A crônica de Machado de Assis sobre Tiradentes

Imagem: João Pavese
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Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES*

Uma análise machadiana da elevação dos nomes e da significação republicana

1.

Na primeira crônica da série A Semana, última que publicaria, Machado de Assis, escrevendo três dias depois da comemoração de Tiradentes (que se tornaria símbolo do novo regime e do país), constrói um texto intrincado, mas que, como costuma acontecer, deixa seu significado à vista do observador atento. Numa primeira olhada, estamos diante do narrador travesso que começa em nenhum lugar e termina em lugar nenhum.

Entre uma coisa e outra, ele muda de assunto como o país mudava então de governo naqueles primeiros anos de consolidação republicana. Por detrás do vai e vem desnorteante, encontramos, no entanto, uma linha de raciocínio que persegue todo o texto: a adequação ou inadequação dos nomes às coisas. Trata-se de assunto antiquíssimo, que poderia muito bem ser pensado em chave filosófica. O narrador, desde o início, aborda o problema em chave cômica.

Depois de afirmar que havia acordado com as galinhas na semana anterior e que se havia então proposto um problema, ele logo muda de assunto e coloca a questão central: o nome adequado era uma charada. O tema é central mas representa uma quebra de expectativa, porque o leitor, por certo, está esperando que ele nos vá dizer qual é o problema que se havia proposto. Adiantando o raciocínio, digamos que, ao final, o problema era exatamente este que agora se apresenta diante de nós: o nome mais adequado para caracterizar as coisas.

A diferença de nomeação é então interpretada não pela adequação entre a nomeação e a natureza da coisa nomeada, mas pelo efeito que o nome tem sobre a audiência. O nome problema agrada aos leitores austeros e o narrador, supostamente interessado em identificar-se também como um austero, opta pelo termo no lugar de charada. Mas a frase seguinte quebra mais uma vez a expectativa pela comparação dele próprio com as atrizes, que não fariam mais “benefício, mas festa artística”.

A comparação coloca, ainda no primeiro parágrafo, o leitor atento diante do que realmente se está a processar: o rebaixamento cômico de problemas “austeros”. Em vez de uma filosofia sobre a adequação do nome à natureza do nomeado, a imagem de dignidade ou indignidade que determinada nomeação gera, a despeito de sua adequação. “A cousa”, ele nos diz sobre o benefício ou festa artística, “é a mesma”. No parágrafo seguinte a conclusão: “Tudo pede certa elevação”. A elevação, no entanto, quem dá é o nome e não a natureza elevada da coisa que se nomeia.

O tom de piada se confirma no parágrafo seguinte pela historieta dos “velhos estimáveis” que, jogando seu xadrez, dormiam no meio da partida mas, ao acordarem-se mutuamente, referiam-se um ao outro não pelos nomes, mas pelos títulos que teriam adquirido na vida: “Comendador” da Ordem da Rosa por serviços no Paraguai e “Major” da Guarda Nacional. Para além da cena evidentemente cômica, que por si rebaixa os títulos, eles fazem ainda uma elevação extra: segundo o narrador, estaríamos diante de um cavaleiro e não de um comendador; de um tenente e não de um major.

A elevação, cômica no trato cotidiano entre dois amigos idosos que jogam seu xadrez e dormem no meio da partida, é, acima de tudo, mentirosa: eles não são nem major e nem comendador. Aqui temos um novo elemento importante. A nomeação que atribui dignidade não precisa operar simplesmente pelos nomes socialmente mais prestigiosos, mas pode, e deve, falsear a coisa nomeada. A mentira a serviço da elevação revela o caráter ideológico da linguagem, que corre em paralelo ao teor filosófico do ato em si de nomear e da adequação do nome ao nomeado.

2.

Aí entra nosso personagem: Tiradentes. Publicada no dia 24 de abril de 1892, o cronista coloca no centro de suas discussões o problema do recém-herói republicano. Ele confirma a necessidade do culto ao alferes mártir e nos joga no meio do problema: “A prisão do heroico alferes é das que devem ser comemoradas por todos os filhos deste país, se há nele patriotismo, ou se esse patriotismo é outra cousa mais que um simples motivo de palavras grossas e rotundas”.

