A causa palestina na geopolítica do sul global

Imagem: Denys Gromov
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Por MARTÍN MARTINELLI & PEIMAN SALEHI*

Há um eixo de resistência à instauração de um “caos controlado” por parte dos EUA e de Israel, formado por uma rede de movimentos e Estados da Ásia Ocidental, África e outras regiões do Sul Global

1.

O contexto histórico influencia a situação atual de genocídio e tentativa de memorialicídio, diante da resistência popular palestina e dos protestos globais para impedi-lo. Estamos nos referindo aos séculos de capitalismo e à violência exercida pelo colonialismo e pelo imperialismo naquela região por meio dos exércitos anglo-saxão e ocidental, além do israelense.

Uma interpretação dos séculos XX e XXI é como, durante a continuação dos empreendimentos coloniais, os movimentos de libertação nacional africanos e asiáticos estavam se desenvolvendo no contexto da Grande Guerra Europeia, entre 1914 e 1945.

As décadas de 1950 e 1960 testemunharam uma revolução nos sistemas globais de energia. O petróleo se tornou o principal combustível fóssil do mundo nas principais economias industrializadas, substituindo assim o carvão e outras fontes de energia. O ouro negro impulsionou o capitalismo do pós-guerra graças à sua maior densidade energética, flexibilidade química e facilidade de transporte, e consolidou toda uma gama de novas tecnologias e indústrias. A transição energética para o petróleo e a ascensão do poder americano influenciaram diretamente a Afro-Eurásia central.

Enquanto isso, o poder sobre as colônias que ocupam grande parte do mundo está diminuindo, e essas organizações — sejam elas nascentes ou desenvolvidas — estão se formando para alcançar a grande emancipação da Ásia e da África na segunda metade do século XX. Isso ocorreu sob a influência dos blocos hegemônicos, cada um com seu próprio sistema (o socialista e o capitalista), e do resto do mundo e dos grupos não alinhados, por exemplo, na Conferência de Bandung (1955).

Essas grandes transformações continuaram, em certo sentido, devido ao grande número de rebeliões, revoluções e organização de novos países durante a Guerra Fria. Alguns deles apoiados pela URSS, e outros sob a órbita em áreas costeiras, especialmente dos imperialismos ou poderes de fato das potências euro-americanas, principalmente os Estados Unidos, e duas formas principais diferentes de descolonização: o Reino Unido (mais tolerante com a criação da Commonwealth) e a França (mais violenta que a britânica, como na Indochina, Vietnã e Argélia).

Vários acontecimentos rompem com a ideia de uma interpretação eurocêntrica da história contemporânea (e, acrescentamos, anterior), observada a partir da perspectiva de outras latitudes. Aparecem no caso da África, no Congresso de Berlim (1884) ou nos anos da descolonização (1960); e da Ásia, outros acontecimentos do século XX, como a independência da Índia (1947), a Revolução Chinesa (1949), bem como a Revolução Russa de 1917 marcam o futuro do século recente atravessado por guerras.

A Revolução Chinesa de 1949 criaria mais tarde as condições para o século XXI. A isto somam-se a Guerra da Coreia (1950-1953) e as guerras de resistência no Vietname (1960-1975). Aplicado à América Latina, a preponderância de seu impacto recai sobre a Revolução Mexicana (1910-1917) ou a Revolução Cubana (1959), processos que modificaram as estruturas dessas populações e marcaram seu futuro, além de repercutir em outras sociedades. Isso influenciou a maneira de escrever e, de fato, a periodização da história.

Essas particularidades culturais e portanto também visões de mundo, diferem das suposições equivocadas de um choque de civilizações — blocos culturais indiano, russo, chinês ou muçulmano, por exemplo — ou da visão atlantista unipolar de Francis Fukuyama do chamado “fim da história”. Se olharmos pela lente da bipolaridade comunismo-capitalismo, eles estão longe do que aconteceu nessas partes do mundo, onde grandes processos de descolonização ocorreram durante grande parte do século XX.

Isso contradiz a ideia de que eram países atrasados, embora novos, como forma de organização contemporânea. Mas, na realidade, eles abraçam tradições e uma história própria, afro-asiática em alguns aspectos, sem os limites das formações ou Estados-nação dos últimos dois séculos.

2.

A expulsão e a opressão dos palestinos são um lembrete claro de que os horrores do comércio transatlântico de escravos e o genocídio colonial de populações indígenas pelos impérios ocidentais estão se tornando mais significativos. A intenção é exterminar um povo e seu meio ambiente para consolidar os interesses imperiais liderados por Washington e seus aliados diante da resistência anticolonial. Também para capitalizar projetos de petróleo e gás e propriedades na costa de Gaza.

Anos e décadas de monopólio da informação buscaram estigmatizar palestinos e árabes no paradigma do “choque de civilizações” e como povos “terroristas” na chamada guerra contra o terror. Isso impede uma análise política de suas ações dessa natureza, ou ações militares. O Movimento de Resistência Islâmica (Hamas), uma organização política, social e guerrilheira, embora de origem islâmica, tem como principal objetivo a libertação da Palestina do colonialismo. Os líderes do Hamas (muitos dos quais foram mortos por Israel) são filhos de refugiados que foram deportados de suas aldeias para Gaza em 1948.

É claro que a situação é difícil de entender sem analisar o papel dos Estados Unidos como principal parceiro de Israel. A escalada atual demonstra como o mundo mudou, especialmente desde 2013-2014, e se acelerou desde fevereiro de 2022: um declínio relativo do poder americano em vários aspectos, que está recuando em alguns lugares, como a Eurásia central.

Essas explosões estão ocorrendo no contexto das atuais tensões geopolíticas, em relação a outros conflitos como o da Ucrânia, assim como a escalada do confronto militar de Israel na Síria, no Iêmen ou mesmo com o Irã. A proximidade com a Rússia e a China, bem como com a Índia, é outro fator que aumenta o interesse em controlar o Oriente Médio por meio de rotas comerciais, relações e corredores estratégicos.

O mesmo acontece com o papel de potências regionais individuais, como Arábia Saudita, Turquia e Irã, e a posição cada vez mais importante do Brics+ (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul, além de Egito, Irã, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Indonésia). Neste caso particular, o da África do Sul.

A resistência palestina deixou de ser uma questão regional para se tornar um símbolo mundial de dignidade frente ao colonialismo e ao poder imperial. Gaza, uma prisão a céu aberto, hoje ergue-se como epicentro ético e político das lutas do Sul Global. Nela convergem as linhas de fratura de um sistema-mundo em crise: o neoliberalismo decadente, o imperialismo militarizado, o racismo estrutural e o colapso ambiental.

As imagens do genocídio em curso – hospitais bombardeados, crianças mutiladas, bairros inteiros arrasados – não apenas documentam um crime, como também revelam o esgotamento de uma ordem internacional baseada na hipocrisia liberal. Nações Unidas, União Europeia, os principais meios de comunicação ocidentais: todos falharam em deter a máquina da morte. Diante dessa paralisia cúmplice, emerge um novo internacionalismo a partir de baixo, que vincula a causa palestina às lutas por soberania e justiça na Ásia, África e América Latina.

Nesse contexto, os diferentes grupos do eixo da resistência – ainda que não formem uma aliança formal como a OTAN – intervêm decisivamente no que acontece na Palestina. Essa rede, tecida entre movimentos e Estados da Ásia Ocidental, África e outras regiões do Sul Global, encontra coesão não em estruturas burocráticas, mas em uma história compartilhada de humilhação e combate. Vietnã, Argélia, Cuba, Irã, Iêmen: todos resistiram, em diferentes momentos, à imposição violenta da ordem ocidental.

Apesar das tentativas de desarticulá-la – como a destruição da Síria, o assassinato de Qassem Soleimani em Bagdá (2020), ou a eliminação de figuras-chave como Ismail Haniyeh (2024), Hassan Nasrallah ou Yahya Sinwar – a resistência se recompõe constantemente por seu caráter descentralizado e seu profundo enraizamento popular. Em particular, a resistência iemenita liderada pelos Ansarolá consolidou-se como um ator-chave, capaz de desafiar militarmente Israel, considerado por muitos como o braço armado do imperialismo no coração da Afro-Eurásia.

A finalidade desse eixo não é apenas a defesa territorial, mas a contenção de um projeto estratégico: a instauração de um “caos controlado” por parte dos Estados Unidos e de Israel para balcanizar a região, perpetuar conflitos internos e justificar a presença militar estrangeira. A Palestina, nesse esquema, não é apenas uma vítima: é o núcleo disruptivo que impede que esse plano se realize sem resistência. No entanto, as recentes ofensivas sobre Gaza, o agravamento da violência no Líbano e a fragmentação da Síria também representam desafios crescentes.

