Querô

Jack Bush, Low Sun, 1971
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Por ALESSANDRO ATANES

Considerações sobre o romance de Plínio Marcos

“Atrás desses muros / De tétrico amarelo / Atrás dessas grades / De amarga ferrugem / vivem os vivos / que já estão mortos / vivem os homens
que já não são gente” (Plínio Marcos)

A oralidade e os cenários das obras de Plínio Marcos podem nos fazer cair na armadilha de achar que suas histórias foram escritas de forma espontânea, como se brotassem do gênio marginal. Não é bem assim, pelo menos não em Querô – uma reportagem maldita, de 1976.

Bira Morfético e creolina

Embora seja uma obra de urgência, Querô – uma reportagem maldita levou alguns anos para se concretizar. Lembro da abertura do romance em que o protagonista apresenta sua própria tragédia: “Ou a gente nasce de bunda virada pra Lua, ou nasce cagado de arara. Não tem por onde. Assim é que é. Uns têm tudo logo de saída. Os outros só se estrepam. Não têm arreglo. É um puta de um jogo sujo de dar nojo”.

O protagonista e o “era uma vez” do romance já estavam esboçados em 1968 na coluna “Navalha na Carne”, nome de sua consagrada peça lançada nesse mesmo ano, que Plínio Marcos publicava aos domingos no jornal Última Hora. São contos e crônicas do autor que em 1973 acabaram reunidos pela editora Nórdica no livro Histórias das quebradas do mundaréu, com textos selecionados e organizados pela atriz Walderez de Barros, companheira de Plínio Marcos à época.

Os textos do “repórter de um tempo mau” foram divididos em seções: bandidagem, futebol, samba, macumba, cadeia, amor e diversos. Na seção bandidagem, há dois contos que mostram a gênese do personagem.

Bira Morfético foi o primeiro nome de Querô. É o protagonista do conto homônimo que abre a coletânea. Seu início é bem semelhante ao do romance: “Tem gente que nasce sujo de arara e, por mais que se esforce, não tem jeito de tirar o pé do lodo. O Bira Morfético veio na piorada e ainda conseguiu se atolar mais. Cria maldita dos poleiros das piranhas, ainda pivete ficou entregue a si próprio. A mãe não agüentou o repuxo e, num momento de desespero, bebeu creolina. Sem tomar conhecimento do Bira, a mulher embarcou. Foi falar com Deus. Como não tinha pai, o pivete teve que se valer sozinho. E ele, por ele mesmo, era muito pouco. Quase nada. Ainda mais ali, nas bocas escamosas das quebradas, onde o jogo é bruto e a ordem é o salve-se-quem-puder”.

Essa ficção curta é um conto com ritmo de texto de jornal sensacionalista. Bira Morfético se aproveita do poder aterrorizante de uma chaga na mão e com ela executa seus crimes. A chaga é uma arma em suas mãos. A linguagem é a do relato oral caro a Plínio Marcos, só que sem palavrões, no jornal de domingo, apesar do jargão barra-pesada.

Zico e querosene

Entre o conto de 1968 e o romance de 1976 há um texto intermediário, O batismo, a história do primeiro crime de Zico, o segundo nome de Querô, adolescente que parte para seu primeiro roubo, ação que estrutura a história. Conto de ação, tem como início uma cena em que ele e seus companheiros estão à espreita, na tocaia, esperando pelo caminhão do gás. A origem do personagem é contada em flashback, poucos momentos antes do assalto.

O parágrafo inicial do conto de 1968 é remodelado e Plínio Marcos substitui a creolina por querosene: “Nascera sujo de arara, com urubu pousado na sorte, e quebrou a cara de saída. Nunca soube quem foi seu pai e, da mãe, soube pouco. Lhe contaram que a mulher que o pariu, logo depois de botá-lo no mundo, ficou ruim dos peitos e não se agüentou. Quando se tocou que o cupim ia roer sua caixa de catarro, sem dó e sem remédio, pediu estia pra madame dona da casa, deu o Zico pra ela, bebeu querosene e desertou da piorada que levava”.

Em 1976, a passagem é recriada para se tornar a abertura de outro gênero de história, o romance, ficção longa que se configura pela ação dos personagens em determinado quadro social.

Repito a abertura do romance, acrescida do segundo parágrafo: “Ou a gente nasce de bunda virada pra Lua, ou nasce cagado de arara. Não tem por onde. Assim é que é. Uns têm tudo logo de saída. Os outros só se estrepam. Não têm arreglo. É um puta de um jogo sujo de dar nojo”.