Tiradentes deve ser comemorado em nome do patriotismo que, no entanto, deve ser mais do que “palavras grossas e rotundas”. Ou seja: deve ser mais do que a simples elevação pela linguagem, do que o jogo retórico que produz, como havíamos visto antes, mentira. No assunto sério, a coisa deve corresponder ao nome e o sentimento nobre do amor à pátria e às personalidades que se sacrificaram para formá-la deve ser mais do que simplesmente linguagem falseadora. Esse é um dado relevante que, na sequência imediata, é simplesmente descartado.

O assunto se volta para a comparação entre o alferes e os outros inconfidentes, diante dos quais ele deveria mesmo ser favorecido, informa-nos o narrador: “Mas o que se ofereceu a carregar com os pecados de Israel, o que chorou de alegria quando viu comutada a pena de morte dos seus companheiros, pena que só ia ser executada nele, o enforcado, o esquartejado. o decapitado, esse tem de receber o prêmio na proporção do martírio, e ganhar por todos, visto que pagou por todos”.

Note o leitor atento que a linguagem começou a pesar e investiu na identificação de Tiradentes com uma figura de ordem cristológica: ele carrega os pecados de Israel e deve receber o prêmio na proporção de seu martírio. A relação que se estabelecia então entre Tiradentes e a figura de Cristo já foi documentada pela historiografia e o narrador está na onda discursiva de seu tempo.

Na sequência, o tom grandiloquente continua na identificação de Tiradentes como o Prometeu: “Relede Ésquilo, amigo leitor. Escutai a linguagem compassiva das ninfas, escutai os gritos terríveis, quando o grande titão é envolvido na conflagração geral das cousas. Mas, principalmente, ouvi as palavras de Prometeu narrando os seus crimes às ninfas amadas: “Dei o fogo aos homens; esse mestre lhes ensinará todas as artes”. Foi o que nos fez Tiradentes”.

Quem está familiarizado com a prosa machadiana logo vai reconhecer neste “Relede Ésquilo, amigo leitor” o eco fundador do outro, aquele que o narrador de Esaú e Jacó nos oferece no início do romance: “Relê Ésquilo, meu amigo, relê as Eumênides, lá verás a Pítia, chamando os que iam à consulta: “Se há aqui Helenos, venham, aproximem-se, segundo o uso, na ordem marcada pela sorte””. As frases se espelham, mas o conteúdo é diverso: Tiradentes, como Prometeu, ter-nos-ia dado o fogo que nos ensinaria todas as artes.

Bom, aparentemente, mudamos de assunto. Não estamos mais falando sobre a elevação dos nomes, mas sobre o significado que deve ter Tiradentes em nossa história nacional, ou seja, de um patriotismo que não seja apenas sabujo na boca de gente estúpida. Ledo engano. O parágrafo seguinte, no lugar de nos oferecer uma explicação do que viria a ser esse “fogo”, acaba por voltar ao problema inicial e colocar uma pulga atrás da orelha do leitor acostumado aos malabarismo machadianos. Trata-se, agora, de discutir se o nome, “Tiradentes”, é mesmo o mais adequado para um herói nacional:

Certamente que o tempo trará a familiaridade do nome e a harmonia das sílabas; imaginemos, porém, que o alferes tem podido galgar pela imaginação um século e despachar-se cirurgião – dentista. Era o mesmo herói, e o ofício era o mesmo; mas traria outra dignidade. Podia ser até que, com o tempo, viesse a perder a segunda parte, dentista, e quedar-se apenas cirurgião.

