A destruição como estratégia

Imagem: Jimmy Chan
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por ROMUALDO PESSOA CAMPOS FILHO*

Estrangular a economia, disseminar medo, angústia e ansiedade, fazem parte do projeto de (des)governo bolsonarista

É preciso entender como chegamos até aqui e porque estamos à beira de um precipício, numa das piores crises médicas, sanitárias e socioeconômicas da história de nosso país.

Segundo o presidente da República, “O povo não tem nem pé de galinha para comer mais. Agora, o que eu tenho falado, o caos vem aí. A fome vai tirar o pessoal de casa. Vamos ter problemas que nunca esperávamos ter problemas sociais gravíssimos”.[1] Vejam, isso foi dito pelo esdrúxulo presidente do Brasil, não é de nenhum sindicalista ou militante que está lutando contra as desigualdades sociais. Mas de quem governa e, em tese, possui todos os elementos e as condições de adotar medidas que minimizem os graves problemas sociais gerados por essa pandemia. Só que ele não se preocupa com isso, por uma razão óbvia: estrangular a economia, disseminar medo, angústia e ansiedade, faz parte de um projeto de governo.

Evidente que tem razão ao dizer que estamos em meio a um caos. E isso condiz com uma estratégia adotada por seu governo, não somente durante a pandemia, mas mesmo antes de vivermos esse inferno viral. Claro, a Covid19 se incorporou a uma estratégia que já estava em curso: tornar a sociedade brasileira um caos.

Bolsonaro foi eleito no rastro de uma destruição da democracia, conforme a conhecemos por nossas bandas, e, principalmente da política. Embora ele fosse o azarão da história, serviu-se perfeitamente de toda uma onda gerada por perversos mecanismos midiáticos, de canais de televisão, jornais e emissoras de rádio, que apostaram desde 2015 na desconstrução de projetos políticos de cunhos sociais e de visões econômicas baseadas no desenvolvimentismo, para, por meio do ataque à política e projetando a ascensão da alienação, derrubar um governo e apostar em políticas fortemente neoliberais, meritocráticas e antinacionais.

Mas o discurso levado a cabo, por meio do incentivo às manifestações, transmitidas ao vivo pelos canais de TV, por onde se disseminaram um comportamento de ódio e projetou o neofascismo, não atingiu o objetivo desejado pelos setores conservadores dos partidos derrotados na eleição de 2014. Pois eles também se tornaram alvos da caça às bruxas, e na identificação do que se convencionou chamar de “velha política”. Foi tudo por água abaixo, inclusive caráter, seriedade, honestidade, esperança… Prevaleceu o cinismo, o banditismo miliciano e a hipocrisia religiosa. Se o que se pretendia era demonizar a política, o demônio soube entender e assumiu o controle. Assim, o caminho estava aberto para o caos. As redes sociais potencializaram isso, através das fake news, e a pandemia só veio para acelerar essa situação, já prevista e consolidada nas eleições de 2018.

Nos dois últimos anos temos procurado analisar como Bolsonaro chegou à presidência, no vácuo dessas desastrosas intervenções dos setores de centro-direita neoliberal. Despontou como um “mito”, na condição do que na geopolítica conhecemos como um “outsider”, desancando a política, com discurso anticorrupção (como sempre esse discurso antecede as crises políticas brasileiras e os movimentos golpistas) e aglutinando ao seu lado ressentidos, derrotados moralmente, despossuídos economicamente, frustrados, alienados e ricos oportunistas.

Embora a absoluta maioria desses aqui adjetivados pudessem ser classificados no nível máximo de alienação, e não importa se possuem cursos superiores ou não. São analfabetos políticos. Além de uma burguesia estúpida e a parte execrável da classe média, alta. E, correndo por fora, de forma sutil e sibilina, porque nessa década esse movimento esteve ao lado de todos os governos, os segmentos evangélicos, neopentecostais principalmente, e os conservadores católicos da corrente carismática. Correram por fora num primeiro momento, porque depois incorporaram o discurso neofascista do presidente e passaram a se constituir (ao lado da força armada, miliciana ou oficial) em sua principal base de apoio. Logicamente por traz disso a ambição pelo poder e a ganância como prática contumaz de seus principais líderes religiosos a extorquir os fiéis.

Mas Jair Messias Bolsonaro não caiu de paraquedas. Ele se tornou parte de um projeto desses segmentos reacionários religiosos e se incorporou a um movimento que tomava corpo mundialmente havia uma década, que gerou outra aberração política: Donald Trump. Mas que também estava em curso em diversos outros países, como Hungria, Polônia, Itália, Reino Unido dentre outros, além dos EUA, de onde saiu toda essa inspiração perversiva.

Pudemos identificar, inspirados em alguns livros e documentários (indicados ao final desse texto), que esse projeto teve à frente um personagem que se tornou mais conhecido no ano passado, porque foi preso acusado de desvio de dinheiro numa arrecadação feita nos EUA para ajudar o governo Trump e construir um muro na fronteira com o México. Steve Bannon, é o personagem por trás da “estratégia do caos”. Seu escritório foi responsável por dar assessoria aos “políticos” que surgiram das trevas, atraindo para seus lados todos esses indivíduos que carregavam algum tipo de frustração e ódio às condições sociais em que viviam.

No documentário “Privacidade Hackeada”, disponível na Netflix, chama a atenção uma frase dita por Christopher Wylie, Cientista de Dados, ao se referir a Steve Bannon (vice-presidente da Cambridge Analytica, e criador do site de notícias Breitbart), que seria a doutrina utilizada por essas empresas: “Se você quer mudar fundamentalmente a sociedade, primeiro tem de destrui-la. E somente depois de destrui-la é que pode remodelar os pedaços segundo sua visão de uma nova sociedade”.

Portanto, a estratégia de Bolsonaro, orientado por esse crápula articulador da internacional direitista mundial, é manter radicalizado um segmento que será muito prejudicado economicamente, para além das perdas de vidas, que se tornarão esquecidas pelo foco que está sendo adotado e pelas condições reais que ficarão milhões de pessoas. As mortes serão naturalizadas. Isso representa o que conhecemos hoje como “necropolítica”. Alienadas e corrompidas em seus desejos e olhares, essas pessoas seguem o discurso fácil, irresponsável e adredemente planejado pelos arquitetos do caos.

Muito embora o número de pessoas que lhe segue vá diminuindo, a tendência é que a radicalidade aumente, à medida em que ficará cada vez mais nítido a incompetência e irresponsabilidade com que governa o país.

Os responsáveis por abrir as porteiras dessas perversões, quando levaram a cabo uma outra estratégia, fracassada, de “reerguer o país destruído por Dilma Roussef” tentam rever seus comportamentos e percebem a gravidade dos acontecimentos que estão em curso e que está levando nosso país a atingir 600 mil mortos nessa pandemia, além de uma enorme crise econômica e da destruição de mais de uma dezena de milhões de empregos. Nos últimos meses tem surgido manifestos de diversos setores,[2] muitos dos quais são corresponsáveis por esse deserto em que se enfiou a política, tentando encontrar um novo rumo que impeça que cheguemos ao fundo do poço.

Esses manifestos não representam propriamente um “mea-culpa”, mas ajuda a abrir caminho para recomposição de forças políticas que compreendam a gravidade da situação na qual eles nos meteram. É o que desejam aquelas pessoas que têm juízo, clamam pela vida, choram por seus mortos e anseiam por um país soberano, livre dos “mitos” que vagam por aí órfãos de seus manicômios.

Nesse momento, acuado, preso à compromissos dos “coronéis” da velha política, incensado por loucos fundamentalistas religiosos e pelo que de pior existe na economia capitalista, trânsfugas insensíveis com a realidade nacional e com as pesquisas indicando que seu prestígio se derrete como manteiga ao sol, Bolsonaro tenta desviar as atenções dos graves problemas que assolam o país e afetam criminosamente a enorme maioria da população brasileira.