“Eu vim na pior. Com urubu pousado na minha sorte. Me entralhei de saída. O filho da puta do meu pai encheu de porrada a filha da puta da minha mãe e se arrancou, deixando a desgraçada no “ora veja tou choca”. Eu não cheguei a ver o jeito que tinha seu focinho. E, se o corno na hora que saiu largou a grana em cima da mesinha, acho que nem a vaca que me partiu olhou a fuça do bestalhão”.

É nesta versão que ocorre a mudança final do nome: no puteiro todos passam a tratar o filho da suicida, Jerônimo da Piedade, por Querosene, um apelido que detesta, a causa da morte da mãe. Quando começa a freqüentar as turmas dos “pequenos expedientes” pelo cais, ganha enfim o apelido, Querô, de que gosta.

Zico é um nome normal. Bira Morfético é nome de personagem de terror ou de crime. Já Querô é cheio de eufonia, soa bem. De sílaba forte e fechada no final, mantém uma proximidade com a possessiva conjugação “quero”. E nessa operação de redução, tão universal para a geração de apelidos, nome e substância da morte são unificados em um um só termo, forte e inesquecível.

Liev Tolstói

Apesar da linguagem das ruas em torno do cais com que fala Querô, é impossível não notar na frase inicial o eco da clássica abertura que Liev Tolstói escreveu para Anna Kariênina (1878). As duas frases iniciais seguem abaixo:

“Ou a gente nasce de bunda virada pra Lua, ou nasce cagado de arara” (Plínio Marcos). “Todas as famílias felizes são parecidas, cada família infeliz é infeliz a seu próprio modo”. (Liev Tolstói).

Nos dois casos, o era uma vez apresenta duas situações antagônicas e a narrativa nos leva para a trágica. Esse pendor entre extremos foi usado por Plínio Marcos também no prólogo em versos da primeira edição da peça Barrela (1958) que estão em epígrafe a este texto, no qual os vivos já estão mortos e os homens já não são gente.

Esse tipo de construção entre extremos ou contrários aparece também nos títulos de três de suas peças: Jornada de um imbecil até o entendimento (1968), Oração para um pé de chinelo (1969), e O assassinato do anão do caralho grande (1995), em que entrevemos a distância no caso da jornada, o contraste entre alto e baixo na oração e o humor pela distorção no terceiro caso.

Ficção e testemunho

Outra alteração importante entre os contos e o romance é a da voz narrativa. Plínio Marcos abandona a terceira pessoa dos textos de jornal e escreve o romance em primeira pessoa.

Vale dizer que a decisão de escrever Querô na forma de romance foi tomada devido ao obstáculo da censura: li no site oficial do autor que, receoso de que mais uma peça não passasse pela censura, Plínio Marcos decide então publicar sua nova obra em outro formato, desfrutado individualmente, sem a catarse do palco.

Sem a chaga de Bira Morfético, a única arma que resta a Querô, porta-voz de si mesmo, é o relato que conta a um repórter. O jornal, veículo das versões anteriores da história, passa a fazer parte do próprio romance, personalizado na figura do entrevistador. Ao ser ficcionalizada, a imprensa passa de sujeito da informação a objeto literário, e a entrevista, gênero jornalístico, dá corpo à estrutura do enredo, apropriação feita pelo autor que se mostra no subtítulo “reportagem maldita”.

Dos dez capítulos do romance, os oito primeiros nos trazem a voz do protagonista que conta sua história ao repórter, mecanismo narrativo que se utiliza do efeito de verdade do testemunho que toma o lugar da força da encenação e da presença dos atores no palco.

Essa força do testemunho é analisada pela ensaísta argentina Beatriz Sarlo em Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. A literatura testemunhal, devido ao sumiço e da destruição de documentos promovidos pelo terrorismo de Estado dos regimes militares da América do Sul, passa a desempenhar importante papel na reconstituição do que ocorreu nos porões das ditaduras e na condenação dos responsáveis pela violação dos direitos humanos de milhares de cidadãos, principalmente na Argentina, onde o testemunho e os relatos de memória de presos políticos foram considerados provas:

“Como instrumento jurídico e como modo de reconstrução, ali onde outras fontes foram destruídas pelos responsáveis, os atos de memória foram uma peça central da transição democrática, apoiados à vezes pelo Estado e, de forma permanente, pelas organizações da sociedade. Nenhuma condenação teria sido possível se esses atos de memória, manifestados nos relatos de testemunhas e vítimas, não tivessem existido”.

