a terra é redonda

A crise acelerada

Por Osvaldo Coggiola e Edgar Azevedo*

A operação ideológica em curso apresenta a crise econômica como
um produto da crise sanitária quando, na verdade, aquela precedeu a pandemia,
que a manifestou de modo aberto e a aguçou.

A
fala alucinada (objetivamente homicida) do titular do Poder Executivo do
Brasil, a 24 de março, reclamando a “volta à normalidade social” do país,
ignorando todas as normas e prevenções sanitárias universalmente reconhecidas,
com consequências potencialmente catastróficas em virtude da pandemia do
coronavírus, tudo em nome de “salvar a economia”, é a tentativa atabalhoada
(mas não carente de bases políticas) de impor uma espécie de poder de fato,
situado por cima do Legislativo, do Judiciário e até mesmo, parcialmente, do
próprio Executivo. Um “Chefe Supremo”, um Duce.

Aproveitando
a emergência, a decretação do estado de sítio entrou na agenda política.
Bolsonaro, além disso, exonerou 30 generais com mando de tropa a designou um
novo Chefe de Estado Maior, Marcos Antônio Amaro dos Santos, que foi
ministro-chefe da Casa Militar de Dilma Rousseff. A empreitada de Bolsonaro
reconhece um antecedente (portanto, uma lógica política) nas mobilizações,
tendo como alvo o Congresso e o Judiciário, convocadas e apoiadas pelo próprio
presidente a 15 de março passado. A intervenção em rede nacional de Bolsonaro
foi condenada por prefeitos, governadores, senadores e deputados (com exceção
da bancada do PSL, 10% do Congresso, que qualificou a fala bolsomínia de
“intervenção de estadista”), porta-vozes dos trabalhadores da saúde, e até
pelas suas ordens profissionais (tradicionalmente conservadoras) que a
qualificaram literalmente de “criminosa”.

Um
dos cenários oficiais previstos pela Abin (Documento nº 015/2020 – 23 de março
de 2020) trabalha com uma projeção máxima de 5.571 mortes até 6 de abril,
exibindo o Brasil um comportamento semelhante às curvas epidêmicas de Irã,
Itália e China. O comparativo da Abin das curvas de crescimento a partir de cem
casos confirmados, Brasil x Europa, mostra um crescimento semelhante dessas
curvas no nosso país e as da Alemanha, Itália, Espanha, França e Reino Unido.

O
relatório da agência de inteligência cita fontes científicas: “Duas em cada
três infecções do novo coronavírus foram causadas por pessoas que não foram
diagnosticadas com o vírus ou que não apresentavam sintomas. Isso significa que
as pessoas infectadas que se sentem saudáveis ou têm sintomas muito leves estão
espalhando o vírus sem perceber, representando um grande desafio para a
contenção da pandemia. Os cientistas dizem que a probabilidade é que haja entre
cinco e dez pessoas sem diagnóstico para cada caso confirmado. As autoridades
de Nova York (EUA) solicitaram que todos os cidadãos se comportassem como se já
estivessem expostos ao novo coronavírus”. O ministro da Saúde, Luiz Mandetta,
que qualificou inicialmente o coronavírus como “mais uma gripe”, anunciou a
probabilidade (talvez uma certeza) de um colapso do sistema sanitário
brasileiro.

Os
panelaços de protesta contra o presidente, com estridentes “Fora Bolsonaro”
dominando as vozes, se fizeram ouvir em todas as capitais e até em cidades de
médio e pequeno porte do país. A Rede Globo agiu e age como uma sorte de
porta-voz midiático oficioso, se não oficial, do heterogêneo conjunto.
Curiosamente, ou nem tanto, nenhuma das entidades oficialmente protestantes,
principalmente o Legislativo, abriu qualquer iniciativa institucional destinada
a impedir (impeach) quem se transformou em um perigo iminente e imediato
para a sobrevivência da população, em especial a mais pobre.

