A nova indústria cultural

Imagem: Brett Sayles
image_pdf

Por BRUNO BONCOMPAGNO*

O monopólio é a tendência unívoca do capitalismo. A outra tendência do capital é desenvolver maneiras de maquiar sua dominação do cotidiano

1.

A passividade é a maior arma utilizada, depois da proibição do ópio, por uma minoria que é, mesmo odiando-o e desejando seu mal, dominante no Brasil. Não os chamarei de brasileiros, não merecedores dessa honra. Merecem, realisticamente, muito menos do que tem — ou, sendo otimistas, muito menos do que nada. São um contingente tão esdrúxulo, nefasto, de pessoas sem alma, alheias ao sentimento cívico da cidadania, da humanidade no geral. Todavia, possuem todo o resto imaginável dessa sociedade cuja lógica, estéril e infeliz, é melancólica.

Detentores do luxo. Mansões, carrões, aviões particulares, ilhas privadas, coberturas fantásticas. Possuem a riqueza em sua forma mais geral: o dinheiro e, por isso, tudo compram. Adquirem, assim, os sonhos do resto da população; produzem o ideal imagético fantasiado e são, assim, donos do futuro potencial do povo. Se torna redundante listar as posses dessa gente. Fica repetitivo se revoltar contra a desigualdade causada por esse sistema que recompensa o monstro, enquanto mata a história. Não obstante, devemos relevar o pleonasmo, buscar fincá-lo à vista de todos, para fazermos lembrar da injustiça que os acomete, a qualquer hora, em todos os lugares.

A passividade, como o ópio, é a melhor arma dessa escória. Analisemos a mídia contemporânea: está distante da antiga indústria cultural, cuja comparação perde seu lugar em comum. A televisão, pelo menos, ainda respondia a uma lógica básica. Seu interesse primário era oferecer um conteúdo massificado, que unisse todo o povo numa massa consumidora de um único produto — seja este na forma do entretenimento: com novelas, filmes da sessão da tarde, programas que almejavam o absurdo; seja no noticiário, com o Jornal Nacional, Jornal da Tarde, entre outros.

A TV Globo, o SBT, a TV Record seguiam, enquanto competidores (assimétricos), na busca incessante pelo Ibope. A escolha por um ditava, indistintamente, a falta de telespectadores do outro. Ademais, eram transmitidos ao vivo e, portanto, raramente reassistidos.

Sei que existiam as gravações. Eu já assisti inúmeras dos clipes do top 20 da MTV, e de outros programas; meu tio gravava todos e ainda têm essa coleção. Contudo, peço que compreendam meu ponto: o conteúdo era massificado, o público era o povo em geral que assistia a mesma coisa; as notícias deviam servir, minimamente, ao interesse em comum ali perpassado.

As propagandas eram feitas nos intervalos programados e constantemente puladas pelos telespectadores. As pessoas precisavam sentar diante do objeto físico, pesado, imóvel, que era a televisão antiga, para poder assisti-la. A briga entre os filhos, nesse período, era pelo controle, pois esse objeto ditava, realmente, a forma de entretenimento a ser consumida. A massa marginalizada que este formato criou é representada excelentemente por Beavis and Butt-head.

Já massificado. Já industrialmente manufaturado. Já podre em sua forma e conteúdo. Expropriando o intelecto básico do cliente e os reduzindo à números de audiência. Todavia, o uso da internet via computadores individuais e smartphones, contando também os tablets, resultaram numa nova realidade técnico-social a toda população.

2.

Mais móvel e, portanto, acessível em todo lugar. Muitas mais escolhas e, assim, aparentemente menos padronizado. A massificação leva uma nova cara: essa falsa independência, materializada na infinidade de escolhas entre conteúdos, legitima um domínio significativamente mais autoritário em toda faceta da vida humana.