Beatriz Sarlo aponta suas conclusões para o futuro, a partir de um presente em que o relato pessoal encontra-se desgastado pela proliferação de autobiografias, autoficções, testemunhos religiosos, cinebiografias, blogs, invasões de privacidades de celebridades, revistas de fofocas, autoelogios disfarçados em relatos de sucesso empresarial ou amoroso e por aí afora.

Mas fiquemos com o que as análises de Sarlo sobre a literatura de testemunho podem dizer de Querô. Plínio Marcos acerta, em primeiro lugar, porque o relato da experiência em primeira pessoa pressupõe “uma presença real do sujeito na cena do passado”.

Ao transformar o protagonista em narrador, o autor potencializa o alcance de seu discurso; a experiência ganha tons de verdade e dá fidelidade ao ocorrido. A literatura de testemunho se utiliza dos sentidos, a experiência e seu relato unem o corpo à voz.

Por outro lado, Beatriz Sarlo alerta para a impossibilidade de contarmos com o relato integral sobre a experiência dos prisioneiros políticos ou dos campos de concentração: “A verdade do campo de concentração é a morte em massa, sistemática, e dela só falam os que conseguiram escapar a esse destino; o sujeito que fala não escolhe a si mesmo, mas foi escolhido por condições também extratextuais. Os que não foram assassinados não podem falar plenamente do campo de concentração; falam então porque outros morreram, e em seu lugar. Não conheceram a função última do campo, cuja lógica, portanto, não se operou por completo neles. Não há pureza na vítima que tem condições de dizer “fui vítima”. Não há plenitude nesse sujeito”.

Esse mecanismo faz-se presente no romance de Plínio Marcos quando Querô é fuzilado pela polícia entre o oitavo e o nono capítulo. É quando ocorre a troca de narradores. Querô não termina seu relato justamente porque foi “plena” sua experiência no “campo de concentração”. Enfim, para que a história de Querô acabe de ser contada, o jornalista assume a narração. Ele, que não reúne condições de dizer “fui vítima”, mas que por dever de ofício tem a função de relatar a verdade dos fatos, mito do qual o autor muito bem se aproveita para amplificar o efeito de realidade que tem o romance.

O excesso de subjetividade no mundo contemporâneo, essa profusão de “eus” exemplificada acima, tem como antídoto, aponta Beatriz Sarlo, a própria subjetividade do fazer artístico, diferente da subjetividade narcisística porque é ponte, e não muro, entre os seres humanos. Nesse século já em sua terceira década, é principalmente a literatura que assume a função de substituir o desgastado discurso da primeira pessoa.

Termino com o último parágrafo de Tempo passado, um mote de Beatriz Sarlo que tornei o fio condutor de minhas pesquisas: “A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo”.

É o que fez Plínio Marcos ao se apropriar das características dos relatos testemunhais e jornalísticos para fazer ficção. O depoimento garante força narrativa, conteúdo social e escolhas estéticas. Isto é, as denúncias sociais que lemos no livro mantêm-se fortes não só porque os problemas ali relacionados praticamente não se alteraram, mas sobretudo porque as escolhas narrativas do autor fazem a história funcionar a cada releitura. Por isso a obra resiste.[1]

*Alessandro Atanes é jornalista e mestre em história social pela USP. Autor de Esquinas do mundo: ensaios sobre história e literatura a partir do porto de Santos. [https://amzn.to/3BLimAU]

Referência


Plínio Marcos. Querô: uma reportagem maldita. São Paulo, Edição do Autor, 1976, 100 págs.

Bibliografia


Plínio Marcos. Nas quebradas do mundaréu. São Paulo: Mirian Paglia Editora de Cultura, 2004 (1ª edição de 1973).

Plínio Marcos. Obras teatrais. Volume 1 Atrás desses muros. Organização Alcir Pécora. Rio de Janeiro. Funarte, 2016.

Plínio Marcos. Obras teatrais. Volume 3 Pomba roxa. Organização Alcir Pécora. Rio de Janeiro. Funarte, 2016.

Liev Tolstói. Anna Kariênina. Tradução Irineu Franco Perpetuo. Prefácio Thomas Mann. Coleção Leste. São Paulo: Editora 34, 2023.

Beatriz Sarlo. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2007.

Nota


[1] Querô – uma reportagem maldita ganharia em 1979 uma versão para os palcos, o ambiente natural de Plínio Marcos. Essa e todas as demais peças do dramaturgo podem ser lidas e baixadas na coleção em seis volumes de suas Obras Teatrais editada pela Fundação Nacional de Artes (Funarte), com organização e aparato crítico de Alcir Pécora, estabelecimento de textos por Walderez de Barros e iconografia de Ricardo de Barros.


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