A esperança do narrador é que se possa fazer, com Tiradentes, o mesmo que haviam feito entre si os dois velhos dorminhocos: dar uma subidinha no status sociais pela alteração dos nomes. Em vez de Tiradentes, “cirurgião”. Emenda-se, então, outra historieta que trata da mesma questão: um jovem noivo vai protelando o casamento para além do adequado e, quando a sogra vem com o “pau moral” para tirar explicações, ele logo revela o imbróglio: “–Perdão, mas não é pelo título de agrimensor, propriamente dito, que estou demorando o casamento. Lá na roça dá-se ao agrimensor, por cortesia, o título de doutor, e eu quisera casar já doutor”.

Não se trata, portanto, de conseguir sustentar a nova família, mas de como ele seria chamado na roça. Chamado sem o ser, que se note bem. Chamado de mentirinha. Título da roça. O provincianismo se desmascara. O título de mentirinha é hábito provinciano que não consegue distinguir a grandeza da ordinariedade porque nunca esteve, verdadeiramente, diante da grandeza. Entre ordinários e medíocres, os ordinários viram doutores, Prometeus ou coisa que o valha.

E voltamos ao problema central: o querer alterar o título de Tiradentes para Cirurgião é um hábito roceiro ao qual, no entanto, o narrador bem-educado que lembra Ésquilo e a Bíblia recai como cordeirinho no seu comentário bem-humorado. E isso acende a luz de alerta em relação ao problema central: será que dizer que Tiradentes nos entregou o fogo que Prometeu no mito teria entregue à humanidade não é, ao fim e ao cabo, provincianismo que não consegue enxergar bem as coisas?

Invertendo a conclusão afirmativa do próprio narrador: Tiradentes não nos entregou nada e dizer que ele o tenha feito é uma espécie de título de mentirinha que um narrador patriótico atribui ao recém-canonizado Cristo brasileiro. Vista no contexto, a referência ao inconfidente parece o conteúdo mesmo da crônica, em torno do qual as outras historietas, longe de ser mera digressão despropositada de um narrador errático, atualizam um contexto que entrega sentido à elevação do alferes em símbolo nacional. Longe de ser elucubração despropositada de alguém desinteressado, o texto tem um núcleo claro na questão de Tiradentes e no que ele significa (ou deixa de significar) em nossa cultura.

3.

O último parágrafo, que parece mais uma volta sobre o parafuso na mudança de assunto, está, na verdade, falando da mesma coisa. Trata-se, agora, do “caso eleitoral”.

O remate é tão bom que merece ser citado na integralidade: “Daqui ao caso eleitoral é menos que um passo; mas, não entendendo eu de política, ignoro se a ausência de tão grande parte do eleitorado na eleição do dia 20 quer dizer descrença, como afirmam uns, ou abstenção como outros juram. A descrença é fenômeno alheio à vontade do eleitor: a abstenção é propósito. Há quem não veja em tudo isto mais de ignorância do poder daquele fogo que Tiradentes legou aos seus patrícios. O que sei, é que fui à minha seção para votar, mas achei a porta fechada e a urna na rua, com os livros e ofícios. Outra casa os acolheu compassiva, mas os mesários não tinham sido avisados e os eleitores eram cinco. Discutimos a questão de saber o que é que nasceu primeiro, se a galinha, se o ovo. Era o problema, a charada, a adivinhação de segunda-feira. Dividiram-se as opiniões; uns foram pelo ovo outros pela galinha; o próprio galo teve um voto. Os candidatos é que não tiveram nem um, porque os mesários não vieram e bateram dez horas”.

O nome agora tem consequências porque chamar a ausência dos eleitores (coisa) de descrença ou abstenção (nomes) implica em interpretar a vida política e tomar posição. Aqui o problema assume outra feição, que pode ser retroagido: dizer que Tiradentes é o Prometeu que nos entregou o fogo é já interpretar o mundo. Isso não implica, por óbvio, que a interpretação é correta, como a contraposição entre descrença e abstenção nos mostra.

Uma mesma coisa pode ser interpretada de maneiras variadas. Descrença não implica vontade, ou seja, acomete de forma generalizada à população e não tem uma mensagem política clara. Abstenção é propósito, ou seja, implica na reflexão ativa sobre a situação política e na decisão de não ir votar; abster-se é um ato pleno de sentido enquanto o descrer é um ato de esvaziamento do sentido e da vontade. Quem quiser atestar a atualidade da frase pode assistir às discussões jornalísticas sobre os dados crescentes de ausência nos últimos pleitos para constatar que estamos no mesmo lugar de 1892.

A próxima sentença é a essencial: “Há quem não veja em tudo isto mais de ignorância do poder daquele fogo que Tiradentes legou aos seus patrícios”. Nem descrença nem abstenção: ignorância. Agora temos a pista do que venha a ser aquele fogo que nos legou Tiradentes: não se trata simples e puramente da independência, mas da República, da possibilidade de um conjunto de eleitores tomar posição no seguimento dos assuntos nacionais. Eleição como quintessência do aburguesamento do país que havia varrido do mapa uma monarquia e instaurado uma República e Tiradentes como quintessência da eleição.

Ora, o fogo de Tiradentes é, então, a democracia, a participação popular. Mas agora que achamos o conteúdo podemos voltar à piada de antes: não seria essa história de República e de eleição um engodo? Uma mentirinha da roça? Chamamos um agrimensor de doutor e um tenente chama o cavaleiro de comendador assim como o cavaleiro chamado de comendador chama o tenente de major. Não estamos chamando de República uma coisa que não merece o nome? Ou ainda: não estaríamos transformando num herói republicano uma figura que simplesmente não se encaixa no papel?

A continuação do parágrafo é ainda reveladora: o narrador, tendo chegado a seu local de votação, encontra tudo na rua. Não explica porque, mas um leitor mais ou menos informado sabe que eleição no século XIX brasileiro era coisa violenta que envolvia porrada. No mínimo estamos diante de desorganização que impede o ato soberano do voto. E, no final, como chiste que retoma o começo, outra piada: os eleitores decidem discutir quem veio primeiro, se o ovo ou se a galinha e, no fim, sem conseguir votar na eleição de verdade, ficaram reduzidos à pantomima de votarem nos candidatos rebaixados dessa nova eleição. O entrecho é interessante porque os eleitores que foram votar também não o conseguiram, o que aponta para outra explicação para a ausência: a desorganização ou a violência intrínsecas dos processos eleitorais brasileiros. O país não é feito para que se vote.

4.

Mas a crônica não acaba aqui. Ele prefere terminar citando os versos inicias do poema “Sara La bagnose”, de Victor Hugo.[i] A personagem indolente do poema está deitada numa rede se banhando em cima de um lago em que passam as águas de um rio ateniense. Ela deixa o tempo passar, e, depois da descrição de sua beleza, finalmente a encontramos dizendo no que está pensando:

“Oh! se eu fosse capitão
Ou sultana,
Eu tomaria banhos ambreados
Numa tina de amarelo mármore,
Perto de um trono,
Entre dois grifos doirados!

Eu teria um rede de seda
Que se dobra
Sob um corpo prestes a desfalecer;
Eu teria uma macia otomana
Donde emana
Um perfume que faz amar.

Eu poderia divertir-me nua,
Sob as nuvens,
No riacho do jardim,
Sem temer ver na sombra
Do bosque sombrio
Dois olhos incendiarem-se de repente.

Então eu poderia, sem que fosse pressionada
A minha indolência,
Deixar com as minhas vestes
Espalhadas sobre as grandes lajes
As minhas sandálias
De pano bordado com rubis.”

Como se pode notar, a referência não é aleatória e reforça o tema central de imaginar ser aquilo que não se é. Como nosso tenente gosta de ser chamado de major, a Sara banhista de Victor Hugo gostaria de ser uma sultana. Mas a diferença também é essencial: a banhista quer ser a sultana simplesmente para poder continuar seu desfrute despreocupado da natureza maravilhosa que a cerca. Trata-se apenas de um sonho, de um desejo e de um delírio de nossa “indolente” banhista bela.

No caso do major, do comendador e do mártir republicano a coisa tem outra função: o sonho assume figura de realidade imediata, mesmo que de mentirinha. Mais: o falseamento da elevação é a verdade social. Não sendo de jure doutor, o agrimensor o é de fato, porque o provincianismo assim o determina. Está tudo invertido. Na terra da fantasia a República está acontecendo sem eleições, ou seja, sem vontade popular. E tudo segue como se fosse normal.

Bem no finalzinho do poema a coisa se complica. As banhistas frívolas, que como nossa Sara cantam seu desejo de ser sultana, emendam a canção da seguinte forma:

– Oh! a indolente donzela
Que tão tarde se veste
Em dia de colheita!

É dia de colheita! Elas estão se banhando e se atrasando para o trabalho. Mas quem faz a emenda é o grupo, ficando na conta da banhista individual apenas a afirmação do desejo. O poema de Victor Hugo é complexo e mereceria mais atenção do que podemos lhe dar aqui, ficando apenas com algumas coisas. O narrador termina sua crônica referindo ao poema que fala sobre os assuntos que ele havia tratado sem, no entanto, colocar na sua citação os trechos que são verdadeiramente importantes para o tema.

É preciso se dar ao trabalho e ir ler o poema inteiro para se notar o que há de significativo. E aqui se joga com algo que havia perpassado a narração como um todo e que revela, nas práticas de escrita do próprio narrador, os mesmos hábitos que a crônica, no conjunto de rebaixamento e de confronto de suas partes, parece condenar: os hábitos brasileiros de elevação sem conteúdo elevado. A rigor, o narrador cita o trecho errado. Ele próprio, na verdade, havia caído na armadilha da elevação de Tiradentes como Prometeu e como Cristo, reproduzindo no seu discurso o que o conteúdo da crônica nega como válido. Ele é parte do problema que critica.

Se formos ler em chave positiva, poderíamos dizer que falta ao país a consciência grupal das jovens banhistas do poema de Victor Hugo: deve-se ir ao trabalho. Não se deve imaginar ser sultão quanto se é trabalhadora e se precisa ir para a colheita. Dito de forma simples: é preciso ir fazer a República antes de criar mitologias da República. É preciso que as pessoas votem e que haja algum nível mínimo de participação popular para que se possa dizer numa República.

E é sempre bom lembrar que, no XIX, República, apesar das infinitas discussões eruditas e bibliográficas em torno do que significa ou tenha significado essa ideia, estava vinculada à República Francesa, à revolução. E ainda mais na pena de Machado, que havia convivido na juventude com os exilados de 1848. República é voto e participação popular: o resto é elevação mentirosa de uma linguagem que se torce para qualquer sentimento de superioridade deslocada e sem conteúdo.

5.

Lembrar aqui o argumento de José Murilo de Carvalho sobre Tiradentes é esclarecedor. A certa altura de seu ensaio sobre a transformação do alferes em símbolo, o historiador mineiro se coloca a questão fundamental do porquê da escolha. Haviam outros movimentos mais próximos para simbolizar o republicanismo brasileiro e muito mais entranhados no que de fato a República significa. Por que a escolha exatamente da Inconfidência Mineira e de Tiradentes?

A resposta é maravilhosa: exatamente porque não aconteceu nada na Inconfidência, exatamente porque a Inconfidência, embora falasse de Emancipação e República, não dizia nada exatamente sobre Abolição ou participação popular (ao contrário, República ali ainda não era a dos franceses, mas a dos americanos que, como todos nós sabemos pela Hannah Arendt não implicava transformação social, mas apenas uma forma nova de gestão política), exatamente porque Tiradentes nunca representou, de fato, uma contestação ao sistema mas se diluía numa simbolia mais ou menos religiosa que a pintura do século XIX exploraria na identificação do mártir com o Cordeiro de Deus.

Ou seja, a República precisava de um símbolo que não simbolizasse nada. Imagine-se que se tivesse escolhido uma figura como Frei Caneca. O rapaz tinha participado verdadeiramente de um movimento com significação republicana e popular, era um verdadeiro mártir do que a República significava como francesia, para usar um termo português. Ele não servia para uma República não se pretendia republicana. Melhor era o símbolo esvaziado.

Ora, a crônica de Machado de Assis parece estar nos dizendo a mesma coisa sem o aparato erudito de José Murilo de Carvalho, apenas com a visão perspicaz de seu autor. Dizer que Tiradentes é o símbolo da República é elevá-lo ao que ele não é e fingir que a República seja republicana. Mas o problema é mais embaixo, porque a crônica deixa muito claro que isso não é fato isolado, mas está imiscuído à mentalidade popular. O que se faz com Tiradentes não é raio em céu azul: a sociedade brasileira o faz cotidianamente como hábito. Troca-se o nome de benefício por festa e aí por diante.

Existe um substrato social que é muito fácil não levarmos em conta. Digamos assim: a crônica coloca em cheque, pela identificação que temos todos com o ponto de vista inteligente do narrador, nossa própria prática corriqueira de atribuir conteúdo ao que, de fato, não o tem. De atribuir grandeza ao que, de fato, não o tem. Dito de outra forma: o narrador machadiano, entendido do ponto de vista da autoria, é um convide constante à autocrítica dos letrados.

Vou dar o pulo do gato para o que realmente importa. A crônica de Machado de Assis está falando, para me expressar em linguagem abstrata dos nossos dias, sobre a credibilidade das instituições, na capacidade das pessoas de acreditar nas instituições como mecanismos que dizem algo concreto. Assunto quentíssimo como se pode ver. Machado está tomando a institucionalização da República por meio de sua simbologia e está discutindo o que, de fato, a República representa e, a tomarmos seu juízo, ela significa pouco mais do que um doutor de mentirinha.

Troquemos a palavra República para a contemporânea democracia e o que temos? Ficamos com a mesma pergunta incômoda: o que a democracia significa hoje para as pessoas? Para o grosso das pessoas? Ela é um doutor de mentirinha? É só ligar a TV no comentarista certo da GloboNews e todos poderão ver que o narrador machadiano está lá, falando que Tiradentes é o Prometeu que nos entregou o fogo com o qual aprenderemos as outras artes. A mais importante delas sendo a justiça social.

Se formos acreditar nos jornais e nos comentaristas políticos, Lula ganhou as eleições de 2022 porque fez uma frente ampla e passou a representar a democracia contra um Jair Bolsonaro que corroía as instituições. Talvez isso o tenha viabilizado entre as classes dominantes e entre as classes médias que, como todos estão carecas de saber, representam muito pouco em termos de eleição.

Eu tenho para mim que ele ganhou por causa da fome, da inflação e da calamidade social que se experimentou na pandemia e que prometia vir para ficar. Lula ganhou a eleição não porque as pessoas olhassem para ele e vissem a democracia, essa coisa abstrata que, a rigor, ninguém que não tenha feito um curso superior de humanidades sabe o que seja. Ele ganhou porque os pobres e miseráveis olharam para ele e se identificavam com o que ele representa de fato, a mitigação da calamidade brasileira. Talvez seja o contrário do que os jornais digam: as classes médias e os que mandam tiveram que engoli-lo porque ele representava isso para o povo e iria ganhar a eleição de qualquer forma.

Para os de cima, eleição é sempre um estorvo. Vejam, se isso está correto, se a benesse dos seus primeiros mandatos foram fruto do boom das commodities, se tudo é mera propaganda, se seu governo é neoliberal ou coisa que o valha: nada disso importa para nosso problema. Isso é elucubração erudita. Não que não seja importante; é. Mas no nível da identificação popular, democracia significa um pouco de comida e uma sensação de otimismo social.

Tudo isso parece estar encarnado na figura dele. Pode ser tudo mistificação ideológica, o movimento da história pode estar apontando para outra direção, mas tenho pra mim que, na hora do vamos ver, ele só ganhou aqueles um milhão a mais de votos por causa disso. Esse é seu capital político. Fora disso, o que chamamos de instituições não existe. Fora disso, elas são um doutor de mentirinha ou um comendador sonolento.

Se formos tomar a crônica como lição política, o que é sempre um equívoco (mas um equívoco irresistível), poderíamos dizer que se trata de ir fazer com que a República seja alguma coisa que tenha significação na vida das pessoas. Ou, para usar a linguagem do Victor Hugo, deveríamos nos levantar e ir para a colheita. Parar de sonhar. Não compro a imagem de um Machado de Assis cético e relativista. A crônica está nitidamente escrita da perspectiva de que a República tenha significação de participação popular (se não, as piadas e o rebaixamento não fariam sentido) e isso só não se transforma em projeto político explícito porque o velho Machado de Assis já sabia que o mundo girava de maneira mais complicada e que o processo histórico tinha lá suas astúcias.

Trazendo a coisa para os nossos dias, seria algo como construir uma “cultura democrática”, para usar a expressão que a Heloísa Starling utilizou em sua entrevista no programa Roda Viva do ano passado. O que diabos isso significa no plano prático? Ninguém sabe. Ora, se ninguém sabe, é porque o pressuposto está errado e devêssemos abandonar as instituições. Na linguagem de Machado de Assis: largar mão do Tiradentes-Prometeu e avançar naquela citação que o Walter Benjamin faz do Hegel: alimentação e vestuário primeiro, Reino de Deus depois. O problema é que, entre a alimentação e o vestuário, lá vem o porrete ideológico e as complicações da história astuciosa. O Reino de Deus, ora, o Reino de Deus virou o Reino dos Céus.

Vamos terminar dizendo o seguinte, porque é quase a prova do acerto da crônica de Machado de Assis: o 21 de abril não é o dia de Tiradentes. É o dia de São Jorge e, por consequência, de Ogum. Ninguém vai comemorar o inconfidente. Todos vamos comer feijoada. Diferente de Tiradentes, Ogum significa alguma coisa na cultura popular. Como diz um de seus pontos: ele vence demanda, ele vem trabalhar, ele é seu Beira-Mar. Ou, como diz um outro, que acho o mais bonito de todos:

Ouvi um toque de clarim na lua.
Mas era o toque do maior do dia.
Ogum foi praça de cavalaria.
Foi ordenança da Virgem Maria.

Depois se segue um assobio de “lá rá lá rá” que imita o som de um clarim.[ii] Lindíssimo, porque o clarim, o instrumento que tem no nome a claridade, é tocado na lua, a luz na escuridão. A rigor, ele é a luz que emana da lua e, por isso, por ser a luz na escuridão, ele é “o maior do dia”. Quem toca é o Ogum que teria sido ordenança da Virgem Maria, num sincretismo maravilhoso que nos faz ver o orixá e o santo numa mescla que é difícil descrever plasticamente, mas que a sabedoria poética popular constrói com uma simplicidade aguda, o que também quer dizer clara, de clarim. Essa luz na escuridão me lembra a cantiga que cantamos na procissão do círio pascal na Igreja aqui do lado de casa. É de Frei Luiz Turra:

Ó luz do senhor
que vem sobre a terra,
inunda meu ser,
permanece em nós.[iii]

Entrar na Igreja com a vela acesa, em procissão, é talvez a imagem plástica dessa luz de esperança que Ogum significa num de seus pontos mais inspiradores. Alguém já compôs coisa tão bonita e comovente assim sobre Tiradentes? Dele só aqueles quadros bregas do XIX. Alguém faz feijoada pra comemorar Tiradentes? Prefiro São Jorge.

Filipe de Freitas Gonçalves é doutor em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

Notas


[i]Uma tradução do poema pode ser encontrada em: Sara la baigneuse / Sara, a banhista | Antena 2 – RTP. É ela que vou citar nos trechos que se seguem.

[ii]O ponto pode ser ouvido aqui: Clarim da Lua.

[iii]Pode ser ouvida aqui: Ó LUZ DO SENHOR.

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