A ascensão da cultura woke

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Por VIVEK CHIBBER*

A direita ataca o ‘wokismo’ como se fosse marxismo, a esquerda o defende como se fosse progressismo. Nenhum dos dois percebe que ele é, acima de tudo, o sintoma de uma esquerda que esqueceu como falar de classe

Nos últimos anos, surgiu um conjunto de livros e artigos de análise da cultura “woke” enquanto um fenômeno social contemporâneo. Embora não haja consenso em torno de seu significado, a maioria dos analistas concorda que se trata, em essência, de uma mutação da “política de identidade”.

A cultura “woke” busca a justiça social principalmente nas vertentes da raça, do gênero e da sexualidade, tal como a política de identidade, mas de uma forma mais militante e intolerante. Ela emergiu por meio de uma mudança na política de identidade que levou ao abandono das raízes econômicas da justiça social.

Enquanto a política de identidade se mostrou sempre mais parca em suas ambições do que a esquerda mais tradicional, ela tendia a coexistir pacificamente com as tradições socialistas e liberais. Já a sua descendente, dita acordada, assume uma postura hostil a ambas e é mais estridente quando pressiona por seus objetivos sociais e culturais.

É muito menos hesitante em restringir a fala e atribuir motivos; é mais cética, até pessimista, sobre a superação das barreiras culturais ou raciais; ademais, é mais draconiana em estreitar o alcance do debate.

A ascensão da cultura “woke” provocou muitas contendas e discussões. Grande parte delas se concentrou no modo como redefine o progressismo. Menos comum tem sido uma análise de suas raízes sociais e dos seus propulsores institucionais. Mas para que o fenômeno seja devidamente explicado, em vez de vir a ser simplesmente descrito, é necessária alguma análise de sua gênese e de seus fundamentos sociais.

À esquerda, a cultura “woke” é frequentemente apresentada como uma busca agressiva por justiça social, enquanto à direita, é vista como uma deformação, um resultado da aquisição do marxismo cultural por instituições cívicas e educacionais. Mas, como argumento neste artigo, não penso que ambas essas visões estejam corretas.

Em contraste com seus defensores de esquerda, sugiro que ela expressa um profundo estreitamento do que conta como reparação social; e contra a direita, mostro que seu sucesso se deve não à hegemonia, mas a um recuo da esquerda radical. A cultura “woke” vem a ser a ideologia orgânica de uma certa elite estreita, que se encontra embriagada de poder e vem sendo apoiada pelos principais centros de poder da política americana.

O caminho não percorrido

Um dos desenvolvimentos mais interessantes nos estudos sobre o movimento pelos direitos civis é a redescoberta dos fundamentos radicais e trabalhistas do movimento. Um fluxo constante de pesquisas científicas históricas e sociais mostrou que, embora a igualdade política sempre tenha sido um objetivo central do movimento, seus líderes nunca endossaram a separação dos direitos políticos dos direitos econômicos. Isso fluiu do fato de que muitos dos organizadores mais importantes de tais movimentos vieram das tradições socialistas e comunistas.

De fato, para autores como Philip Randolph, Bayard Rustin, Tom Kahn e outros, os avanços no campo político seriam severamente restringidos se os negros americanos permanecessem atolados na pobreza. Os direitos civis foram, portanto, considerados apenas um componente de um conjunto maior de direitos sociais, no centro do qual estavam os empregos, a moradia, a saúde e a educação. Em outras palavras, a agenda para a justiça racial e de gênero só seria efetivada se estivesse embutida em uma ampla redistribuição do poder econômico.

Esse foco não ficou limitado ao círculo estreito em torno de Martin Luther King Jr. Ao contrário, era uma expressão de uma ampla corrente política que havia crescido em influência social desde a década de 1930. Liderada principalmente pelo Congresso de Organizações Industriais (COI) e por uma intelectualidade negra radical em torno do Partido Comunista, nucleada em organizações cívicas, a justiça racial foi, em grande medida, identificada com as necessidades e aspirações da classe trabalhadora negra americana. Entendeu-se que a extensão da igualdade formal só teria significado limitado em suas vidas se eles não tivessem acesso aos bens econômicos básicos.

Eis o que Martin Luther King disse certa vez: “sabemos bem que não basta fazer a integração daqueles que comem em lanchonetes e restaurantes. De que adianta um homem poder comer em um espaço comum para todos se ele não ganha dinheiro suficiente para comprar um hambúrguer e uma xícara de café?” Martin e seus associados não desistiram dessa orientação depois que a Lei de Direitos de Voto de 1965 foi aprovada. Para eles, a lei era apenas um passo em uma luta mais longa por toda a gama de direitos dos negros americanos.

Essa ambiciosa visão social-democrata de justiça racial só poderia avançar por meio da força de sua base trabalhista e ativista. Mas, no início dos anos 1970, essa base foi severamente enfraquecida e, em seguida, na década seguinte, foi lentamente desmantelada.

Ora, precisamente por causa das mudanças institucionais obtidas pelo movimento dos direitos civis, vários programas políticos e sociais promoveram e destacaram da base um crescente estrato profissional que se tornou uma elite das populações minoritárias. Na década de 1980, havia uma camada significativa de políticos negros e pardos nos níveis local e nacional, bem como um crescimento substancial de pequenas empresas pertencentes a minorias – e todas elas estavam firmemente conectadas ao Partido Democrata.

À medida que a influência da cultura do trabalho diminuiu e a cultura das elites minoritárias se desenvolveu, houve uma mudança natural nos objetivos e ambições dos movimentos por justiça racial, de gênero etc. Enquanto sua encarnação anterior expressava, por exemplo, uma agenda ligada aos interesses dos negros da classe trabalhadora, no final da década de 1980 as ideias de justiça racial passaram a refletir os interesses de setores mais elitizados. Sendo assim, por causa de sua proximidade com o Partido Democrata, esses interesses passaram a estar articulados em propostas políticas e nas campanhas eleitorais.

Dos direitos econômicos à política de identidade

Como resultado dessa mudança no cenário político, na época do primeiro governo Clinton, a justiça procurada havia já se transformado no que hoje chamamos de “política de identidade”. A política daí derivada, no entanto, despojou-se em grande de seu compromisso anterior com a redistribuição da renda e riqueza, ou seja, com a conquista de direitos econômicos.

Focou-se na remoção das barreiras à mobilidade ascendente para as mulheres, para os negros, assim como para as outras minorias. O seu foco se estreitou na busca de redução das disparidades principalmente dentro dos escalões superiores – e não mais entre as classes econômicas.

Mas, embora essa concepção mais estreita de justiça tenha se tornado hegemônica na virada do século, naquele momento ela ainda não havia se transmutado no que hoje é conhecido como cultura “woke” daqueles que estão supostamente acordados. Essa mudança foi vista por muitos como eliminação de certos pontos cegos e de erros da esquerda, já que os problemas associados às discriminações não haviam recebido muitas vezes o devido valor.

Por isso mesmo, pareceu a muitos que ela vinha preencher uma agenda progressista que não tinha até então aberto espaço para certas ambições redistributivas, em vez de satisfazer completamente tais ambições.

Além disso, mesmo que essa encarnação da política de identidade criticasse uma postura mais universalista, ela ainda não chegara ainda a castigar esta última como inimiga da erradicação das diferenças, de gênero e raça principalmente.

Em outras palavras, enquanto avançava uma agenda voltada para grupos específicos – minorias, mulheres – não rejeitava as agendas políticas voltadas para os cidadãos como um todo ou para a população em geral. Em vez de uma rejeição total do universalismo e da redistribuição, a política de identidade era frequentemente apresentada como um corretivo para os pontos cegos do universalismo.

Era na orientação política do Partido Democrata que se refletia o delicado equilíbrio entre essa concepção mais estreita de direitos e as ambições anteriores e mais grandiosas da era dos direitos civis. Nos anos desde a presidência de Clinton até o primeiro governo Obama, os democratas se afastaram constantemente de sua base da classe trabalhadora, apoiando-se mais nos eleitores suburbanos e com formação universitária.

A opção cada vez mais explícita pelas lógicas dos mercados, o recuo em relação aos objetivos redistributivos e a constrição da justiça social às iniciativas antidiscriminação e às guerras culturais – tudo isso refletia a maior dependência do Partido Democrata de sua base abastada. E isso se deu em detrimento de sua âncora tradicional nos sindicatos e na classe trabalhadora.

Mas os líderes desse partido também entenderam que, mesmo enquanto estavam rebaixando a posição do movimento em prol dos trabalhadores em geral, eles não podiam se dar ao luxo de excluí-lo da agenda. E assim alguns acenos vestigiais voltados para direitos econômicos de base ampla e para as medidas antipobreza permaneceram visíveis na presidência de Barack Obama.

