputa para a CIJ. Em fevereiro de 2017, Tillerson foi nomeado secretário de estado dos EUA pelo presidente Trump. Em 2018, a Guiana apresentou uma queixa à CIJ sobre a disputa, que a aceitou em 2020, apesar de apenas uma das partes ser a favor de fazê-lo.

Entre 2015 e 2023, a Guiana juntou-se à desestabilização contra a Venezuela bolivariana. Votou 16 vezes, de 23, contra a Venezuela na Organização dos Estados Americanos. A Guiana também juntou-se ao já extinto Grupo de Lima e assinou 16 comunicados, de 45, que buscavam destituir o governo do presidente Maduro. Em 2019, Donald Trump tinha adotado a política de “pressão máxima” para derrubar o governo venezuelano.

Com a eleição de Irfaan Ali como presidente em 2020, a Guiana intensificou massivamente o conflito ao ponto de propor formalmente bases militares do SouthCom em seu território como “proteção” contra a Venezuela. Os funcionários do SouthCom visitam regularmente a Guiana e realizam exercícios militares conjuntos, o que levou Irfaan a enveredar por uma retórica agressiva: “As Forças de Defesa da Guiana estão em alerta máximo e em contato com o SouthCom, que está em alerta”.

O Irfaan outorgou concessões petrolíferas em águas que nem sequer fazem parte do litígio. Enquanto isso, a Exxon extrai cerca de 500.000 barris por dia em águas marítimas venezuelanas.

Assim, a Venezuela respondeu com a realização de um referendo, apoiado por uma esmagadora maioria, em 3 de dezembro de 2023, conduzido dentro do espírito do Acordo de Genebra de 1966 e como confirmação da posição do governo de não reconhecer a jurisdição do CIJ na controvérsia em torno do Essequibo.

Além disso, a Assembleia Nacional da Venezuela adotou uma resolução unânime que criava o novo Estado da Guiana Esequiba e, diante da presença crescente e persistente do SouthCom na Guiana, criou também um Alto Comissariado para sua defesa.

O governo venezuelano está tomando estas e várias outras medidas de autodefesa, deixando bem claro que a ameaça não é a Guiana, mas a Exxon e os EUA, que há anos procuram derrubar violentamente o governo bolivariano.

No entanto, o presidente Maduro apelou repetidamente ao presidente Irfaan para que se empenhasse no diálogo e evitasse ficar preso ao impulso da Exxon e dos EUA para um conflito militar. O governo venezuelano apelou também ao governo da Guiana “para que desista de seu comportamento errático, ameaçador e arriscado e regresse à via do diálogo direto, através do Acordo de Genebra”.

Felizmente, graças aos contatos diretos entre o presidente Maduro, o presidente Lula do Brasil e Ralph Gonsalves, em 10 de dezembro de 2023, o presidente da Guiana, Irfaan Ali, aceitou a proposta de diálogo do presidente Maduro.

Assim, foi realizada uma reunião em 14 de dezembro de 2023 em São Vicente e Granadinas, que teve como anfitrião seu presidente, Gonsalves. O ministro das relações exteriores da Venezuela, Yvan Gil, agradeceu ao Celac e ao Caricom por seus esforços para promover o diálogo Venezuela-Guiana e patrocinar esta importante reunião.

Gonsalves, presidente pro tempore da Celac, e o primeiro-ministro da Dominica, Roosevelt Skerrit, presidente do Caricom, foram os principais patrocinadores da reunião, assim como o conselheiro-chefe do presidente Lula e seu enviado especial, Celso Amorim, atuaram como principais interlocutores. Philip Davis, Mia Mottley, Dickton Mitchell, Philip J. Pierre, Terrence Drew e Keith Rowley, primeiros-ministros das Bahamas, Barbados, Granada, Santa Lúcia, São Cristóvão e Névis e Trinidad e Tobago, respectivamente, também estiveram presentes.

Como observadores, estiveram presentes Antonio Guterres, secretário-geral das Nações Unidas, Earle Courtenay Rattay, seu chefe de gabinete, e Miroslav Jenca, subsecretário-geral do Departamento de Assuntos Políticos e de Consolidação da Paz das Nações Unidas. Além disso, Alvaro Leyva e Gerardo Torres, ministro das relações exteriores da Colômbia e de Honduras, estiveram presentes como parte da troika da Celac.

Os presidentes Irfaaan e Maduro concordaram com uma declaração conjunta de 11 pontos “Para o Diálogo e a Paz entre a Guiana e a Venezuela”, sendo os mais importantes que “a Guiana e a Venezuela, direta ou indiretamente, não ameaçarão nem usarão a força uma contra a outra em nenhuma circunstância, incluindo as que resultem de qualquer disputa existente entre ambos os Estados” e que a disputa “seria resolvida de acordo com o direito internacional, incluindo o Acordo de Genebra de 17 de fevereiro de 1966”. Os dois presidentes também concordaram em reunir-se no Brasil nos próximos três meses.

Todos devemos apoiar as duas coisas, a posição acordada de que “a disputa territorial só será resolvida através do diálogo, do respeito mútuo e do compromisso em preservar a região como uma zona de paz”, os esforços conjuntos de todas as partes participantes, e dizer não à pressão dos EUA-ExxonMobil para a guerra.

*Francisco Dominguez é professor de ciência política na University of Middlesex (Inglaterra).

Tradução: Fernando Lima das Neves.

Publicado originalmente no portal Morning Star.


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