Como tática, em sua estratégia de disseminação do caos e de sobrevivência sob os escombros do estado brasileiro, procura desesperadamente criar inimigos que nitidamente são moinhos de vento transformados em monstros, em seus desvarios alucinados. Orientado por Steve Bannon, e desorientado por sua característica sociopata, atira contra o Supremo Tribunal Federal, talvez um dos pilares da democracia que ele enxerga como último empecilho para sua farsesca tentativa de golpe, típico de um Napoleão pequeno, em seu Brumário inexequível.

Dias atrás o seu guru afirmou em uma entrevista, que com voto impresso ninguém conseguirá derrotar Bolsonaro, nem mesmo Lula. E que ganharia todas as outras eleições que vierem. [3] Portanto, o ataque às urnas eletrônicas e ao STF faz parte de uma estratégia de gerar fatos que desviem as atenções dos graves problemas em curso e de sua incompetência para resolvê-lo, alimentar sua militância tresloucada e fascistóide, e, na eminência (real) de ver frustrada sua reeleição, pavimentar um caminho para um golpe. Seria o tudo ou nada, de alguém que deve ter a dimensão exata de seus crimes e do que virá de processos judiciais tão logo seja apeado do poder.

É mister que as pessoas conscientes não parem de lutar, para recuperar nossa dignidade e saibamos compreender a importância de construir uma sociedade justa, menos desigual, e onde se dissemine valores como empatia, altruísmo e solidariedade. Recuperar o Brasil e o nosso jeito de ser brasileiro, sem fundamentalismos ou guerras culturais estúpidas que esvaziem nossa alegria de viver plenamente em meio à diversidade e miscigenação que nos constituiu enquanto nação.

Ou fazemos isso ou prevalecerá pelo tempo que requer a destruição de um país, a estratégia do caos. O apocalipse por trás da necropolítica.

Está em nossas mãos, não somente os nossos destinos, como a determinação para provar a Bolsonaro que o caos não prevalecerá e que toda maldade, perversão e vilania, serão combatidas pelos que sobreviverão à sua hecatombe planejada. E seremos milhões!

*Romualdo Pessoa Campos Filho é professor no Instituto de Estudos Socioambientais da Universidade Federal de Goiás (UFG).

Referências


The Weekly S01E09: A Toca do Coelho (The Rabbit Hole) –https://www.youtube.com/watch?v=b3J7r1H4SYo

Privacidade Hackeada – Entenda como a empresa de análise de dados Cambridge Analytica se tornou o símbolo do lado sombrio das redes sociais após a eleição presidencial de 2016 nos EUA –https://www.netflix.com/br/title/80117542

Get Me Roger Stone – Observe a ascensão, queda e renascimento do operador político Roger Stone, um player influente da Equipe de Trump há décadas – https://www.netflix.com/br/title/80114666

Eles estão entre nós – O documentário explora a aliança política entre religiosos, oligarcas, Cambridge Analytica e suas empresas de fachada que mudaram o equilíbrio da política nos EUA. –https://globoplay.globo.com/eles-estao-entre-nos/t/wwppjgqzSJ/

DA EMPOLI, Giuliano. Os engenheiros do caos. São Paulo: Vestígio, 2020

DOWBOR, Ladislau. O Capitalismo se desloca. São Paulo: Edições Sesc São Paulo, 2020.

LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como as democracias morrem. Rio de Janeiro: Zahar, 2018

LIMA, Delcio Monteiro de. Os demônios descem do Norte. Rio de Janeiro: Francisco Alves Editora, 1987.

