Letalidades e atrocidades

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Por EUGÊNIO BUCCI*

A democracia se esvai quando o poder público, que deveria proteger, se torna o agente de um terror que divide a cidade entre os que têm direito à vida e os que são relegados ao fuzilamento

1.

“A ditadura segue presente nas periferias”. A frase estava no pequeno cartaz que me fez companhia na Catedral da Sé, na noite de sábado, 25 de outubro, durante o culto inter-religioso em memória dos 50 anos de assassinato de Vladimir Herzog. Era um cartaz em papel bem firme, plastificado, quase do tamanho de uma página de jornal.

De um lado, trazia a foto de Manoel Fiel Filho, o metalúrgico alagoano que foi morto em 1976 pela repressão política da ditadura. Do outro lado, as palavras certeiras sobre a presença destrutiva da violência policial nos bairros mais pobres das metrópoles brasileiras.

Eu levantei o retrato muitas vezes durante o culto. Sempre que um discurso lembrava os desaparecidos ou dos que tombaram sob tortura, como o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manoel Fiel Filho, eu o erguia. Dezenas de outras pessoas presentes, com posteres estampados com outros rostos, também elevavam os seus.

O efeito cênico se traduzia em comunicação didática e expressão política: a história existe quando dela não nos esquecemos – e, se dela não nos esquecemos, sabemos tecer o presente. Fora disso, o que resta é a selva. A memória dos crimes perpetrados pelo arbítrio que varreu o país há cinquenta anos nos ajuda a vencer aqueles que querem reeditá-lo. Por isso dizemos: ditadura, nunca mais.

O problema é que persistem entre nós, até hoje, resquícios da violência de Estado. Voltemos os olhos na direção das periferias.

Anteontem, na terça-feira, a chamada “megaoperação” policial que varreu os complexos do Alemão e da Penha, na cidade do Rio de Janeiro, a pretexto de combater as atividades criminosas do Comando Vermelho, deixou um saldo tenebroso. Na noite de terça, a contagem oficial chegava a 64 mortes. Quatro das vítimas eram policiais em serviço. Na quarta-feira, a totalização bateu na casa dos 128. Na quinta de manhã, tinha recuado para 117. O jornalista Jamil Chade observou: no mesmo dia, 28 de outubro, morreram em Gaza 104 pessoas.

2.

Todos esses óbitos são inaceitáveis, sob qualquer aspecto, mas a cifra carioca, neste momento, estarrece mais. O Rio é uma cidade em paz, ao menos em tese. No entanto, quem mora em algumas comunidades vive sob permanente estado de terror. Não há outra palavra: estado de terror.

Pior ainda, um estado de terror cujo pavio pode ser acesso pela autoridade pública. Pensemos um pouco sobre o que aconteceu na terça-feira. A fúria dos infernos só desabou sobre o chão, daquele jeito, porque as tropas do governo do Estado, com sua movimentação estabanada e sua descoordenação estapafúrdia, precipitaram o caos. As mortes foram causadas diretamente pelos agentes da lei.

Como interpretar o que houve? O que se passa na cabeça dos governantes? Será que não levam em conta as pessoas que moram naquilo que elas tomam como seu teatro de guerra eleitoreira? A autoridade não pensa na segurança de sua gente quando despeja seus soldados espetaculosos e ineficientes sobre as ruelas?

É a inversão total: no Rio de Janeiro dos nossos dias, a farda e os coturnos deflagram o morticínio, em vez de impedi-lo. A frase do cartaz que eu segurava foi, uma vez mais, comprovada pelos fatos: nas periferias, o terror é a lei.

Mas não só nas periferias. Se é assim nas periferias, é assim necessariamente na cidade inteira. É assim não só porque as aulas em toda parte tiveram de ser interrompidas, não só porque o comércio foi fechado e as igrejas baixaram os seus portões de ferro. É assim não só porque uma bala perdida alcança corpos além das fronteiras de classe. É assim, também e principalmente, porque ninguém está a salvo na metrópole se as maiorias podem ser fuziladas a qualquer momento.

Até quando vamos sustentar a ilusão macabra de que um país pode se dividir em dois regimes sem se perder de si mesmo? Ou o Brasil é um só, com direitos iguais para todo mundo, ou não será Brasil nenhum. Ou paramos com essa doença de acreditar que os direitos dos de cima têm precedência sobre os direitos dos de baixo, ou nunca chegaremos ao um Estado democrático.

Onde o poder público descuida da integridade física dos mais pobres, o regime democrático não passa de uma fachada de papelão esburacada por tiros, chamuscada por pólvora queimada e borrifada de sangue. Onde o governante despreza a vida de sua gente, o que existe é um antipoder público ou um poder antipúblico: uma extensão descarada do crime, não mais uma construção do espírito.

Repito o número: 128 mortos. Na conta estão os que não tiveram direito a julgamento e os inocentes que iam trabalhar, que passeavam na calçada, que queriam comprar um cigarro. No território em que faleceram não há democracia.

A repercussão na imprensa internacional é a pior possível. Ainda bem. A indignação do mundo, nesta hora, só nos ajuda. Esse governo, que chacina seu povo, esfacela os fundamentos da cultura democrática e reforça o império da violência ditatorial, esse governo que se comporta como um bando de extermínio, terá que responder por seus atos. Enquanto isso, a lógica da ditadura marca presença.

*Eugênio Bucci é professor titular na Escola de Comunicações e Artes da USP. Autor, entre outros livros, de Incerteza, um ensaio: como pensamos a ideia que nos desorienta (e oriente o mundo digital) (Autêntica). [https://amzn.to/3SytDKl]

Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo [https://www.estadao.com.br/opiniao/eugenio-bucci/letalidades-e-atrocidades/?srsltid=AfmBOooHwdrYUdShU7o0QzhDxP94lYhnd2BaRCeOxI4Imc1BpSVJoDmg].

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