Por Paulo Fernandes Silveira*
“A marca dos movimentos realmente libertadores é sempre a inclusão e a ampliação” (Marilena Chaui)
“A paz só aparece nessas horas. Em que a guerra é transferida” (Marcelino Freire)
Em um de
seus textos para a coletânea Maio de 68:
a brecha, Edgar Morin destaca o impacto das cenas de extrema violência
policial nas ruas de Paris em maio de 1968, o que teria ajudado a determinar,
num primeiro momento, o apoio expressivo dos franceses às manifestações
estudantis:
“Professores
que repudiam toda e qualquer revolução são levados pela repressão a se
solidarizarem com os estudantes. As classes médias e burguesas, constituídas
por pais de estudantes secundaristas e universitários, indignam-se mais com a
repressão do que se inquietam com as imprudências dos seus filhos. O batismo
dos cassetetes e dos gases lacrimogêneos atrai a simpatia dos meios populares,
a princípio hostis aos ‘filhinhos de papai’.” (p. 38).
Ainda que uma
parte da população compreendesse as demandas estudantis como “a causa do
outro”, título de um ensaio de Jacques Rancière, presente no livro O desentendimento, a repressão expôs a arbitrariedade
da violência estatal. Seguindo as análises de Walter Benjamin, certas situações
históricas deixam claro que a violência do Estado e do direito não se
justificam como um meio necessário para
a preservação de fins justos, mas, isso
sim, “pela intenção de garantir o próprio direito.” (Para uma crítica da
violência, p. 127).
Na
sequência do ensaio, Benjamin menciona a secreta admiração do povo pelos grandes
criminosos (grosse Verbrecher). Assim
como muitos franceses apoiam as manifestações, indiferentes às causas estudantis,
o povo admira os grandes criminosos, indiferente aos seus objetivos. Numa de
suas análises sobre esse tema benjaminiano, Jacques Derrida afirma que o homem
vadio, marginal e criminoso, ao enfrentar o monopólio da violência do Estado,
torna-se um contraEstado (2009, p. 141).
A figura do
grande criminoso parece inspirar os trabalhos do diretor Todd Phillips e do
ator Joaquim Phoenix na releitura cinematográfica do Coringa (Joker). O
criminoso tomado como inimigo público nº 1 também ganhou destaque na obra de
Hélio Oiticica, que retratou o assassinato de um bandido carioca, nas palavras
do artista: “como se sabe, o caso de Cara de Cavalo tornou-se símbolo da
opressão social sobre aquele que é marginal – marginal a tudo nessa sociedade:
o marginal.” (Rufinoni, Mito e violência, p. 305).
Após
inúmeras manifestações de rua, diversas barricadas, muitos debates e
entrevistas com artistas e intelectuais (nos jornais e programas de televisão),
uma greve geral que mobilizou sete milhões de trabalhadores e riquíssimas experiências
de autogestão nas ocupações de escolas, universidades, teatros, museus e
fábricas, maio de 68 terminou, também nas ruas, com uma manifestação
conservadora que reuniu centenas de milhares de apoiadores do presidente e
general Charles de Gaulle.
Segundo o
relato e a análise de Frank Georgi, o general construiu cuidadosamente a reação
conservadora. Em certo momento, De Gaulle desaparece de Paris, criando uma
expectativa sobre seus próximos passos, Georgi sugere a encenação de uma
reviravolta teatral. Ao reaparecer, no dia 30 de maio, um pouco antes de
instigar seus apoiadores civis a tomarem as ruas, De Gaulle faz um rápido e
incisivo pronunciamento pelo rádio.
Como sinal
de sua coragem e bravura, De Gaulle afirma que fará jus a seu mandato e que não
irá abandonar o povo que o elegeu. Anuncia a manutenção de Georges Pompidou no
cargo de primeiro ministro, a convocação de novas eleições e a promoção de
reformas na universidade e na economia. Em nome da República e da Constituição,
o general alerta os franceses para a ameaça de uma ditadura. Há um grande
inimigo com o qual todos devem lutar: o comunismo totalitário.
Numa ação
orquestrada, foram produzidos milhares de folhetos convocando os apoiadores do
general para a manifestação. Além de entoarem a Marseillaise, a massa repetia aos brados: “Un seul drapeau, bleu,
blanc, rouge!” (Uma única bandeira, azul, branca, vermelha!); “La France aux
Français” (A França aos franceses); “Réforme oui, clienlit non” (Reforma sim,
caos não); “Évolution sans révolution” (Evolução sem revolução) e “Paix en
France” (Paz na França).
Em grande
medida, as palavras de ordem da reação conservadora atacavam as posições dos
estudantes. Como analisa Olgaria Matos, com os slogans “Les frontières on s’en
fout” (Que se danem as fronteiras) e “Nous sommes tous des juifs allemands”
(Somos todos judeus alemães), os estudantes sustentavam uma filantropia
radical. Na interpretação de Rancière, o slogan “Somos todos judeus alemães” indica
a possibilidade de “uma subjetivação aberta dos incontados.”.
Seria
possível formular várias hipóteses para tentar explicar a reação conservadora
de centenas de milhares de franceses. Arrisco uma: De Gaulle contava com o
patriotismo, não apenas dos seus apoiadores, mas de diversas correntes
reacionárias da sociedade, por outro lado, a arbitrariedade da violência, por
parte do Estado e do direito, não ataca a todos da mesma maneira e a ordem hierárquica
e policial que ela garante responde aos interesses das classes dominantes.
Paulo Fernandes Silveira
é professor da Faculdade de Educação da USP e pesquisador no Grupo de Direitos
Humanos do Instituto de Estudos Avançados da USP
Artigo
publicado no jornal GGN
Referências
Walter Benjamin, Para uma
crítica da violência. In. Escritos sobre
mito e linguagem (1915-1921). São Paulo, Livraria Duas Cidades/Editora 34, 2013.
p. 121-156.
Marilena Chaui. A ocupação
das escolas foi Maio de 68. In. Em defesa
da educação pública, gratuita e
democrática. Belo Horizonte, Autêntica, 2018. p. 417-419.
Charles De Gaulle. 3º Discours – 30 mai 1968. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=mfSN462bKMc.
Jacques Derrida Vadios. Coimbra, Terra Ocre, 2009.
Marcelino Freire. Da paz.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=lnCWXnZjEh0.
Frank Georgi. Le pouvoir est dans la rue. La “manifestation gaulliste” des
Camps-Élysées (30 mai 1968). Disponível em https://www.persee.fr/doc/xxs_0294-1759_1995_num_48_1_4422
Olgaria Matos. Quando a
poesia substitui a prosa. Disponível em https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,quando-a-poesia-substituiu-a-prosa,170594.
Edgar Morin. A comuna
estudantil. In. Maio de 68: a brecha.
São Paulo, Autonomia Literária, 2018. p. 32-56.
Jacques Rancière. A causa do
outro. In. Margens do político.
Lisboa, KKYM, 2014. p. 123-133. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-lignes0-1997-1-page-36.htm?contenu=resume.
Jacques Rancière. O desentendimento. São Paulo: Editora
34, 1996.
Manoela Rossinetti Rufinoni.
Rito e violência – vigília pelos 111, por Nuno Ramos. 2016. Disponível em http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1678-53202016000200298#fn17.
