a terra é redonda

A conjuntura mudou

Por Julian
Rodrigues*

O receituário neoliberal está sendo colocado em xeque. O debate político-econômico inclina-se à esquerda. Surgem proposta de aporte de recursos estatais, renda mínima, estatização de empresas, controles mais rígidos sobre a atividade econômica.

“Primeiro salvemos o povo, depois a
economia” (Luís Inácio Lula da Silva)

Um novo cenário
internacional

Ainda é muito
cedo para prospectar o impacto e os desdobramentos que a atual crise terá sobre
a economia e a política internacional. É necessário evitar duas armadilhas
simultâneas: tentar realizar previsões peremptórias, e, por outro lado,
continuar agindo como se não houvesse elementos qualitativamente novos. Nem
catastrofismo, nem paralisia. Nem pânico, nem excesso de otimismo. “Análise da
realidade concreta em cada situação concreta” (Lênin), somada ao “otimismo da
vontade e pessimismo da razão” (Gramsci).

A gravidade da
pandemia Covid-19 se somou e se sobrepôs ao estouro da bolha econômica (algo
que vinha sendo previsto por alguns analistas). Houve a tal “tempestade
perfeita”. Duas grandes crises acontecem simultaneamente em todo o mundo. Não é
possível saber o tamanho do buraco, mas está nítido que os efeitos são
devastadores sobre a economia (recessão global) e, sobretudo, para os mais
pobres em todo o mundo. O cenário é similar ao de uma guerra – talvez o mais
grave desde a II Guerra Mundial. Ou pior: porque nas guerras se geram empregos
e há demanda.

Abre-se uma
janela de oportunidades. O debate político-econômico se inclina à esquerda.
Aporte de recursos estatais, renda mínima, estatização de empresas, controles
mais rígidos sobre a atividade econômica. O receituário neoliberal é colocado
em xeque, na prática, na Europa e nos EUA. Ao mesmo tempo, as massas percebem a
importância de sistemas públicos de saúde, universais, gratuitos. E das ações
coordenadas de governos em todos os níveis. Só o Estado salva!

Até mesmo Donald Trump
toma medidas tipicamente keynesianas e socialdemocratas, que distribuem
recursos diretamente aos americanos, permitem ao governo encampar hospitais
privados, adiando cobranças de hipotecas. Por outro lado, o pacote anunciado
pelo presidente dos EUA vai direcionar muito mais recursos para empresas e
bancos. A questão colocada é: o Estado deve priorizar o bem-estar das famílias
ou o lucro das grandes corporações e do sistema financeiro (como fizeram na
crise de 2008).

A geopolítica se
move mais rapidamente. A crise estourou no momento em que a Arábia Saudita
baixou o preço do petróleo (para afetar Rússia, Venezuela), junto com a reação
mais radicalizada da China contra o protecionismo de Trump. Pela primeira vez,
o governo chinês ameaçou parar de financiar a dívida pública dos EUA. Considere-se
também a guerra de narrativas e teorias de conspiração em curso. A extrema
direita mundial acusa a China de criar e manipular o vírus. E um porta-voz do
Ministério das Relações Internacionais da China diz que EUA plantaram o vírus
em Wuhan.

Macron suspendeu,
na França, a reforma neoliberal da Previdência, e cogita estatizar a Air France,
enquanto a Itália anuncia estatização da Alitalia (que já estava em
crise).

A China anuncia o
fim dos novos casos da doença. Foi um show de coordenação e iniciativa estatal,
assistido globalmente. Cuba envia ajuda humanitária à Itália, possui um dos
mais eficazes medicamentos até hoje descobertos contra o vírus, e ainda assiste
ao governo Bolsonaro implorar pelo retorno de seus médicos.

Em uma situação
como essa, cresce muito o espaço para programas, propostas, teorias, ideias
antiliberais, intervencionistas, keynesianas, estatistas, socialistas e comunistas – por que não?

Donald Trump
desesperado em busca de uma vacina coloca a ciência no topo, novamente. A discurseira
irracionalista, conspiratória do neofascismo bolsonarista, o trumpismo, o terraplanismo
caem por terra na primeira crise globalista.

Estado, políticas
públicas, ciência, regulação do mercado, solidariedade retornam como valores
imprescindíveis. É o melhor momento para atacar o egoísmo neoliberal, o
antiestatismo, as ideias privatistas. Mas, sem luta político-ideológica, o
neoliberalismo pode atravessar essa crise como o fez em 2008: enchendo as
burras dos banqueiros e financistas, sem alterar as bases do modelo.

As mudanças não
são automáticas, dependerão da força da classe trabalhadora, da esquerda, dos
socialistas e progressistas em forjar alternativas, discursos e força política
para reverter a hegemonia capitalista/ultraliberal/neofascista.

Ultraliberalismo
e recessão no Brasil

Desde a guinada
liberal do governo Dilma/Levy em 2015, amargamos a maior estagnação-recessão
contínua da história econômica brasileira. O pibinho de 1,1% em 2019, mais a disparada
do dólar, a fuga de capitais, os baixos investimentos, o desmonte das políticas
sociais já apontavam para um cenário de crise na economia brasileira. A tudo isso
soma-se o aumento do desemprego, da miséria, da degradação da vida da população
trabalhadora.

A dupla crise
mundial (bolha estourada + pandemia) agrava em níveis espetaculares o cenário
que já era sombrio. As quedas sucessivas na Bolsa de Valores resultaram, neste
ano, em derretimento de mais de R$ 1,5 trilhão. O dólar estourou para o patamar
de R$ 5. No Brasil, além da dupla crise mundial, há sinais de uma futura – ou
possível – crise institucional.

A primeira reação
do ministro Paulo Guedes foi dobrar a aposta nas reformas pró-mercado e no
desmonte do Estado. Apresentou, em 12 de março, a privatização da Eletrobrás, a
reforma administrativa e o tal Plano Mansueto (de mais arrocho fiscal) como
respostas econômicas ao coronavírus. Algo tão absurdo que constrangeu inclusive
neoliberais de carteirinha.

Ato contínuo, foi
“caindo a ficha” deles sobre o tamanho da crise. O PT fez propostas iniciais
bem interessantes. Seus deputados, juntos com os do PSOL fizeram um bom debate.
Foi se tornando cada vez mais nítido, a partir das ações dos governos em todo o
mundo, que serão necessárias ações vigorosas do Estado para minimizar o impacto
econômico.

Assim, a
contragosto, o governo teve que apresentar algumas medidas positivas, embora
supertímidas e insuficientes, como o pagamento de R$ 200 a autônomos já
cadastrados no SUAS, autorizando o retardamento no recolhimento do Simples e o
reforço do Bolsa Família (em processo de sucateamento).

Por outro lado, o
governo autorizou uma redução geral de salário e jornadas, ao invés de proibir
demissões. Como contrapartida, anuncia que os atingidos por essas medidas
poderão acessar 25% do seguro-desemprego.

A realidade
objetiva vai impondo uma agenda ao governo totalmente distinta daquela que
propagam. Não há como enfrentar uma crise desse tamanho sem liberar dinheiro,
sem colocar o governo federal para agir, sem aumentar as redes de proteção
social, sem investir no SUS, sem girar os próprios pressupostos das políticas
ultraliberais.

Fora Bolsonaro?

Uma parcela
considerável do bloco progressista não conseguiu, até hoje, estabelecer uma
definição política detalhada e complexa sobre a natureza, a composição, o
programa e o modus operandi do bolsonarismo. Não é consenso a caracterização
do “estado de exceção”, nem a dupla natureza (ultraliberal e neofascista) do
governo.

Não somente
setores de nossa base social/eleitoral, mas muitos dirigentes políticos e
parlamentares ainda trabalham com a percepção de que Jair Bolsonaro (e sua
família) são “loucos”, “despreparados”, “idiotas” etc. Subestimam a
organicidade e racionalidade do projeto neofascista e seu amplo apoio
internacional. Ignoram, sobretudo, a derrota que sofremos no campo
cultural-ideológico-comunicacional e a surra que o bolsonarismo vem aplicando
ao campo progressista no terreno da comunicação. É uma postura arrogante e
desinformada – que não entendeu ainda o nem novo quadro internacional e muito
menos as estratégias em jogo nas guerras híbridas.

Uma das
consequências dessa leitura equivocada sobre o político Bolsonaro e sobre o
momento político é o fato de surgir (em nossas bolhas), mais ou menos a cada
três meses, um ruído pró-impeachment. Como se houvesse correlação de
forças para isso. Ou pior, como se a destituição de Bolsonaro – operada pelas
elites liberais – fosse algo positivo em si. Como se um governo
Mourão/Maia/Toffoli/PIG trouxesse melhorias para a vida do povo e melhores
condições para a luta democrática.

É fato que
Bolsonaro e seu núcleo operam pelo fechamento do regime, progressivamente. Mas
essa ainda não é a opção das classes dominantes, da mídia burguesa, do
imperialismo ou dos “liberais”.

Como bem
caracterizou Jorge Branco: “O governo
Bolsonaro ingressa em um período de crise de legitimidade. Sua relação com a
maioria do Congresso Nacional é instável, já tendo sofrido derrotas em projetos
estruturantes para sua política econômica. Mesmo sua relação com o grande
capital é menos sólida do que no início de seu governo, haja vista a evasão de
investimentos. Contudo, isto não significa que Bolsonaro esteja à beira do
desmoronamento. Sua estratégia política está assentada em três grandes
movimentos: uma aproximação cada vez mais subordinada ao governo estadunidense
de Donald Trump; uma ampliação do poder dos setores militares de ultradireita
expressos no núcleo de generais palacianos; e um apelo cada vez maior de mobilização
à sua base social orgânica de direita”.

Bolsonaro pode
estar se transformando em um “pato manco”, perdendo o comando do processo
político geral, autocondenando-se às lateralidades. Não tende a cair, mas tende
a mandar menos. A menos que se reinvente e se recoloque no cenário político nos
próximos dias.

Houve, é fato, uma
mudança significativa na conjuntura. Parece que Bolsonaro errou feio, pela
primeira vez. Irritou muitos setores de sua própria base ao desprezar
seguidamente os efeitos do coronavírus, ao retardar a adoção de medidas
governamentais, ao comparecer à manifestação de 15 de março. E o clã segue no
mesmo ritmo radicalizador: declarações de Eduardo Bolsonaro criaram recentemente
uma crise diplomática grave com a China.

Os panelaços,
ainda tímidos, em 17, 18 e 19 de março, evidenciam o desgaste de Bolsonaro. O
povão, contudo, segue desconfiado, frustrado, assustado – ainda fica na muda,
mas cada vez mais insatisfeito. Ao contrastarmos a atuação desastrada de Bolsonaro
com a postura de outros governantes, como os tucanos Bruno Covas e Doria, por
exemplo, ficam ainda mais nítidos seus erros políticos.

A consigna “Fora Bolsonaro” é legítima,
expressa a repulsa de amplos setores ao governo atual. Não se encontra, porém, na
ordem do dia. Tampouco deve ser centro da atuação do PT e da esquerda, parlamentar
ou social.

Os pedidos de “interdição”
de Bolsonaro levam a política para o campo da patologia. Um movimento regressivo.
Com frequência, algum quadro da esquerda endossa essas bobagens demagógicas –
de Haddad, a senadores do PT ou deputados do PSOL. Pedir “impixo” agora
é algo totalmente “fora da casinha”. Em primeiro lugar, Bolsonaro ainda não se
inviabilizou, nem há operação no “andar de cimapara derrubá-lo. Em segundo lugar, queremos derrotar não
Bolsonaro, mas o bolsonarismo, o programa autoritário e neoliberal. Isso só
acontecerá com luta de massas e vitórias eleitorais. Não vai ser com um “impixo”
capitaneado por Rodrigo Maia.

Tão equivocado
quanto levantar a bandeira do impeachment neste momento (sem apoio da
maioria da classe trabalhadora) é apostar todas as fichas em uma “Frente Ampla”
com Huck, Maia e setores burgueses “limpinhos”, para as eleições de 2020 e de
2022. Cabe perguntar antes: haverá eleições democráticas em 2022? Tão errado
quanto puxar o “impixo” agora é apostar na normalidade do calendário
eleitoral, ou pior, em alianças com a burguesia neoliberal.

O quadro político
está muito mais aberto que antes. Nos interessa agora disputar programa,
ideias, rumos e ações para o país. Disputar a necessidade de medidas amplas de
proteção dos pobres e estímulo da atividade econômica. E sobretudo enfatizar a
necessidade de defender o SUS.

Nunca houve uma
crise como essa. Temos que nos colocar à altura do momento político e
aproveitar as brechas abertas para fortalecer o socialismo, o campo
democrático-popular, a esquerda e o PT.

O que fazer?

Em um momento
como este, torna-se gigante o buraco em nossa prática-tática e estratégia de
comunicação. Somente na quinta, 19 de março, Lula se pronunciou sobre a crise, com
uma live de 15 minutos, não divulgada antes de ir ao ar. Não há memes,
pequenos vídeos, estratégia de rede para disseminar as propostas do PT. Uma
coisa impressionante. Os vídeos institucionais do PT estão abaixo da crítica.

É necessário iniciar
imediatamente uma operação de guerra para construir o “partido digital”, com
foco no Whatsapp, produção de memes, vídeos, micro-target, TI,
manipulação de big data etc. A comunicação do PT e da esquerda está parada
no início dos anos 2000. É hora, neste cenário de quarentena, de girar tudo
para o “partido digital”. As pessoas estão confinadas, ainda mais sedentas de
informação e orientação.

É hora de
detalhar nossas propostas a favor do povo, da economia popular, do crescimento
econômico, do SUS. Martelar ideias-chave como o fim da EC 95 (congelamento de
gastos), aumento do Bolsa Família, transferência de renda com um salário mínimo
para todos os trabalhadores informais, crédito para todo mundo, não cobrar
contas de água e luz, construção de hospitais de campanha – aumento de leitos
de UTI, e tantas outras medidas que já estão sendo propostas.

O foco é mais Estado,
mais SUS, defesa dos empregos, mais políticas públicas, mais dinheiro estatal
na economia, proteção aos mais pobres. É hora de reorganizar nossas atividades
políticas. Quarentenas não são férias. Aproveitar a crise para socializar entre
nós o uso das ferramentas digitais de reuniões online, a leitura e estudo
de textos mais densos, articulações políticas não presenciais.

Julian Rodrigues é jornalista e professor; ativista dos
movimentos LGBTI e de Direitos Humanos.

Artigo publicado originalmente na Revista Fórum.

A conjuntura mudou – 21/03/2020 – 1/1
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