3.

Diante desse panorama, a América Latina tem um papel crucial. A subordinação de governos como o de Javier Milei à agenda imperial – sua adesão incondicional a Israel, seu desprezo pelo direito internacional e seu ataque sistemático à cultura crítica – mostra que a luta pela Palestina também se joga em Buenos Aires, Lima ou Bogotá. Defender a Palestina é também defender nossas universidades públicas, nossos sindicatos, nossos direitos sociais.

Por isso, é imperativo construir pontes entre nossas resistências. As ruas de Caracas, os bairros de São Paulo, as salas de aula de Havana ou os movimentos indígenas da Bolívia compartilham mais com Gaza do que muitas vezes se reconhece. O novo internacionalismo não se decreta a partir das cúpulas diplomáticas: é tecido na solidariedade concreta, na formação política, no pensamento decolonial, na insurgência cultural.

A Palestina não está sozinha. E nós, como intelectuais do Sul global, tampouco. Escolher um lado hoje não é uma questão moral abstrata, mas um posicionamento político global. Gaza nos interpela porque ali se decide o mundo que virá: um baseado na barbárie tecnológica, no extrativismo armado e na supremacia racial; ou um fundado na dignidade dos povos, na justiça e na autodeterminação.

Nos primeiros dias após o início dos ataques sem precedentes de Israel contra Gaza, o líder da República Islâmica do Irã, o aiatolá Seyed Ali Khamenei, em outubro de 2023, com uma frase curta, porém incisiva, desmascarou uma das maiores mentiras narrativas do século: a vitimização de Israel.

Uma frase que redirecionou a tempestade midiática da “Tempestade de Al-Aqsa” para a inversão da narrativa ocidental e despertou consciências adormecidas. Hoje, a vitimização fabricada de Israel, perpetuada durante décadas sob o disfarce de ser vítima, está sepultada sob os escombros das imagens de crianças mártires, mães enlutadas e hospitais destruídos.

Diante dessa injustiça histórica, vozes que se erguem dos quatro cantos do mundo – de Teerã e Beirute até Bagdá, de Joanesburgo até Buenos Aires, de Havana até Amsterdã – clamam em uníssono: Não ao genocídio.

Hoje, qualquer ser humano que acredita na justiça—independente de religião, credo ou fronteira geográfica—está ao lado do povo palestino.
 Essa unidade transnacional e transcultural é sinal de que a resistência não é apenas uma escolha política, mas uma resposta ética à queda civilizatória de nossa era.

As condutas do regime ocupante de Israel não se enquadram nem na tradição religiosa do judaísmo nem no sistema de pensamento do liberalismo que seus defensores no Ocidente proclamam como lema.

O judaísmo autêntico sempre exaltou a justiça, a compaixão e o respeito pela vida humana; não há ensinamento algum nessa religião divina que justifique o massacre de crianças ou o cerco a hospitais.

Por outro lado, a filosofia moral moderna, cujos fundadores como Immanuel Kant enfatizaram a dignidade inerente do ser humano, declara explicitamente que nunca se deve usar o ser humano como meio para alcançar um fim. Kant escreveu: “O ser humano deve sempre ser considerado como um fim em si mesmo, não como um meio para outro fim”.

Mas o que vemos hoje em Gaza é a transformação das pessoas em instrumentos de chantagem política e racial.

John Locke, o pai do liberalismo político, falou de três direitos naturais: “vida, liberdade e propriedade”; direitos que Israel tem negado não apenas aos palestinos, mas à própria humanidade.

Nossa pergunta aos líderes de Tel Aviv é esta: Com base em qual princípio, qual filosofia e qual consciência vocês continuam com os massacres?

Não aceitam as resoluções do Conselho de Segurança, não reconhecem as decisões da Corte Internacional de Justiça, e não respeitam a vontade da opinião pública mundial.

Israel hoje não apenas viola os direitos humanos, como também simboliza a desordem moral no sistema internacional. Isto é uma crise civilizatória.

*Martín Martinelli é professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidad Nacional de Luján (Argentina). Autor do livro Palestina (e Israel). Entre intifadas, revoluciones y resistencias (EdUNLu).

*Peiman Salehi é filósofo político e analista de geopolítica iraniano.

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