Essa
estranha preguiça (ou “prudência”) contrasta com a celeridade com a qual
legisladores (de quase todas as cores políticas) passaram a tratar medidas como
a suspensão de contratos e o corte de salários de funcionários públicos e
privados, atingindo até 50% do ordenado, supostamente para conter gastos
estatais (no caso dos servidores públicos), destinando mais recursos ao combate
à pandemia, e para “evitar o fechamento de empresas”, enxugado a folha salarial.

Para
inúmeros trabalhadores, empenhados com despesas de créditos imobiliários,
empréstimos consignados, débitos automáticos de gastos condominiais e de
serviços, pensões alimentícias, créditos de bens móveis, etc., tais cortes
significariam, em muitos casos, receber no fim do mês um contracheque negativo,
criando uma onda de miséria social e de inadimplência e retomada de bens
(móveis e imóveis) em massa, e especulação desenfreada, com um só grande
beneficiário na ponta da corrente, o grande capital financeiro, já amplamente
beneficiado pelo Banco Central, que anunciou a disponibilidade de R$ 1,216
trilhão para os bancos brasileiros, o que equivale a 16,7% do PIB.

Compare-se
essa cifra com o “pacote” anunciado pelo governo (a 23 de março) de R$ 88,2
bilhões para combater a pandemia: ele equivale a 7,5% dos fundos
“disponibilizados” para o grande capital financeiro. Os fundos
“humanitariamente” anunciados pela equipe econômica, por outro lado, referem-se
basicamente a rolagem ou reestruturação de dívidas de estados e municípios, e a
possível (e custoso) uso de linhas de crédito, sendo um percentual bem menor do
montante anunciado o destinado ao efetivo incremento da capacidade sanitária do
país.

A
“ajuda” a desempregados e “autônomos” (ambulantes) não chega sequer a ser um
paliativo. Ou seja, o “pacote” se situa perfeitamente dentro da linha “salve-se
quem puder” da clique bolsonariana, que segue, para além das manifestações de
ignorância e brutalidade do presidente (que obrigaram a pedidos de desculpas
públicos da parte de seu vice e de seu ministro da Saúde) a uma estrita lógica
de classe, que se manifestou de modo explícito nos dias precedentes aos
comunicados e falas governamentais. Por trás da pandemia, há uma verdadeira
guerra de classes em andamento.

Ela
é aguçada pela própria crise capitalista (não apenas “do neoliberalismo”). O
neoliberalismo foi definido, mais empírica do que teoricamente, como a política
que deveria revigorar o capitalismo, restaurando o “espírito animal”,
empreendedor e investidor, supostamente amortecido pela mão intervencionista do
Estado. No entanto, nunca fez isso. As taxas de crescimento nas últimas quatro
décadas permaneceram consistentemente abaixo daquelas do período “estatista” do
pós-guerra, os chamados “Trinta Anos Gloriosos” do capitalismo.

Em
vez disso, o sistema de produção capitalista ficou tensionado. Espacialmente,
cingiu o mundo. Ficou tenso com a produção just-in-time, com pouco ou
nenhum estoque e pouca margem de manobra financeira para lidar com
contingências. Por fim, socialmente, pressionou trabalhadores e fornecedores
terceirizados de pequenas empresas, fazendo com que produzissem trabalho e
produtos com base em baixos salários e preços e descarregando todo tipo de
riscos sociais e financeiros sobre eles.

A operação
ideológica em curso consiste em apresentar a crise econômica como sendo um
produto da crise sanitária (um fator supostamente aleatório e fora de controle,
o que não é verdade) quando, na verdade, aquela precedeu a pandemia, que a
manifestou de modo aberto e a aguçou. O “pacote econômico” anunciado, nos EUA,
por Donald Trump, “modelo” e mandatário de Bolsonaro, foi qualificado, pelo seu
montante impressionante (US$ 3,2 trilhões, que equivalem a 150 vezes o “pacote” brasileiro) como
uma manifestação da segurança econômica do país devida aos grandes recursos
econômicos nas mãos do Estado.

Na
verdade, nos EUA assistimos a uma ascensão espetacular da chamada “dívida
corporativa”; no contexto de décadas de acesso a “dinheiro (crédito) barato”,
as empresas não financeiras viram seu endividamento mais que dobrar, de US$ 3,2
trilhões em 2007 para US$ 6,6 trilhões em 2019, mais do que o dobro do pacote
de Trump. A dívida corporativa é uma bolha gigante funciona como fator de crise
global, como as hipotecas chamadas subprime em 2007-2008. Nessa
situação, um choque repentino no sistema pode desencadear uma onda de
inadimplência corporativa, colocando a economia global em risco de colapso.

Os
EUA elevam qualitativamente sua dívida pública, situando-se no limiar da falência
financeira do Estado e de uma hiperinflação, apenas para adiar provisoriamente
o colapso de todo o sistema: “A economia global está arruinada. Cadeias de
suprimentos e redes de viagens foram severamente perturbadas, as bolsas de
valores afundaram e uma recessão agora parece quase inevitável. Até o mercado
dos títulos públicos dos EUA, normalmente um bastião de segurança durante
períodos de turbulência no mercado, tornou-se extremamente volátil.

A
situação é fluída e incerta, tornando tênues e improváveis as projeções sobre
as consequências de curto prazo. Mas, dada a gravidade da situação, vale a pena
perguntar: a chegada do Covid-19 significa que o dia do acerto de contas para
tomadores de empréstimos corporativos sobrecarregados está próximo? Realizamos
pesquisas que mapeiam a estrutura de endividamento de empresas não financeiras
dos EUA listadas no mercado de ações. As evidências descobertas sugerem que os
especialistas têm razão em se preocupar com o aumento da alavancagem corporativa.

“Mas
precisamos ter cuidado ao especificar quais corporações são mais suscetíveis à
inadimplência. Ao classificar os níveis de endividamento para empresas de
diferentes tamanhos, nossa análise produz resultados impressionantes. O que
descobrimos é que as pequenas e médias empresas enfrentam os encargos mais
significativos da dívida, tornando-os especialmente vulneráveis a uma
desaceleração do mercado. Enquanto isso, as empresas no escalão superior
parecem ser mais robustas financeiramente do que há quase meio século. Se o
Covid-19 é realmente o catalisador de uma catástrofe da dívida corporativa, ela
vai atingir os que estão no fundo do poço. O resultado provável? Mais
turbulência no mercado, mais concentração e menos investimento” (Joseph Baines
e Sandy Brian Hager. Covid-19 and the Coming Corporate Debt Catastrophe,
13 de março de 2020). Uma recolonização do mundo pelo grande capital
monopolista, em especial norte-americano, está na pauta geopolítica, com
consequências para todo o planeta, em primeiro lugar para a China. O Brasil é
um peão nessa disputa.

Não
estamos diante de uma crise que só afetaria, ou afetaria principalmente, o
setor financeiro: “Nossa estrutura produtiva, superconcentrada, exagerada e
altamente enfraquecida, já devia ser avaliada. A segunda semana de março,
quando a OMS atualizou o Covid-19 para “pandemia global”, testemunhou um abalo
sem precedentes nos mercados mundiais. As bolsas de valores nos EUA sofreram o
maior declínio em um dia desde o craque de 1987, apesar do corte na taxa de
juros do Federal Reserve e da promessa de injetar trilhões no sistema.

Não
foi uma “correção” confortável. Invulgarmente, as bolsas de valores, geralmente
consideradas mais arriscadas, não estavam sozinhas na turbulência. Os mercados
de títulos menos arriscados também sofreram, assim como os mercados nos ‘mais
seguros’ de ativos, títulos dos EUA e mercados de ouro, à medida que os
investidores buscavam liquidez. Além disso, a dor era mais do que financeira.
Como país após país impôs paralisações e restrições de viagens, companhias
aéreas, companhias de cruzeiros, aeroportos e outras empresas relacionadas a
viagens, juntamente com vastas áreas do grande setor de serviços, provavelmente
inflado, que depende principalmente da produção e consumo face a face, sofreram
fechamentos, cortes e demissões.

Cadeias
de suprimentos interrompidas e mercados em colapso pressionaram a produção.
Além disso, em outro desenvolvimento, a desunião entre a Opep e seus aliados
levou a uma guerra de corte de preços que fez antieconômica a produção de xisto
dos EUA, uma das estrelas mais brilhantes do firmamento econômico em uma década
sombria, pois ela é dependente de altos preços do petróleo” (Radhika Desai. The
Unexpected Reckoning: Coronavirus and Capitalism
, 17 de março de 2020).

Nesse
quadro mundial de crise, as
disputas sobre o custo, e sobre quem paga o custo, da pandemia, é o aspecto
central da luta de classes no atual cenário mundial, pondo, desta vez, em jogo
a vida e a sobrevivência da maioria dos explorados. Exemplos históricos não
faltam. As pestes e pandemias do passado não “unificaram”, como se costuma
propalar, a sociedade, mas, a contrário, a dividiram e enfrentaram como nunca
antes: a “Peste Negra” de 1347-1350 presidiu e acelerou o declínio da ordem
feudal na Europa (e foi o pano de fundo da ascensão de novas classes sociais,
das lutas entre as quais a burguesia capitalista emergiu finalmente como
vitoriosa); a “gripe espanhola” de 1918-1921, contra o pano de fundo das
destruições provocadas pela guerra mundial, viu uma onda revolucionária varrer
a Europa e o mundo, da qual a Revolução de Outubro e sua consolidação foi a
expressão mais avançada.

Voltemos,
porém, a nosso país e a “nossa” pandemia, ainda em estágio inicial. O Brasil é
o país da América Latina com o maior número de casos de coronavírus
confirmados, com o maior número de mortes e a maior subnotificação. Para os
explorados, deixar a administração da crise nas mãos da burguesia e de seus
representantes políticos significa um desastre humanitário. Assim que declara
um plano de guerra contra os trabalhadores em prol da preservação dos seus
lucros e uma política cosmética contra a epidemia, a burguesia brasileira se
refugia em suas casas de praia e suas fazendas, enquanto milhões de
trabalhadores habitam favelas sem saneamento básico, sem comida garantida e sem
a menor possibilidade de distância social.

O
roteiro liderado do governo brasileiro corresponde à política geral do
imperialismo sobre o coronavírus. A rejeição da quarentena para permitir a
disseminação em massa do vírus foi anunciada pelo britânico Boris Johnson como
o “método” de melhor custo-benefício para o capital financeiro. A fantasia de
que o contágio em massa provocaria imunidade natural foi imediatamente
rejeitada por todos os especialistas em saúde, e a pressão popular levou
Johnson a voltar parcialmente e iniciar uma política de mitigação. Os EUA
seguiram uma linha similar, com a única diferença de que sua implementação
abandonou qualquer protocolo e foi imposta mediante as habituais mentiras de
Donald Trump. O resultado foi um cenário assustador, que levou governadores e
autoridades locais, como no caso de Nova York, a agir contra o relógio.

Bolsonaro
viajou à Flórida para receber ordens de Trump – conseguindo que o vírus se
espalhasse em toda sua comitiva, tornando-se responsável por tornar o DF a
terceira unidade da federação em número de casos de Covid-19. Ao contrário dos
britânicos, que anunciaram o experimento de “imunização natural” para todo o
país, o governo Bolsonaro manobrou e ocultou informações para uma política de
fato consumado. A subnotificação de casos foi resultado de uma política do
governo, com a cumplicidade da grande mídia.

Quando
o número de casos suspeitos saltou após o Carnaval, começando a aparecer
contágios em todas as regiões do país, o Ministério da Saúde começou a relatar
apenas os casos confirmados, ficando atrás dos números relatados pelos
secretários de Estado. A plataforma on-line que registrava os casos foi retirada
do ar, paralelamente à insistência de Bolsonaro de que o coronavírus fosse
descrito como uma “gripezinha” e defendesse a concorrência de multidões nas
igrejas evangélicas. A OMS alertou que a luta contra a epidemia exigia não
apenas restrição total, mas também testes maciços para detectar em detalhes o
avanço do vírus. O governo brasileiro decidiu não fazer nem uma coisa n outra,
causando contaminação geral. A ocultação da situação real promovida pelo
Ministro da Saúde – elogiada por unanimidade pela imprensa como “o adulto na
sala” – foi funcional à política ditada por Bolsonaro.

A
reação inicial do governo e da grande burguesia foi aproveitar a epidemia para
extorquir o Congresso, através de Paulo Guedes, a fim de exigir a aprovação do
pacote de reformas contra os trabalhadores (privatizações, reforma
administrativa, etc.). Há mais de duas semanas, Guedes foi informado de um
estudo reservado do Banco Central que mostrou uma disseminação do coronavírus
no Brasil em uma escala maior do que na China e na Itália. Um novo pacote
econômico de “anticoronavírus” autorizou as empresas a reduzir os salários em
50%, um auxílio mensal insignificante de 200 reais (menos de US$ 40), durante
três meses, para 40 milhões de trabalhadores que foram lançados na informalidade,
benefícios fiscais para as grandes empresas e compra de títulos públicos pelo
Banco Central, em resposta à seca no mercado financeiro. O embate com o
Legislativo acabou elevando esse montante para R$ 600, para evitar uma
catástrofe social que poderia virar um terremoto político.

A 20
de março, o ministro da Saúde admitiu que até final de março a pandemia deveria
iniciar uma curva ascendente acentuada e que “claramente” o sistema de saúde
brasileiro entraria em colapso no final de abril. A fase de crescimento
exponencial dos casos deve durar em abril, maio e junho, com platô a partir de
julho, para começar a cair a partir de setembro. Isso significa que, a partir
de maio, não haverá capacidade de atender casos graves que precisem de cuidados
intensivos, fazendo com que dezenas ou centenas de milhares morram por falta de
cuidados. Em vez de responder a essa realidade com a única política possível,
ou seja, com uma política de restrição de movimentos e testes maciços, haverá
apenas “algumas interrupções”.

A promessa
de milhões de testes em um futuro incerto, quando a catástrofe será inevitável,
é apenas uma cortina de fumaça para esconder a política real do governo. O
ministro Mandetta repetia diariamente, até há pouco, que testes em massa seriam
um “desperdício de recursos”. Os principais funcionários do grande capital
brasileiro, com a FIESP no comando, comemoraram a decisão do governo de “não
parar” e o pacote de benefícios de Guedes.

O
apoio ao governo trouxe novos benefícios ao setor, com a autorização para
suspender os contratos de trabalho por quatro meses durante a epidemia, sem
pagamento de quaisquer salários, além de isenções fiscais e pagamento de cargas
sociais. Bolsonaro apareceu determinado a enviar a classe trabalhadora para o
matadouro. O escândalo nacional provocado pelo anúncio da MP obrigou Bolsonaro
a recuar (por quanto tempo?), tergiversando mediante o anúncio de medidas
“complementares” que surtirão feitos semelhantes em um curto prazo.

Sob
o comando de Donald Trump e em busca de um bode expiatório, o bolsonarismo
lançou uma provocação contra a China, que abriu uma profunda fissura em sua
base política de apoio. A pressão da burguesia do agronegócio (a China é o
maior parceiro comercial do Brasil, responsável por 30% de suas exportações) colocou
o governo em uma situação de extrema fraqueza, no meio de uma crise política
que dança ao som dos panelaços diários e do aumento diário do número de casos
de contágio e de mortes.

A
classe capitalista brasileira está profundamente dividida, e seu sistema
político fraturado. A principal empresa de consultoria mundial para avaliação
de “risco político”, a “Eurasia”, detectou (e decretou, para os potenciais
investidores) a possibilidade de “crise institucional” no Brasil (O Estado
de S. Paulo
, 24/3/2020), acelerando uma fuga de capitais que já é
mensurável cotidianamente. A crise é tão profunda e acelerada que a burguesia
começou a se voltar para uma tentativa de enfrentar a crise sanitária, tornando
as necessidades de saúde uma fonte de negócios. Foi aberta uma disputa para
definir que classe social liderará a administração da crise. A classe
capitalista usará o aparato estatal para preservar a ordem, as relações de
propriedade, e salvar grandes as empresas da falência, às custas da vida de
milhões de brasileiros.

A
única saída viável para os trabalhadores e explorados em geral é impor uma
centralização compulsória de todos os recursos do país, com base em um único
plano social e econômico, sob a mobilização e liderança dos próprios
trabalhadores. As empresas começaram a demitir (inclusive no crítico setor de
transportes, responsável por toda a logística de distribuição de alimentos e medicamentos!):
devemos exigir a proibição de toda e
qualquer demissão em situação de emergência nacional e social. O
controle do sistema financeiro pelos trabalhadores do setor, para evitar a fuga
de capitais e o esvaziamento do país, também está na ordem do dia, pondo na
agenda a perspectiva de sua nacionalização.

O
combate à epidemia requer uma ação centralizada que coloque todos os recursos
econômicos, materiais e humanos, da nação a serviço do travamento do contágio,
garantindo segurança alimentar e de saúde para toda a população trabalhadora,
ampliando a capacidade do sistema de saúde para atender todos os doentes,
priorizando a produção e distribuição de itens de trabalho para os
profissionais de saúde. É necessário transformar o sistema de produção em
função das necessidades postas pelo cenário de crise.

Os
profissionais de saúde denunciam a falta de equipamentos e suprimentos médicos.
O governo chega ao ponto de impor que médicos e enfermeiros reutilizem as
máscaras de proteção. Trabalhadores de call centers e telemarketing,
trabalhadores industriais, distribuidores de alimentos e remédios iniciaram
processos de luta para exigir garantias de segurança e higiene. Nas favelas e
periferias, comitês de bairro e comunidade assumem a tarefa de estabelecer
vigilância sanitária para reduzir a propagação da praga. A greve dos metalúrgicos
em São Paulo exigindo férias remuneradas é a ponta de um iceberg que tende a
crescer sem parar. É necessário formar comitês sanitários nas fábricas, nos
locais de trabalho, nas comunidades, que se unifiquem em um grande movimento
nacional.

No “Manifesto em Defesa do Mundo do Trabalho”, assinado por entidade sindicais e profissionais e diversas personalidades, se repudia a eventual decretação de estado de sítio e se defende um programa que reproduzimos a seguir in extenso:

1. Proibição da demissão de empregadas e empregados, servidoras e
servidores públicos.

2. Proibição da redução de salários de empregadas e empregados,
servidoras e servidores públicos.

3. Interrupção imediata da prestação de trabalho, nos setores
público e privado, em todas as atividades não relacionadas, de forma direta, à
preservação da vida, sem prejuízo do integral recebimento de salários.

4. Interrupção imediata da prestação de trabalho, nos setores
público e privado, dos trabalhadores e trabalhadoras com mais de 60 (sessenta)
anos, gestantes e demais inseridos nos grupos de risco, independente da
atividade exercida, sem prejuízo do integral recebimento de salários.

5. Nas atividades essenciais à preservação da vida, que não possam
ser interrompidas, obrigação do fornecimento, pelo empregador público e
privado, inclusive quanto às trabalhadoras e trabalhadores terceirizados e informais,
dos meios necessários ao deslocamento seguro ao ambiente de trabalho e dos
equipamentos de proteção individual e de proteção coletiva necessários à
redução de riscos.

6. Diálogo e efetiva negociação com o sindicato de trabalhadores, como condição necessária para a implementação das medidas de restrição de riscos, tais como definição dos equipamentos imprescindíveis para trabalho dos profissionais de saúde, vedação da sobrejornada, prática de revezamento e a redução da jornada sem diminuição de salários, observando-se as notas técnicas emitidas pelo Ministério Público do Trabalho.

7. Determinação do imediato pagamento de adicional por risco de
vida a todos profissionais que não tenham como interromper sua atividade.

8. Proibição de contratação de pessoas para realização das
atividades essenciais por meio de contratos precários (intermitente ou que não
asseguram direitos trabalhistas – legais e convencionais – mínimos).

9. Formalização imediata do vínculo de emprego dos trabalhadores
que prestam serviços a empresas proprietárias de plataformas digitais,
impondo-se, ainda, a criação de um fundo a cargo dessas empresas para proteger,
de forma emergencial, a renda de seus trabalhadores.

10. Fornecimento e custeio, pelo empregador, dos meios necessários
para a realização, dentro dos padrões de saúde e segurança, do trabalho em
domicílio, quando se mostre viável.

11. Observância da limitação da jornada das trabalhadoras e dos
trabalhadores sujeitos ao teletrabalho.

12. Vedação de qualquer medida que implique enfraquecimento dos
instrumentos disponíveis para a fiscalização das condições de trabalho das e
dos profissionais que atuam em atividades essenciais.

13. Apoio institucional às formas de auto-organização, organização
social e sindical e de solidariedade coletiva, inclusive financeiro, como
caminho fundamental para ajudar no combate à pandemia.

14.Pagamento de renda básica de cidadania para todas as famílias
com renda inferior ao mínimo necessário indicado pelo DIEESE, em fevereiro de
2020, no importe de R$ 4.366,51 (quatro mil, trezentos e sessenta e seis reais
e cinquenta e um centavos).

15.Extensão do período de recebimento do seguro-desemprego por
prazo indeterminado, para quem está fruindo ou vier a fruir o benefício, nesse
caso, com cancelamento do tempo mínimo exigido para o acesso.

16. Revogação da Emenda Constitucional 103/19 (Reforma da
Previdência), da Emenda Constitucional 95 (limitação de gastos na esfera das
políticas públicas sociais) e da Lei 13.467/2017 (“reforma” trabalhista), vez
que destruidoras das bases do Estado Social.

17. Imediato pagamento das aposentadorias de todas e todos que já
alcançaram esse direito, mas que, devido às políticas governamentais de
retardamento de concessão dos benefícios, esperam na fila há meses.

18. Renúncia fiscal para famílias com renda inferior ao mínimo
necessário indicado pelo DIEESE e para pessoas jurídicas com até 10 empregados
que não usem meios fraudulentos para mascarar vínculos de emprego.

19. Remissão de dívida bancária de empréstimos, para famílias com
renda inferior ao mínimo necessário indicado pelo DIEESE.

20. Proibição de ordens de despejo por falta de pagamento de
aluguel e vedação à interrupção de fornecimento de energia elétrica, gás, água,
por inadimplemento de famílias que tenham renda igual ou inferior ao mínimo
indicado pelo DIEESE.

21. Suspensão de cobrança de tributos e contas relativas aos
serviços essenciais, durante o período de crise sanitária.

22. Direcionamento prioritário do orçamento público às atividades
essenciais ligadas à saúde pública.

23. Suspensão do serviço da dívida, grande responsável pela crise
fiscal.

24. Suspensão imediata dos benefícios fiscais e proibição de
prorrogação de prazos para pagamento ao estado de dívidas ordinárias,
relativamente às grandes empresas.

25. Cobrança imediata e com rito sumaríssimo dos maiores devedores
do Estado.

26. Exigência de aporte de dinheiro por parte das instituições
financeiras, equivalente ao lucro líquido obtido em 2019, a ser destinado para
a construção de hospitais temporários e fornecimento gratuito de alimentos e
remédios para todos que deles necessitarem.

27. Permissão de estatização de hospitais para o atendimento
imediato de necessidades da população em geral.

28. Determinação de utilização imediata de prédios públicos ou
privados que não estejam atendendo sua função social, assim como de hotéis e
congêneres, para que sirvam de abrigo à população de rua, para centros de
atendimento à saúde das pessoas infectadas, para pessoas em isolamento e para
aqueles que dependem de cuidados de terceiro e este esteja em isolamento ou
infectado.

29. Imposição às grandes transportadoras e companhias aéreas e
rodoviárias que viabilizem o transporte gratuito de alimentação e medicamento a
todas as cidades brasileiras.

30. Controle e fiscalização de preços de medicamentos,
combustíveis e alimentos, para evitar a exploração oportunista de situação
extremamente grave e delicada.

31. Quebra de patentes de remédios necessários ao tratamento
médico da Covid-19.

32. Subvenção à fabricação em larga escala de respiradores
mecânicos, produtos de esterilização e assepsia e equipamentos de proteção
individual e coletiva para a área da saúde, a serem distribuídos em todo o
território nacional.

33. Manutenção da totalidade de bolsas de estudos de pós-graduação
e intensificação das políticas de permanência a estudantes cotistas, bem como
dos demais programas de fomento educacional e de pesquisa, inclusive como forma
de estímulo ao desenvolvimento de soluções à crise sanitária.

34. Concessão imediata de benefício proveniente do orçamento da
União, com subrogação do Estado na dívida salarial, para assegurar o
recebimento dos salários de empregados e empregadas de microempresas.

35. Necessária ampla divulgação de informações, em meio acessível,
para pessoas com deficiência (sensorial e intelectual) e respeitados os seus
plenos direitos.

36. Garantia do o acesso à internet de todas as pessoas com
celulares pré-pagos ou planos populares, sem a redução de velocidade, corte ou
cobrança de conexão enquanto durar o isolamento social necessário ao combate do
Covid-19.

O programa
para enfrentar a crise passa também por defender, para todas as indústrias
encarregadas de produzir para a saúde e para o abastecimento da população, uma
jornada de trabalho seis horas, na qual a “distância social” e todas as medidas
de segurança e higiene sejam observadas, o que implica estabelecer um quarto
turno de trabalho. A reconversão de grandes instalações industriais para a
produção de respiradores e outros dispositivos médicos deve ser realizada sob o
controle dos trabalhadores. O controle de preços e de abastecimento por
comissões de trabalhadores e vizinhos deve ser posto na ordem do dia, haja
vista a escassez e o encarecimento de gêneros de primeira necessidade nos
supermercados, pondo na agenda política o controle operário da produção. O
princípio essencial que deve orientar a resposta à crise é que as necessidades
dos trabalhadores devem ter prioridade absoluta sobre os interesses do
benefício privado. A classe trabalhadora deve exigir testes universais e acesso
livre e igual aos cuidados de saúde; o fechamento de toda a produção não
essencial, com garantia de salário para os afetados; condições seguras de
trabalho em setores essenciais para o funcionamento da sociedade; e um programa
de emergência para construir a infraestrutura de assistência médica e garantir
que todos os trabalhadores da saúde tenham acesso ao equipamento médico e de
segurança necessário. Só para começar.

*Osvaldo Coggiola é professor
titular no Departamento de História da USP.

A crise acelerada – 31/03/2020 – 1/1
© 2025 A Terra é Redonda. Todos direitos reservados. ISSN 3085-7120.