A dialética revolucionária

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por NILDO VIANA*

Trechos, selecionado pelo autor, do primeiro capítulo do livro recém-lançado

A dialética revolucionária passou por diversos momentos. O primeiro momento foi expresso na contribuição inaugural de Marx e, na sucessão, de Antonio Labriola, Karl Korsch e outros, tendo um ou outro autor que trouxe um resgate ou acréscimo para a dialética marxista, num processo no qual predomina a deformação que a transforma em positivismo ou a adequa a qualquer outra ideologia hegemônica.

Os dois grandes momentos foram a época de emergência da dialética com Karl Marx e a retomada por Karl Korsch e György Lukács, no período das tentativas de revoluções proletárias. A estabilidade capitalista e as contrarrevoluções provocam estagnação ou até retrocesso na dialética marxista. Os momentos da ascensão das lutas operárias e de revoluções proletárias inacabadas contribuem com o seu resgate e avanço.

É fundamental entender que Marx realizou uma revolução teórica e metódica e, nesse contexto, abriu amplas perspectivas que não foram desenvolvidas devido ao processo da luta de classes e supremacia concreta da burguesia como classe dominante e da luta cultural e hegemonia que ela estabelece. Os representantes ideológicos da burguesia sempre buscaram atacar o marxismo, e, nesse processo, a dialética, e a forma mais comum é através de sua simplificação e refutação da versão simplificada, bem como escolhendo, geralmente, os representantes mais frágeis para assim poder ser mais convincente.

O processo de simplificação, no entanto, não tem apenas o efeito de facilitar a pseudocrítica e falsa refutação, mas também gera uma popularização de uma concepção simplificada e deformada que é reproduzida até pelos simpatizantes e supostos adeptos do “marxismo”.

Porém, a dialética marxista está, em sua primeira versão, nos escritos de Marx. Embora mesmo nesse caso possa haver confusão, gerada por traduções problemáticas, questões formais […], inacabamento da obra, etc. De qualquer forma, uma leitura rigorosa e ampla (não selecionando um texto canônico e jogando outros no limbo), permite reconstituir tal concepção. Karl Korsch teve o mérito de enfatizar o caráter revolucionário da dialética e György Lukács, em menor grau, mas com maior aprofundamento em alguns aspectos, possibilitaram resgatar o método dialético.

A partir dessas leituras fica visível que a dialética é parte da luta cultural pela revolução proletária. A dialética é uma parte do marxismo como pensamento revolucionário. Ela é revolucionária não apenas por seu vínculo com a revolução proletária e com o marxismo enquanto pensamento revolucionário, mas por ela mesma ser revolucionária, sendo uma “revolução metódica”.

O trajeto que apresentamos aqui mostrou o conceito de dialética, algo pouco usual e que é comum no confusionismo ideológico reinante, e o processo de constituição e desenvolvimento da dialética marxista. Esse processo permite ter uma noção do que é a dialética marxista, sua constituição e evolução, algumas de suas principais características. No entanto, ainda há muito que não foi esclarecido e a dialética marxista ainda possui muitas lacunas e precisa dar resposta para várias críticas existentes e questões contemporâneas.

O primeiro ponto a destacar, no atual estágio de compreensão geral da dialética, é a necessidade de esclarecimento e aprofundamento sobre várias questões. Além de esclarecimento sobre a questão da consciência (que é a questão cultural mais desenvolvida pelo marxismo até hoje, mas mesmo assim, ainda incompleta e pouco compreendida por muitos) e da realidade. A dialética, como expusemos anteriormente, é uma manifestação da consciência humana inserida dentro de uma forma de consciência que é o marxismo.

Mas o que a dialética tem de específico? E o marxismo? Isso traz ainda a necessidade de aprofundamento sobre o que é um método. O que significa dizer que a dialética é um “materialismo”, um elemento polêmico e que rendeu várias interpretações no pseudomarxismo. A questão da teoria da realidade é ainda mais complexa e menos trabalhada. A dialética deve ser usada apenas para analisar a sociedade ou também a natureza? O que é a sociedade? O que é natureza? Ou, em sentido mais amplo, o que é realidade? O desenvolvimento das ciências naturais afeta a dialética? A dialética ainda é o método mais adequado? O que a dialética pode dizer sobre o desenvolvimento das ciências naturais?