Por que eu vou me preocupar com o montante de problemas sociais que só aumentam aceleradamente se eu posso navegar o Youtube durante minha vida inteira, e ainda deixar outros bilhões de vídeos para a eternidade? Não há fato que me alarme: dado um momento que o nervosismo me incomode, eu posso muito bem acessar o Amazon prime, o Netflix, a HBO Max, a Disney Plus, a Starplus, e qualquer outro serviço de streaming e assistir, livremente, qualquer série que eu já tive interesse.

Consigo fugir efetivamente de qualquer problema que chegue no meu pensamento. O filiteísmo contemporâneo assola morbidamente, desconfigurando a antiga forma isolada, abstraída desses indivíduos.

Fora isso, se eu estou de mal com a vida, sem amizades ou família, pois meus antigos laços afetivos foram corroídos, eu posso entrar num grupo conspiracionista, independentemente da plataforma e me sentir, pela primeira vez na vida, em casa. Eu tenho, ao dormir tranquilamente, apreço pela nova comunidade que me entende, seja ela terraplanista, racista, eugenista ou conspiracionista no geral. Essa nova liberdade, desenfreada, garante meu direito de me expressar, mesmo que eu seja o cúmulo da putrefata ignorância.

Outrossim, as propagandas assumem uma forma muito mais assertiva, individualizada e asquerosa. Ao acessar o Chrome, o serviço de web browser mais utilizado no mundo (do Google) e fazer uma busca, utilizando da Search Engine do Google (o site mais acessado do mundo), para acessar o Youtube, maior site de entretenimento da internet, também do Google. Ou para simplesmente checar meu e-mail (o terceiro site mais acessado do mundo) o gmail, do Google; ou para procurar algum restaurante, usando do serviço de Global Positioning System (GPS) do Google Maps; ou para pedir um Uber, usando o Waze, que é da Google, e utiliza o Google Maps; ou para pedir comida em casa, delivery, usando o Ifood, também consumidor do GPS da Google; ou para procurar algum artigo acadêmico, usando o Google Scholar; ou comprando um relógio que marca meu batimento cardíaco, o Fitbit; eu estarei, em todos estes casos, utilizando o serviço de uma única companhia: Alphabet (novo nome da companhia Google). E, melhor ainda, usufruo desse privilégio moderno de forma “gratuita”.

O monopólio é a tendência unívoca do capitalismo. A outra tendência do capital é desenvolver maneiras de maquiar sua dominação do cotidiano. Seja na ideia de “liberdade de expressão”, filha bastarda do iluminismo. Seja pela falsa noção de opções, que arremata na sensação de liberdade no geral. No ocidente, mesmo que contemplando a miséria, os indivíduos ainda preferem esse ideal libertário, que teme um controle maior do estado em sua vida.

Todavia, essa aversão não é precisamente direcionada ao fascismo e suas diversas formas. Essa repulsa, na verdade, é posta contrária ao antigo Estado de bem-estar, ou ao progressismo político e social. Controlar a piada racista, homofóbica, xenofóbica é, para uma grande parcela da população, um ataque ao direito legal de se expressar. Expressar apoio à criação de partidos nazistas, por exemplo, é tido como uma atividade corriqueira, metonímica dum estado de direito liberal burguês e a proibição desse ato, em oposição, é tomada como ditatorial.

A nova indústria cultural, hipermassificada, hiperacelerada e hiperimbecilizada, é propulsionada por um contingente populacional que sobrevive num ecossistema mórbido, post-mortem ou, como diria Machado de Assis, memorialmente póstumos. Ser passivo mediante essa realidade é ser conivente ao assalto à razão, à sociabilidade e, diretamente, ao futuro da humanidade.

*Bruno Boncompagno é graduando em economia na Facamp.


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

1
A rede de proteção do banco Master
28 Nov 2025 Por GERSON ALMEIDA: A fraude bilionária do banco Master expõe a rede de proteção nos bastidores do poder: do Banco Central ao Planalto, quem abriu caminho para o colapso?
2
O filho de mil homens
26 Nov 2025 Por DANIEL BRAZIL: Considerações sobre o filme de Daniel Rezende, em exibição nos cinemas
3
A arquitetura da dependência
30 Nov 2025 Por JOÃO DOS REIS SILVA JÚNIOR: A "arquitetura da dependência" é uma estrutura total que articula exploração econômica, razão dualista e colonialidade do saber, mostrando como o Estado brasileiro não apenas reproduz, mas administra e legitima essa subordinação histórica em todas as esferas, da economia à universidade
4
A disputa mar e terra pela geopolítica dos dados
01 Dec 2025 Por MARCIO POCHMANN: O novo mapa do poder não está nos continentes ou oceanos, mas nos cabos submarinos e nuvens de dados que redesenham a soberania na sombra
5
A poesia de Manuel Bandeira
25 Nov 2025 Por ANDRÉ R. FERNANDES: Por trás do poeta da melancolia íntima, um agudo cronista da desigualdade brasileira. A sociologia escondida nos versos simples de Manuel Bandeira
6
Colonização cultural e filosofia brasileira
30 Nov 2025 Por JOHN KARLEY DE SOUSA AQUINO: A filosofia brasileira sofre de uma colonização cultural profunda que a transformou num "departamento francês de ultramar", onde filósofos locais, com complexo de inferioridade, reproduzem ideias europeias como produtos acabados
7
Raduan Nassar, 90 anos
27 Nov 2025 Por SABRINA SEDLMAYER: Muito além de "Lavoura Arcaica": a trajetória de um escritor que fez da ética e da recusa aos pactos fáceis sua maior obra
8
O empreendedorismo e a economia solidária
02 Dec 2025 Por RENATO DAGNINO: Os filhos da classe média tiveram que abandonar seu ambicionado projeto de explorar os integrantes da classe trabalhadora e foram levados a desistir de tentar vender sua própria força de trabalho a empresas que cada vez mais dela prescindem
9
Biopoder e bolha: os dois fluxos inescapáveis da IA
02 Dec 2025 Por PAULO GHIRALDELLI: Se a inteligência artificial é a nova cenoura pendurada na varinha do capital, quem somos nós nessa corrida — o burro, a cenoura, ou apenas o terreno onde ambos pisam?
10
A esquerda radical deveria apoiar Lula desde o primeiro turno. Por quê?
04 Dec 2025 Por VALEIRO ARCARY: O voluntarismo não é bom conselheiro. Ideias revolucionárias são poderosas e podem colocar em movimento milhões de pessoas até então desesperançadas. Mas é imprudente desconhecer a impiedosa força da realidade objetiva.
11
Argentina – a anorexia da oposição
29 Nov 2025 Por EMILIO CAFASSI: Por que nenhum "nós" consegue desafiar Milei? A crise de imaginação política que paralisa a oposição argentina
12
Totalitarismo tecnológico ou digital
27 Nov 2025 Por CLAUDINEI LUIZ CHITOLINA: A servidão voluntária na era digital: como a IA Generativa, a serviço do capital, nos vigia, controla e aliena com nosso próprio consentimento
13
O parto do pós-bolsonarismo
01 Dec 2025 Por JALDES MENESES: Quando a cabeça da hidra cai, seu corpo se reorganiza em formas mais sutis e perigosas. A verdadeira batalha pelo regime político está apenas começando
14
A voz da saga
30 Nov 2025 Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO: Prefácio do livro “Melhores contos”, de João Guimarães Rosa
15
Por que a Inteligência artificial não faz justiça? – 2
29 Nov 2025 Por ARI MARCELO SOLON & ALAN BRAGANÇA WINTHER: Os fundamentos da ciência da computação e da filosofia do direito mostram que a Inteligência Artificial é estruturalmente incapaz de realizar justiça, pois esta exige historicidade, interpretação contextual e uma "variável caótica" humana que transcende a mera racionalidade algorítmica
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES