Por RENATO DAGNINO*
Que o poder de compra do Estado seja alocado para expandir as redes solidárias
1.
As redes de produção, consumo, distribuição e finanças solidárias, apesar do escassíssimo apoio governamental que recebem quando comparado com o orientado para as de propriedade privada, têm mostrado o quanto podem contribuir para um futuro melhor.
Integrantes do movimento da economia solidária vêm apontando, mediante argumentos de natureza socioeconômica e ambiental, simulações baseadas em evidências empíricas, experiências históricas, declarações de organizações supranacionais etc., a necessidade de que agentes públicos responsáveis por aqueles apoios se pronunciem sobre o assunto.
Diferentemente do que fiz em vários artigos publicados na mídia de esquerda,[i] este trabalho, com um foco mais na politics do que na policy, pretende uma interlocução com uma parcela desses agentes públicos, as lideranças políticas e intelectuais de esquerda.
Ele tem como ponto de partida o que o movimento da economia solidária tem sugerido a respeito da alocação dos quase 18% do PIB que o Estado hoje compra das redes de propriedade privada para proporcionar os bens e serviços a que temos direito em troca do imposto que pagamos. Mais concretamente, à possibilidade de que parte da compra pública seja orientada àquilo que as redes de economia solidária estão capacitadas a produzir.
Ou seja, de que o poder de compra do Estado, à semelhança do que ocorre em todo o mundo e crescentemente entre nós com o Nova Indústria Brasil, que está adicionando 1% do PIB anual ao já considerável apoio que recebem as redes privadas, seja alocado para expandir as redes solidárias.
Este trabalho toma esta “deixa” adentrando a um terreno delicado para a esquerda e que a direita cinicamente gosta de tergiversar.
Terreno que, embora com foco no “empreendedorismo” (e não na economia solidária), nos empreendedores individuais que podem prestar serviços a órgãos governamentais, começa a ser explorado por aqueles agentes públicos.
Eles parecem ter assimilado a ideia que abordo aqui. Demonstram haver compreendido o papel que pode jogar o poder de compra do Estado na criação de condições favoráveis à implementação de seu projeto político. Tendo em vista que é improvável que o capitalismo brasileiro possa empregar mais do que os 40 milhões (dos mais de 150 em idade de trabalhar) que ela necessita, a eles lançaram recentemente o Programa Contrata+ a que me referi em artigo no site A Terra é Redonda.[ii]
2.
Prosseguindo com a intenção de diminuir o risco associado à diminuição da capacidade de governar (ou governabilidade) da atual coalizão de governo é que busco complementar esse Programa-plataforma apresentando uma operação daquelas que Carlos Matus chamaria de emergencial.
Ela compreende um público bem maior do que os cerca de 6 milhões de empreendedores individuais no âmbito dos quais a coalizão pretende com este Programa obter simpatizantes. Essa complementação busca abarcar um contingente uma ordem de grandeza superior: os 80 milhões que nunca tiveram e provavelmente nunca terão o emprego e o salário que a classe proprietária há séculos promete aos trabalhadores.[iii]
Dado que a “operação” se baseia na noção trivial de que a governabilidade depende da obtenção do apoio dos mais pobres nas eleições de 2026, e que para isto é necessário a alocação de recurso público em ações de governo que os beneficiem, começo, para provocar sua concepção, indicando algumas de suas condições de contorno.
A primeira, é de que esse recurso não poderá provir do orçamento, limitado que está pelo ajuste fiscal acordado com a direita e pelas emendas parlamentares. As quais, e isso é importante para o que segue, tenderão a ser destinadas pela direita a atrair o voto dos mais pobres em 2026.
A segunda condição de contorno é que a compra pública, hoje inteiramente orientada à empresa, decorre em boa medida de ações não condicionadas por esses limitantes. Na sua maioria, elas são adstritas a decisões que podem ser tomadas nas várias instâncias do Estado brasileiro por agentes públicos aderentes à coalizão. E de que é possível, como se tem exaustivamente mostrado, que alocar a compra pública junto à economia solidária pode atrair o voto dos mais pobres.
Tudo isso permite seguir esboçando a “operação” de orientar uma parte da compra pública para aquisição de bens e serviços produzidos por redes de economia solidária visando a conquista desse voto. O que faço, a título de “primeiro chute”, é baseado no que minha geração de engenheiros chamava de “conta de guardanapo”.
Para formar uma ideia de quanto representa atualmente a compra pública de redes solidárias tomei como referência o fato de que, se não o único, o mais conhecido programa governamental derivado deste objetivo é o que diz que 30% da merenda escolar deve ser adquirido da agricultura familiar.
Embora conste que uma parcela da mesma não se enquadra na categoria de economia solidária e que tal porcentagem não tenha sido alcançada, parto do fato de que ela representa 30% dos 5,4 bilhões de reais anuais alocados ao Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE); isto é, 1,8 bilhões. Ou seja, algo que não chega a 0,1% dos quase de 2 trilhões de reais que perfazem a compra pública ou a, tão-somente (como soíamos dizer), 0,05% do PIB.
3.
Trabalhei também numa outra ponta do “planejamento” da “operação”. Para isso, tentei estimar quanto recurso aqueles agentes públicos deveriam disponibilizar a cada potencial votante a ser envolvido em redes solidárias. Ou seja, quanto deveria ser subtraído para tanto do valor hoje destinado à compra das redes privadas?
Resignando-me a uma postura realista e atenta à correlação de forças atual, não considerei de que a classe proprietária dessas redes já é beneficiada com cerca de 7% do PIB como serviço da dívida pública, 5% de renúncia fiscal e 10% de sonegação de impostos, e sabendo que essa “operação” deve ser muito melhor concebida, me atrevo a iniciar o processo…
Parto, por um lado, da informação de que o programa Bolsa Família custou aproximadamente 0,5% do PIB e permitiu que 30 milhões de pessoas saíssem da miséria. E da hipótese de que 1/3 destes (10 milhões) poderiam, caso aceitassem a existência de uma relação de causalidade entre o fato de possuírem uma casa e existir um governo de esquerda, votariam na coalizão. Parto, por outro lado, da suposição, baseada nas inferências atuais disponíveis, que um apoio adicional de cerca de 10 milhões de votantes daria uma vitória à coalizão.
E faço menção a uma coincidência: é também de aproximadamente 0,5% do PIB o valor que aparece “no guardanapo” como sendo nele a participação das emendas parlamentares (cerca de 50 bilhões de reais). Aquelas que, como escrevi acima e ao que tudo indica, tenderão a ser prioritariamente alocadas à compra de votos pela direita.
Sabemos que isso é apenas uma parcela do que a classe proprietária, beneficiada com aqueles recursos que sequer chegam a entrar no orçamento público, destinará a esse fim. É bem maior aquilo que suas redes de produção agropecuária, industrial e financeira etc., costumam dedicar para eleger os empresários e fazendeiros que compõem 72% do nosso parlamento.
Mas, para estimar quanto seria “viável” disponibilizar a cada um dos 10 milhões de potenciais votantes na coalizão mediante a reorientação da compra pública tomando por base a busca de uma espécie de “equipotência” com a direita, é interessante tomar aqueles 0,5% do PIB como uma estimativa.
Ele implica uma remuneração mensal correspondente à produção de bens e serviços adquiridos mediante o poder de compra do Estado de 5 mil reais por votante (50 bilhões de reais/10 milhões de pessoas). O que significa, supondo maquiavelicamente que essas compras comecem a ocorrer um ano antes da eleição, a 416 reais por mês (5 mil reais/12 meses).
Ou seja, cada potencial votante na coalizão envolvido com a “operação” compra pública aqui proposta deveria receber um valor equivalente ao que, segundo vi numa entrevista que fez um repórter é o que recebeu um carregador de bandeira no último comício do inominável na Paulista.
Fica aos agentes públicos e aos militantes simpáticos à economia solidária que me seguiram até aqui, o pedido de começar a elencar as milhares de atividades que poderiam ser, imediatamente, antes que seja tarde, objeto da compra pública de redes solidárias.
Sem subestimar a importância de contar com recurso público para atividades de formação, capacitação etc., ressalto o quanto o círculo virtuoso de conscientização, mobilização, organização, participação, e empoderamento da classe trabalhadora pode ser motorizado com a imediata alocação de 0,5% do PIB para a compra pública das redes solidárias.
*Renato Dagnino é professor titular no Departamento de Política Científica e Tecnológica da Unicamp. Autor, entre outros livros, de A indústria de defesa no governo Lula (Expressão Popular). [https://amzn.to/4gmxKTr]
Notas
[i] Entre os quais destaco https://jornalggn.com.br/politicas-sociais/por-que-os-candidatos-de-esquerda-as-eleicoes-de-2022-devem-prestar-atencao-a-economia-solidaria-por-renato-dagnino/,
[ii] https://aterraeredonda.com.br/contratabrasil/.
[iii][iii] Ela tem como inspiração a provocação que lancei como pergunta, há duas semanas, em https://fpabramo.org.br/2025/03/26/evento-debateu-economia-solidaria-como-modelo-de-desenvolvimento-para-o-brasil/, que um companheiro apelidou de “os 0,5% do Dagnino”.
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