Notas


[1] https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2021/03/19/o-caos-vem-ai-a-fome-vai-tirar-o-pessoal-de-casa-diz-bolsonaro.htm

[2] https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2021/03/banqueiros-e-economistas-pedem-medidas-efetivas-de-combate-a-pandemia-em-carta-aberta.shtml

[3] https://www.diariodocentrodomundo.com.br/video-bannon-mente-e-diz-que-bolsonaro-ganha-de-lula-a-menos-que-maquinas-o-roubem/

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Michael Roberts Leda Maria Paulani Claudio Katz Thomas Piketty Leonardo Boff Jorge Branco Tarso Genro Milton Pinheiro Ronald León Núñez José Geraldo Couto Paulo Martins João Carlos Salles Antônio Sales Rios Neto André Márcio Neves Soares Gerson Almeida Francisco Fernandes Ladeira Armando Boito Liszt Vieira Carla Teixeira Henri Acselrad Marcos Silva Lorenzo Vitral Lincoln Secco Ladislau Dowbor Mário Maestri Anselm Jappe Eugênio Bucci José Dirceu Leonardo Avritzer Marilia Pacheco Fiorillo Igor Felippe Santos Francisco Pereira de Farias Caio Bugiato Benicio Viero Schmidt Kátia Gerab Baggio Luiz Marques Bento Prado Jr. Atilio A. Boron Luiz Renato Martins Dennis Oliveira Luís Fernando Vitagliano Ricardo Musse Celso Favaretto Slavoj Žižek Henry Burnett Carlos Tautz Michael Löwy Luiz Werneck Vianna Tadeu Valadares Paulo Sérgio Pinheiro João Carlos Loebens Marcos Aurélio da Silva André Singer Luiz Eduardo Soares Marcelo Módolo Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Flávio Aguiar João Lanari Bo Afrânio Catani Andrew Korybko Renato Dagnino Paulo Fernandes Silveira Walnice Nogueira Galvão Jean Pierre Chauvin Sergio Amadeu da Silveira Alexandre de Lima Castro Tranjan Rodrigo de Faria Manchetômetro Ronaldo Tadeu de Souza Heraldo Campos Érico Andrade Ricardo Fabbrini João Adolfo Hansen Ricardo Antunes João Feres Júnior Maria Rita Kehl Jean Marc Von Der Weid Luiz Roberto Alves Julian Rodrigues Annateresa Fabris Marjorie C. Marona Eleutério F. S. Prado Daniel Afonso da Silva Dênis de Moraes Alexandre Aragão de Albuquerque Airton Paschoa Fernando Nogueira da Costa Vladimir Safatle Samuel Kilsztajn Remy José Fontana Manuel Domingos Neto Alysson Leandro Mascaro Valerio Arcary Paulo Capel Narvai Berenice Bento Luciano Nascimento José Micaelson Lacerda Morais Marilena Chauí Bruno Fabricio Alcebino da Silva Antonio Martins Ari Marcelo Solon Bruno Machado Luis Felipe Miguel Gabriel Cohn Jorge Luiz Souto Maior Michel Goulart da Silva Priscila Figueiredo Ronald Rocha Eliziário Andrade Andrés del Río José Luís Fiori Yuri Martins-Fontes Matheus Silveira de Souza Chico Alencar Leonardo Sacramento Elias Jabbour Boaventura de Sousa Santos Marcelo Guimarães Lima Rafael R. Ioris Ricardo Abramovay Flávio R. Kothe Eleonora Albano Antonino Infranca Rubens Pinto Lyra Eduardo Borges Daniel Costa Celso Frederico Francisco de Oliveira Barros Júnior Vanderlei Tenório Sandra Bitencourt Luiz Bernardo Pericás Daniel Brazil Osvaldo Coggiola Fernão Pessoa Ramos Vinício Carrilho Martinez Marcus Ianoni Alexandre de Freitas Barbosa Everaldo de Oliveira Andrade Plínio de Arruda Sampaio Jr. Gilberto Lopes Mariarosaria Fabris José Raimundo Trindade Eugênio Trivinho Valerio Arcary Otaviano Helene Juarez Guimarães Gilberto Maringoni Lucas Fiaschetti Estevez Chico Whitaker Salem Nasser Denilson Cordeiro José Costa Júnior João Paulo Ayub Fonseca Fábio Konder Comparato Paulo Nogueira Batista Jr José Machado Moita Neto João Sette Whitaker Ferreira Tales Ab'Sáber Luiz Carlos Bresser-Pereira Bernardo Ricupero

NOVAS PUBLICAÇÕES