Sanders, Floyd e a resposta da elite

No final do segundo governo Barack Obama, os democratas pareciam ter elaborado uma estratégia política viável para o futuro próximo. Eles criaram uma coalizão eleitoral baseada principalmente nos subúrbios e na população com ensino superior; mantiveram, assim, uma base sólida em comunidades negras, as quais foram cuidadosamente levadas a formarem minorias de elite. Constituíram, assim, um bloco eleitoral confiável; conservaram, ademais um apoio suficiente da classe trabalhadora para fazer as coisas funcionarem.

Tudo isso foi colocado a serviço de um programa amplamente neoliberal, embora com algumas almofadas muito finas para suavizar o golpe das forças de mercado sobre a população. A candidatura de Hillary Clinton seria a apoteose desse processo – uma passagem do bastão de um afro-americano (homem) para uma mulher (branca), simbolizando a ascensão de grupos historicamente pouco representados das margens da sociedade para o ápice do poder.

A promessa desse modelo foi dramaticamente derrubada, em 2016, pelo surgimento explosivo de Bernie Sanders. Em sua candidatura à indicação democrata, Sanders articulou uma agenda redistributiva, que não apenas derrubou quase todas as panaceias adotadas pelos democratas desde a era Clinton, mas também provocou um nível de apoio de massa que ninguém no partido havia previsto.

O plano de Bernie Sanders sobre questões econômicas apresentado em sua campanha ameaçou perturbar o que os líderes do partido viam como um modelo político viável e desejável – qual seja ele, um padrão que se afigurava aceitável para seus doadores endinheirados e que também reunisse uma coalizão eleitoral estável para sustentá-lo.

Hillary Clinton, em um discurso agora famoso no dia 16 de fevereiro de 2016, proferido para repelir o desafio de Sanders, perguntou se um enfraquecimento dos bancos e das finanças poderia resolver questões históricas de discriminação e exclusão cultural. Questionou retoricamente se as medidas econômicas poderiam resolver os problemas de discriminação racial e de gênero. Assim, ela efetivamente respondeu a Sanders recorrendo à política de identidade elitista.

Mais sutilmente, a sua resposta ao desafio posto por ele sinalizou uma mudança na atitude da liderança do partido em relação às demandas econômicas. Enquanto sua liderança centrista até então tendia a pelo menos dar um aceno retórico às demandas redistributivas, agora optou por caluniá-las abertamente. Em vez de ser a ala esquerda do possível, a política de identidade foi mobilizada para impedir possibilidades de mudanças mais radicais.

Embora a candidatura de Bernie Sanders tenha perdido nas convenções, a sua campanha continuou, improvavelmente, a ganhar força antes das primárias de 2020. E seu sucesso surpreendente nas fases iniciais das eleições primárias levou a uma maior consolidação do Partido Democrata contra sua ala populista.

No que parecia ser um movimento calculado, todos os candidatos, exceto Joe Biden e Bernie Sanders, retiraram-se da indicação que ocorreu numa “super terça”, em 2019. Tudo o que era necessário era que James Clyburn, um representante negro da Carolina do Sul e um importante corretor partidário, apoiasse Joe Biden: ele o fez em 26 de fevereiro de 2020; anunciou, então, o alinhamento fatal da liderança negra do partido contra a insurgência populista de Bernie Sanders.

Na primavera de 2020, uma das principais prioridades do Partido Democrata era marginalizar o mais possível a ala associada à Bernie Sanders. De fato, Joe Biden estava pelo menos tão preocupado em se distanciar de Bernie Sanders quanto em confrontar Donald Trump. Foi nesse contexto que o horrível assassinato de George Floyd paralisou a nação. Foi um momento em que a necessidade premente de justiça racial foi trazida para o topo da agenda política.

Nesse momento doloroso, passou a existir a possibilidade de ancorar a agenda do partido nas ambições que haviam guiado o movimento pelos direitos civis. Foi, pois, um momento em que um movimento desencadeado pelo assassinato brutal de um homem negro da classe trabalhadora intensificou os apelos para integrar os direitos econômicos em um movimento por justiça racial. Contudo, isso não se realizou já que o equilíbrio de poder entre as diferentes forças sociais que gravitavam nesse partido gerou um resultado previsível.

Liderada por Jamie Dimon, CEO do JPMorgan Chase, a comunidade corporativa apoiou a visão mais estreita da política de identidade que os democratas vinham nutrindo há alguns anos. Abordar o problema do racismo sistêmico foi interpretado como uma busca agressiva pela diversidade nas fileiras profissionais e um policiamento mais militante da esfera cultural.

O ímpeto que vinha se acumulando para a redistribuição universal, remontando à campanha do Occupy Wall Street, recuou rapidamente. Enquanto a ala associada à Bernie Sanders do partido via seu programa de justiça racial como parte de uma panóplia maior de mecanismos redistributivos, o partido agora encontrava um veículo para separar o antirracismo da antipobreza e da redistribuição. Os programas universalistas agora eram denegridos como uma rejeição explícita da justiça racial e de gênero, em vez de um meio para esse fim.

O deslize da identidade para o “woke”

Nesse momento histórico, o deslizamento das questões de raça, gênero etc. da política de identidade para a cultura “woke” se acelerou a um ritmo vertiginoso. Os seus componentes culturais – é claro, já haviam sido devidamente incubados. Já se haviam se acumulado nos anos que antecederam 2020 certos níveis suficientes de particularismo, intolerância, cancelamento e domínio da classe profissional.

Assim, um adeus ao universalismo já havia sido dado. Destacar este momento não vem a ser sugerir, de forma alguma, que a cultura “woke” fora inventada naquele ano. Diferentemente, consiste em mostrar que ela, como tal, foi agora catapultada para um lugar que nunca havia sido capaz de ocupar antes daqueles meses fatídicos. Foi nesse ponto que a captura do movimento antirracista pela elite foi consumada.

Ora, o ganho inesperado para os profissionais e gerentes pertencentes às minorias pareceu enorme. Ainda há escassez de evidências sistemáticas, mas as pesquisas que foram feitas apontam nessa direção. Os dois domínios em que esses quadros superiores mais prosperam foram provavelmente aqueles das universidades e do setor corporativo.

Tudo isso aconteceu no mesmo momento em que o financiamento das faculdades comunitárias, das moradias públicas etc. continuou a fracassar. Sob a bandeira do antirracismo, as comportas foram abertas para instituições que atendiam a uma elite negra e parda; enquanto isso, manteveram-se quase fechadas as portas das instituições que atendiam às minorias da classe trabalhadora.

A essência dessa abordagem de elite ao antirracismo era desviar a atenção das estruturas sociais e das relações de classe para a individualidade das pessoas e seus atributos psicológicos. Isso marcou uma inversão completa da perspectiva que impulsionara a liderança progressista do movimento pelos direitos civis.

Após a aprovação da Lei de Direitos de Voto, Rustin e King voltaram os seus esforços para alcançar uma redistribuição econômica massiva. Mas agora, sob a bandeira do novo antirracismo e do novo feminismo, a atenção se estreitou para duas questões fundamentais: o grau em que as instituições de elite eram abertas à diversidade e a necessidade de mudar a psicologia individual e o comportamento individual em busca de um antídoto para o “racismo sistêmico”.

Tudo isso serviu para desviar a atenção do poder econômico e político das corporações sobre seus funcionários e sobre a população minoritária de forma mais ampla, para a constituição de culturas empresariais supostamente mais abertas; buscou-se especialmente a diversidade de seu corpo gerencial.

O mesmo ocorreu no âmbito da educação. A ansiedade por justiça racial e de gênero rapidamente se traduziu num foco na cultura interna das instituições acadêmicas – ou seja, em seus currículos, requisitos de graduação, conteúdo da bolsa de estudos etc. – assim como na diversidade do corpo gerencial e do corpo docente.

Embora houvesse algumas vozes argumentando que a grande maioria dos estudantes minoritários estava matriculada em faculdades comunitárias e universidades públicas, onde as principais questões eram financiamento e retenção, elas foram abafadas por um foco na ação afirmativa e na diversidade do corpo docente, especialmente nas instituições de elite.

Tudo isso, sob a bandeira da erradicação do “racismo sistêmico” em particular, representou um ganho inesperado para as classes profissionais e gerenciais minoritárias. Quaisquer que sejam as suas implicações morais, isso simplesmente refletia o equilíbrio de poder em vigor naquele momento – não entre a América branca e não branca, mas dentro da América não branca. A cadeia de eventos que levou ao assassinato de Floyd criou uma oportunidade política para as elites negras e pardas emergentes, e estas capitalizaram isso com notável vigor.

Tudo isso encontrou abrigo na cultura intelectual que prevalecia dentro da academia. O fator mais significativo para que isso ocorresse foi o enfraquecimento da cultura liberal e socialista clássicas, sob os golpes de martelo do pós-estruturalismo, da teoria pós-colonial e de várias formas de essencialismo racial, todos céticos ou hostis aos princípios do iluminismo. O surgimento de tendências filosóficas anti-iluministas na década de 1980 associadas a pensadores como Michel Foucault, Jacques Derrida e outros, foi devastador para os dois fundamentos do pensamento progressista moderno, liberalismo e socialismo.

Mergulhada no antirracionalismo das filosofias pós-68, a cultura universitária passou a rejeitar os mesmos valores que sustentaram a liberdade acadêmica na era do pós-guerra – o compromisso com o debate racional, a busca do progresso científico e o compromisso com a liberdade de expressão. Enquanto isso, o notável crescimento de uma abordagem essencialista de raça, gênero e etnia minimizou as divisões econômicas dentro dos grupos, ao mesmo tempo em que elevava os abismos econômicos e sociais existentes.

Ora, a cultura “woke” obscureceu o fato de que o antirracismo e o feminismo assim professados atendiam apenas as elites dentro das minorias americanas. Eis que a própria existência de divisões dentro das raças e dos gêneros estava ao mesmo tempo sendo minimizada.

O futuro da cultura “woke”

O deslize da política de identidade para a cultura “woke” dos despertos se deveu a dois fatores. O primeiro foi uma espécie de pânico da elite com o surgimento de um movimento genuinamente popular por trás de Sanders. A segunda foi uma ansiedade compreensível dentro da cultura mais ampla para lidar com o racismo após o assassinato de Floyd. Ambas as razões já se esmaeceram substancialmente agora.

A campanha populista insurgente dentro do Partido Democrata está hoje consideravelmente enfraquecida, se não totalmente marginalizada. Embora a esquerda de Sanders continue a ter alguma influência, não há sinal de que ela possa derrubar a coalizão eleitoral democrata.

Além disso, mesmo que as questões raciais e de gênero continuem a ser salientes na cultura política, elas não prendem mais a atenção do público como há cinco anos. Isso significa que as forças propulsoras que empurraram a política de identidade para suas formas mais militantes e intolerantes não são mais tão fortes quanto o foram no passado recente.

Há atualmente uma preocupação genuína dentro do Partido Democrata e das instituições públicas de ensino que o iliberalismo e o autoritarismo da cultura “woke” tenham alimentado uma reação pública de direita. Ora, essa reação fortaleceu grupos políticos e sociais que sempre foram hostis não apenas em relação ela, mas a toda a agenda dos direitos civis.

Sob a proteção de Donald Trump, figuras como Elon Musk, Christopher Rufo, Peter Thiel e outros foram encorajados a se oporem à cultura “woke” e às suas bandeiras. Nesse ensejo, eles estão se opondo também às reformas substantivas que os movimentos dos anos 1960 realmente alcançaram. Os democratas estão, portanto, muito menos comprometidos em promover a cultura “woke” do que em 2021.

Com a ameaça de uma onda de poder popular agora recuando no horizonte político, fica claro que a comunidade empresarial não sente mais a necessidade de absorver os custos pessoais e organizacionais da cultura dos “despertados”.

À medida que os centros de poder reais deixaram de apoiá-la, é provável que a cultura “woke” recue para um estilo mais convencional de política de identidade. Certamente, no mundo corporativo, a sorte foi lançada para expurgar as práticas mais diretamente associadas à cultura “woke”, tais como os programas de diversidade e os treinamentos antirracistas etc.

Mas, mesmo no mundo acadêmico, parece improvável que tenha continuidade a elevação do antirracismo e o empoderamento das mulheres a um lugar central na missão educacional. De fato, o resultado mais provável é uma reversão de medidas que foram implementadas nas duas últimas décadas, como a proteções para minorias e para os deficientes.

Eis que os conservadores agora veem esses objetivos como alcançáveis sob a bandeira da oposição à cultura “woke”. O que parece firmemente fora de alcance, dado o atual equilíbrio de forças, é um retorno espontâneo à versão social-democrata do antirracismo e do igualitarismo. Isso exigirá mudanças políticas e organizacionais de monta.

*Vivek Chibber é professor de sociologia na Universidade de Nova York. Autor, entre outros livros, de The class matrix: social theory after the cultural turn (Harvard University Press). [https://amzn.to/43bcyvo]

Tradução: Eleutério F. S. Prado.

Publicado originalmente em The Ideas Letter 36


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