Essas questões dependem de outras questões, que a filosofia abordou de forma mais abstrata (na maioria das vezes sob forma abstratificada) sobre o que é realidade e como acessá-la. Nesse campo, teremos que ir além do debate sobre idealismo e materialismo e adentrar nas categorias fundamentais da dialética.

Entretanto, apesar de Marx ter oferecido uma síntese e outros terem contribuído depois, é fundamental esclarecer e aprofundar uma reflexão sobre como se efetua uma análise dialética, ou seja, usando o método dialético. As indicações sintéticas da passagem do abstrato ao concreto e uso do processo de abstração são insuficientes e precisam ser esclarecidas e desenvolvidas. Da mesma forma, as categorias da dialética não são suficientemente compreendidas e muitas estão ainda subdesenvolvidas.

O que é o abstrato e o concreto? Como realizar a abstração e a concreção? Quais fenômenos podem ser analisados? Existe diferença em relação a cada fenômeno com sua especificidade? Qual o grau de confiabilidade no uso do método dialético? E qual é a confiabilidade do seu uso adequado? Como identificar se houve ou não o uso do método dialético? Como usar as categorias da dialética?

A última questão é uma das mais importantes para o desenvolvimento do método dialético. Aqui não se trata de dizer o que é e como usar a dialética, ou de resgatar o pensamento de Marx ou de outros marxistas (ou de criticar o pseudomarxismo) e sim de responder questões não respondidas e em muitos casos não formuladas. Marx, por exemplo, não distinguiu entre conceitos e categorias. Essa distinção é fundamental e o esclarecimento destes conceitos e suas diferenças.

Desde o processo de humanização, esboços de categorias e conceitos emergiram, com contradições, ambiguidades etc., até chegar ao marxismo, que realiza uma reflexão autoconsciente sobre como se procede o processo da razão e como ela é utilizada para analisar a realidade. Porém, tanto os filósofos que trabalharam explicitamente com a questão das categorias (Aristóteles, Kant, Hegel, principalmente), quanto os pseudomarxistas da antiga União Soviética e outros países, pouco aprofundaram essa problemática.

O que são as categorias? Quais são as categorias da dialética? Como surgem e se desenvolvem as categorias? As categorias, são, como colocava Kant (1984), formadas aprioristicamente na mente humana? Elas são coisas objetivas e externas que são refletidas pelo cérebro humano como dizem os engelsianos e leninistas? Qual é a utilidade e importância das categorias para a dialética? O que Marx pode contribuir com essa discussão e os marxistas posteriores? O que é preciso para desenvolver essa questão?

[…]

E muitas outras questões estão envolvidas com essas e serão abordadas adiante. Uma delas é sobre a superioridade da dialética diante dos outros métodos, a relação da dialética com o proletariado quando este é, para muitos, apenas um “mito”, entre diversas outras. Sem dúvida, não será possível abordar todas as polêmicas, mas muitas delas receberão pelo menos um infotexto e outras serão discutidas mais profundamente.

A questão da relação do marxismo com a ciência e a filosofia é uma questão que precisa ser discutida, inclusive para demonstrar que o marxismo é uma crítica e superação da filosofia e das ciências, inclusive das ciências naturais, que estão num estágio de desenvolvimento primitivo. Essa última afirmação pode espantar os crentes da ciência, cujo comportamento diante dela é semirreligioso.

A ciência não é sagrada e mesmo que alguns, seja para sustentarem seu ateísmo dogmático ou outras crenças e necessidades e interesses, ou suas certezas diante do mundo, precisem adorá-la, ela é um saber histórico e transitório, com vínculos indissolúveis com a sociedade capitalista e por isso deve ser criticada intelectualmente e superada praticamente […].

A ciência, a vaca sagrada do pensamento burguês, é uma réplica da teologia da sociedade feudal e, como esta última, “funciona” e por isso é convincente, mas, embora tenha elementos importantes e contribuições para o desenvolvimento da consciência humana, possui limites instransponíveis que são os da sociedade burguesa e, por conseguinte, para essa consciência avançar, é preciso realizar a crítica e o avanço para além dos limites intransponíveis da episteme burguesa.

[…]

O que interessa aqui é que a dialética é revolucionária, o que justifica o título da presente obra e revela sua essência. E por isso é difícil pensar a dialética, pois os seres humanos geralmente pensam a partir de sua época e sociedade e de sua situação e localização no seu interior, bem como, o que é derivado, a partir dos seus interesses, valores, sentimentos, concepções anteriores, que são produzidos socialmente. O modo de pensar de nossa sociedade é burguês, ou seja, é fundado na episteme burguesa. Os indivíduos que são cientistas bem formados, que dominam o modus operandi da ciência moderna, estão envolvidos por um conjunto de ideias, procedimentos, etc., que certamente considerarão o presente escrito como “não-científico”, assim como os pseudomarxistas.

Aliás, se esse escrito fosse de um pseudomarxista, ele faria de tudo para provar que tal obra é “científica”. E aqui temos uma diferença fundamental entre um marxista e um pseudomarxista. Um marxista autêntico não visa popularidade, reconhecimento da esfera científica, aceitabilidade social e nem adota idolatrias, nem mesmo da ciência, essa vaca sagrada do capitalismo. E é exatamente por isso que ele traz o novo no plano do pensamento, assim como expressa a luta por uma nova sociedade, radicalmente diferente. Essas duas coisas não se separam (no marxismo autêntico) e por isso a dialética é tão pouco compreensível para quem está vinculado ao saber hegemônico quanto a ideia de uma nova sociedade.

[…]

Por fim, o que o exemplo acima da vida cotidiana revela é que é necessário muita coragem e ousadia para fazer a consciência humana avançar, para dizer a verdade, ou, pelo menos, se aproximar dela. E isso é algo que atinge ao indivíduo, pois ser corajoso e não dizer mentiras (desde as mais simples e cotidianas até as mais complexas e amplas), é um risco e uma luta e muitos já morreram por “ensaiar” isso. O problema é que atinge a sociedade como um todo, pois o mundo de mentiras e ilusões pode garantir a reprodução da sua forma atual, mas, ao mesmo tempo, tende a levá-la à sua autodestruição.

Por isso, a coragem e a ousadia hoje são requeridas, por mais dolorido, desgastante, decepcionante, que seja, na imediatez das relações sociais existentes. Somente assim se poderá ir além das vendas que nos impedem de ver e um real saber emergir e isso contribuir com a libertação humana. A dialética revolucionária é proletária e universal e esse é o seu segredo, que os pseudomarxistas não conseguiram compreender (e por isso alguns penderam para o partidarismo e outros para o cientificismo), o que remete à discussão sobre natureza, humanidade, capitalismo, categorias da dialética, e muito mais.

O presente livro é um desafio para a coragem de ler, de refletir e de agir, pois seu objetivo não é contemplativo e sim transformativo. O presente capítulo/volume ofereceu apenas uma breve iniciação. Os demais capítulos/volumes vão desenvolver, aprofundar, retomar e ampliar, o conjunto de elementos aqui apenas esboçados e outros não trabalhados. Este primeiro capítulo/volume é um convite para uma aventura intelectual, com suas exigências, sendo às vezes árida, às vezes abstrata, mas necessária.

O caminho mais fácil pode ser melhor em alguns casos específicos, mas quando tratamos da libertação humana, do destino da humanidade, da compreensão da complexidade da realidade, ele não é o adequado. Assim, para os leitores persistentes que chegarão até o fim da presente jornada, apenas lançamos o último alerta: o fim é apenas outro começo.

*Nildo Viana é professor do Departamento de Sociologia da Universidade Federal de Goiás (UFG). Autor, entre outros livros, de Hegemonia burguesa e renovações hegemônicas (CRV).

Referência


Nildo Viana. A dialética revolucionária. Goiânia, Edições Redelp, 2024. [https://amzn.to/4giyWXX]


A Terra é Redonda existe graças aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES