A disputa social da cidade

Imagem: Paulinho_Fluxuz
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Por JOSÉ RAIMUNDO TRINDADE*

Na agenda de disputa urbana se coloca necessariamente um projeto de ruptura radical com a atual lógica excludente neoliberal

Nos próximos meses teremos uma disputa vital para esquerda socialista e democrática brasileira. A eleição municipal deste ano se reveste de um conjunto de questões novas e algumas nem tanto, necessárias a reflexão social e, principalmente, ao enfrentamento da disputa pelo destino próximo da sociedade brasileira. Assim, não teremos em novembro deste ano uma disputa meramente local, ou atenta somente a uma agenda com aspectos pontuais, ao inverso, a disputa será de conteúdo amplo e colocará em questão os próximos movimentos tanto da esquerda democrática quanto das forças conservadoras e fascistas.

O texto que segue busca discutir o urbano e a cidade enquanto espaços de disputa social e centrais para acumulação capitalista, a fundamentação teórica marxista se reveste de importância tanto para termos uma base de análise teórica a ser desenvolvida e criticada, mas principalmente pela necessidade da retomada de uma construção crítica da realidade brasileira, no qual o urbano e os movimentos sociais do urbano são pontos fundamentais na disputa em que nos encontramos, que é de longo prazo, porém continua e ampla, em cada movimento conjuntural, disputa de ideias, ruas e eleitoral.

O capitalismo enquanto sistema dinâmico de acumulação da riqueza produzida socialmente e apropriada segundo mecanismos privados de mercado, desde sempre requereu uma dimensão concentradora da população e das condições de reprodução social humanas. Nas últimas décadas do século passado e nestes anos iniciais do século XXI, há expressivo fortalecimento das concentrações urbanas enquanto espaço de comando e atuação dessas relações mercantis, porém submetidos a fortes movimentos de contraposição econômicas e sociais.

No caso brasileiro quase 39 milhões de pessoas migraram do mundo rural e se transformaram em trabalhadores urbanos submetidos a condições precárias entre 1950 e 1970. Na década de 1970 a população urbana já representava 55,9% do contingente populacional brasileiro. Em 2010, são aproximadamente 160 milhões de pessoas vivendo nas cidades, ou seja, 84,4% da população total do país. De 1980 até 2010, as cidades expandiram seu contingente populacional em quase 71 milhões de habitantes (IBGE/SIDRA, 2020). O processo de urbanização no Brasil se deu de forma mais acelerada se comparado com os países capitalistas mais avançados, “na segunda metade do século XX, a população urbana passou de 19 milhões para 138 milhões, multiplicando-se 7,3 vezes, com uma taxa média anual de crescimento de 4,1%, ou seja, a cada ano, em média, mais de 2,3 milhões de habitantes foram acrescidos à população urbana brasileira” (BRITO, 2006, p. 223).

O urbano a partir de autores marxistas

Os referenciais teóricos de análise do espaço urbano ao longo do tempo vão sendo redefinidos, adaptados e recriados frente a uma realidade mutante, em que “tudo que era sólido e estável se desmancha no ar” (Marx e Engels, 2010, p. 43). Vale reforçar que a apreensão da análise e teorias marxistas do espaço urbano capitalista nos permite compreender a importância dos movimentos sociais urbanos, não somente no Brasil, bem como a dinâmica de crises e precarização social do atual ciclo capitalista.

Os movimentos sociais urbanos não são fixos no decorrer do tempo, mas se adaptam conforme as dinâmicas e realidades contemporâneas, sendo que as teorias de análise do urbano podem colaborar com essas forças sociais no processo de democratização e do direito à cidade como riqueza social em contraposição a sua mercantilização, mesmo que, como ressalta Harvey (1980, p. 3) os “processos sociais [sendo] espaciais”, nos levam  a observar que “a natureza da justiça social e a natureza do urbanismo são (…) substancialmente diferentes”.

Desse modo, quatro aspectos centrais se colocam no debate: i) a urbanidade e o conflito social pelo controle da cidade se recrudescem nos últimos anos; ii) a análise do espaço citadino enquanto “locus” da acumulação capitalista se reforçou a partir da polarização entre o local e o global; iii) a mercantilização do “viver” se acentuou e estabeleceu a crescente lógica de periferização e precarização da reprodução das classes trabalhadoras; iv) a crise da dinâmica de reprodução capitalista se manifesta muito especificamente nos setores vinculados a indústria imobiliária, como se atestou no “crash” de 2008, referente a crise “subprieme” e se radicalizou muito mais frente a crise econômica-ambiental do Covid-19.

O aprofundamento da crise capitalista condicionou as deficiências fiscais do Estado, algo que se generaliza nos principais centros capitalistas e que produz em meados dos anos 1970 a falência de importantes cidades globais, entre essas Nova York[i]. Com todos esses acontecimentos, se aprofundaria nas décadas seguintes, uma crescente mercantilização das cidades, no limite da espoliação urbana, especialmente nas sociedades do capitalismo periférico. Esse caldo de efervescência econômica e social estimulou o desenvolvimento de um conjunto de estudos críticos em relação à cidade, baseados na economia política marxista, produzindo um novo e expressivo conhecimento com relação à questão urbana. Dentre os vários autores neomarxistas que se debruçaram sobre a análise do espaço urbano, vale destacar, entre outros, Henri Lefebvre, Manoel Castells , Jean Lojkine e David Harvey, acrescentamos a esses autores internacionais as centrais contribuições do marxista brasileiro Paul Singer.

Destaca-se que os autores citados discutem um ponto ao qual Marx não desenvolveu pontualmente nas suas obras: a relação entre o espaço construído e ocupado pelo capital e as condições de reprodução social da cidade enquanto aglomerado urbano moderno[ii]. De acordo com Harvey (1988, p. 163), os escritos de Marx em relação à questão do espaço são fragmentários e desenvolvidos de forma não conclusivas. Na sua “teoria geral”[iii] ele faz referência a necessidade de expansão geográfica do capital, mas não define os elementos teóricos totais que integrariam o espaço geográfico ao tempo econômico capitalista. Harvey (2005), porém, observa que uma análise mais profunda das obras de Marx mostram que ele sabia que havia uma relação direta entre a teoria da acumulação e a geografia do espaço, originando tipos específicos de estruturas geográficas.

Ao longo do tempo, as mudanças em curso nas grandes cidades refletem as transformações que ocorrem tanto no processo produtivo capitalista, quanto nos arranjos reprodutivos espaciais que se processam, tais como investimentos em infraestrutura físicas e sociais, urbanização, padrões de deslocamento ou mobilidade urbana, etc. Portanto, pode-se afirmar que a paisagem urbana é, até certa medida, uma expressão, até mesmo funcional, da sociedade em que está inserida. Ou seja, o espaço urbano é parcialmente organizado e estruturado com vistas a facilitar a dinâmica capitalista de produção.

Nesse sentido, a paisagem urbana reflete, mesmo que parcialmente, a divisão social do trabalho existente no mundo capitalista. Portanto, a cidade é uma expressão das relações sociais existentes na sociedade capitalista, estruturando-se em grande parte com vistas a dinamização das relações capitalistas de produção e, ao mesmo tempo, refletindo contradições sociais, tais como a clara segmentação do espaço urbano entre áreas ocupadas por faixas populacionais de diferentes níveis de rendas, isso em conformidade ao acesso de melhores ou piores padrões de infraestrutura urbana.

Entretanto, a dinâmica urbana é bem mais complexa, além de que a organização do espaço urbano de acordo com a lógica produtiva e especulativa capitalista cria uma variedade de conflitos socioespaciais, sejam decorrentes da segregação e desigualdades inerentes ao capitalismo, seja pela justaposição no espaço urbano das diversas classes, etnias, credos e culturas, que estabelecem laços e interações que vão além do aspecto econômico ou da hegemonia social da burguesia, porém sempre interagindo com os fenômenos de especulação e exploração inerentes a esta ordem sistêmica.

Deste modo, o espaço transformado social e economicamente atua não somente modificando, mas condicionando e regulando as relações de produção e representação sociais. Portanto, o espaço constitui uma arena orgânica não somente do processo de produção das coisas e de seu consumo, mas abrange também a reprodução das relações sociais e das próprias relações de domínio de classe, inclusive sob os aspectos ideológicos e culturais, sendo parte tanto da reprodução quanto representação sociais estabelecidas no capitalismo.

O sistema capitalista deve garantir sempre além da reprodução dos meios de produção, a reprodução das relações sociais de produção sob condições de exploração absoluta e relativa da força de trabalho, realizada por meio do controle da totalidade do espaço, na medida em que compreendem a reprodução do cotidiano no próprio espaço  de vida e subjetividade do trabalhador. Assim, nas mudanças do capitalismo observa-se também conflitos permanentes entre a questão espacial e social, numa dialética horizontal e vertical, sem se aceitar a priorização ou determinação de uma sobre a outra, garantido o controle do capital sobre o espaço de convivência social, porém sempre sob conflito e disputa com os movimentos sociais e entidades de organização das classes trabalhadoras.

Marx parte da análise da relação homem versus natureza, tendo a natureza como um meio de subsistência do homem, com as transformações que o sistema capitalista de produção impõe uma nova variável é inserida nesse sistema definida como forças produtivas que acabaram por se desenvolver além do necessário imediato. Dessa forma, a natureza que antes tinha ou desempenhava um papel autônomo, agora se subordina ao homem e às limitações ou padronizações a partir da alienação ao capital (segunda natureza).

As relações capitalistas supõema “segunda natureza”, plenamente acomodada (subordinada) ao fetichismo mercantil, adequada aos condicionantes da exploração da força de trabalho. Nesse sentido, o homem passa a atuar sobre a natureza não com o objetivo de atender suas necessidades imediatas, e sim para atender os princípios financeiros do capitalismo. Vale destacar que essas relações não são uniformes no tempo e no espaço, assim o grau de absorção da natureza está vinculado ao padrão de reprodução do capital e a localização espacial em que se processa a acumulação, por exemplo sob o neoliberalismo a exploração da natureza amazônica se torna espoliativa.

O autor conclui que as contradições sociais não provêm apenas das relações entre classes, mas de desencontros entre temporalidades e espacialidades, solidificando cada prática social diferente como uma possibilidade de negação do real, o que torna ao espaço urbano uma construção complexa, envolvendo tanto as contradições próprias das relações de reprodução capitalistas, mas além estabelecendo outras dimensionalidades de conflitos (culturais, étnicos, de gênero etc.) que se justapõem aos conflitos de classe e interação multidimensional.

O Estado, enquanto ente de controle social tem como uma das suas principais funções regular socialmente a reprodução da principal mercadoria capitalista: a força de trabalho. Nesta percepção as condições coletivas ou públicas para manutenção do trabalhador estão a cargo do poder estatal. Mas, ao conceber o urbano predominantemente como o lugar da reprodução social e não da produção, Castells (1983) descreve a cidade como ambiente central de reprodução da força de trabalho, objeto de serviços públicos (habitação, educação, transporte, saneamento etc.) e das ações estatais de integração e repressão, sem apresentar nenhuma interpretação significativa no sentido de compreendê-la como processo produtivo, ou seja, como forma da própria dinâmica de acumulação do capital (ARANTES, 2009).

A ênfase à esfera do consumo leva o autor a concentra-se na política urbana do consumo coletivo, e também, na mobilização dos movimentos sociais urbanos com vistas à qualificação dos chamados “bens de consumo coletivos”, o que pode ser compreendido como um importante fator de estímulo a politização da intervenção estatal, tornando as políticas públicas alvo central das disputas sociais.  Assim, chegou a teorizar e atuar nos movimentos sociais urbanos que proliferavam nas cidades ainda na década de 1970, e também chegou a dedicar-se ao tema da politização do espaço de forma mais ampla, abrangendo diversos movimentos de cidadania que se articulavam a partir da questão da reprodução, urbana e ambiental.

Lojkine (1981, 1999) propõe um Estado ampliado, ao mesmo tempo agente de coerção e de realização de consenso na ocupação do espaço urbano, considerando a política urbana como elemento essencial e constitutiva da reprodução do capital na sua fase monopolista. O Estado aparece como expressão, simultânea, da tensão política, no sentido de prover o atendimento das necessidades de reprodução ampliada do capital, mas, sem com isso, deixar de refletir na materialidade espacial da cidade as contradições e as lutas de classes geradas pela segregação social e exploração das classes trabalhadoras.

Ao considerar a urbanização como elemento-chave das relações de produção, sustenta a tese que as formas contraditórias do desenvolvimento urbano, do modo como são refletidas e acentuadas pela política estatal, são justamente a revelação do caráter ultrapassado do modo de produção capitalista. Conforme o próprio Lojkine (1981, p. 122): “as formas contraditórias do desenvolvimento urbano (…), são justamente a revelação do caráter ultrapassado da maneira capitalista de medir a rentabilidade social através apenas da acumulação do trabalho morto”. Este aspecto da evisceração do capital fixo, bem como das contradições que o mesmo encerra, inclusive na sua vinculação com o sistema de crédito.

A principal categoria resgatada de Marx em sua análise do urbano foi o de condições gerais da produção. Lojkine (1981) para pensar o processo de reprodução ampliada do capital, tendo em vista a análise das dinâmicas associadas aos meios de comunicação e transporte. De forma simplificada, pode-se dizer que esta categoria marxista se refere às infraestruturas e serviços que garantem a atividade reprodutiva do capital no ambiente urbano. Lojkine não somente resgatou, mas também ampliou esta categoria para se referir aos valores de uso complexo exigidos pelo capital e pelo trabalho em suas versões contemporâneas fordistas, se inscrevendo no debate das contradições da urbanização capitalista no contexto do Capitalismo Monopolista de Estado.

A hipótese básica trabalhada por Lojkine (1981, p.121) era de que as diferentes “formas de urbanização são antes de tudo formas da divisão social (e territorial do trabalho)”. Essa hipótese faz uma clara inflexão crítica em relação a percepção de Castells, especialmente a noção do espaço urbano como mero espaço de consumo ou reprodução da força de trabalho. Neste sentido, sua análise vai no sentido de reintegrar, a exemplo de Lefebvre, a dinâmica de acumulação com os mecanismos de reprodução ou existência social em termos mais amplos, constituindo tanto condicionantes de reprodução, quanto de representação capitalista.

A cidade constitui forma de agregação humana no espaço da urbanidade que, em última instância, é a condição social mais compatível com as exigências do capital avançado. A urbanidade é apresentada não mais como objeto do planejamento ou como ambiente passivo da coleta de dados empíricos, mas como condição social indispensável à reprodução ampliada do Capitalismo. Desse modo, a urbanidade passa a ser pensada a partir das lutas sociais e do papel do Estado na produção e distribuição desses equipamentos e serviços.

A cidade se constituiu como amalgama de diferentes forças em conflitos e interação: a dinâmica de acumulação do capital produz e reproduz suas próprias formas espaciais, desde a segregação habitacional, até a estruturação do perfil urbano de acordo com as condições gerais de produção; por outro, os mais diversos movimentos de lutas sociais estabelecem limites e padrões contra o capital; o Estado e sua ação planejada interagem com uma e outra força, em alguns casos cedendo à capacidade mobilizadora dos movimentos sociais, em grande medida servindo aos diversos interesses da acumulação de capital.

Movimentos sociais e os desafios da questão urbana

Diversos agentes atuam no espaço urbano como: usuário, usuários proprietários, corretores de imóveis, proprietário, instituições financeiras, instituições governamentais, movimentos sociais diversos. Esses atores acionam e operam os valores de uso (satisfazer a necessidade está relacionada ao grau de utilidade da mercadoria) e troca (objetivo é a obtenção de lucro) da mercadoria solo urbano. Vale observar que a ação do Estado, na construção de infraestruturas físicas e sociais, como moradias, alocação de serviços, facilidades e vias de acesso, possibilita tanto a reprodução lógica e histórica do capital, como também as condições de reprodução social geral, o que inclui, a exemplo do que tratava Castells, a reprodução da força de trabalho.  Por outro, a dinâmica de reprodução do capital requer, também, a ação de um conjunto de instituições privadas, sejam empresas de incorporação imobiliária, sejam instituições financeiras ou indústria da construção que integram e tratam o uso do solo urbano como partes da valorização do seu próprio capital.

O crescimento e o desenvolvimento das cidades acarretaram uma reorganização na localização e distribuição das atividades no sistema urbano. Essas mudanças seriam responsáveis pela elaboração de uma variedade de formas de redistribuição de renda. Dentre as mudanças nas formas espaciais das cidades, a transferência na localização da atividade econômica significou mais oportunidades de empregos nas cidades. A mudança na localização da atividade residencial representou uma mudança na localização de oportunidades de moradia. Tanto uma quanto a outra mudaram as formas de redistribuição de renda na cidade. Ainda deve-se relacionar a questão dos gastos com transporte que, por sua vez, afetaram em grande escala, os custos de acesso às oportunidades de emprego a partir da localização da moradia (Harvey, 1980, 2005).

Em sua principal obra sobre a dialética urbana Harvey (1980), destaca também a questão do processo de suburbanização que é a criação de grandes centros e de subúrbios, onde ocorre uma redistribuição de renda dentro do espaço citadino, distribuição esta regressiva, pois em geral o rico e o relativamente bem remediado podem conseguir grandes benefícios, na medida em que podem comprar as fatias mais nobres do espaço urbano, enquanto o pobre tem somente oportunidades restritas. Harvey analisa, ainda, a interação entre o espaço urbano e o processo de produção. Inicialmente, relaciona o trabalho e o modo de viver para mostrar que o capital domina o trabalho não só no local de trabalho, mas também no espaço de moradia, por meio da determinação da qualidade e dos padrões de vida da força de trabalho, isto é, o conflito de classes (capital e trabalho) ultrapassa os locais de trabalho, sem que os conflitos nos locais de moradia se justapõem as lutas nos locais de trabalho, elas ocorrem simultaneamente.

Em a “Economia Política da Urbanização” Paul Singer (1985), estabelecerá uma aproximação da análise marxista com a dinâmica do capitalismo periférico, fundado na análise do Exército Industrial de Reserva e das contradições da formação econômica brasileira. Singer demonstra que o padrão periférico das metrópoles brasileiras tem no processo migratório um de seus elementos estimuladores, sendo que o crescimento da oferta de empregos urbanos não se dá no mesmo ritmo que a chegada de migrantes. O excedente de oferta de mão-de-obra irá alimentar o exército de reserva e as faixas sociais excluídas do mercado formal de trabalho, aumentando, desta forma, o contingente de pobres e miseráveis que compõem parcela considerável das populações urbanas. Estas populações só têm como saída habitacional os bairros de extensa miséria conhecidos por favelas, cortiços, palafitas e baixadas.

O desenvolvimento urbano, assentado nas características da horizontalização periférica e verticalização do núcleo central, não é algo presente somente nas nossas cidades, contudo, devido à concentração de renda e à especulação que envolve o uso do solo urbano, criou-se na realidade urbana brasileira um quadro de exacerbação da segregação espacial.

O padrão de expansão das cidades brasileiras está intimamente vinculado à uma específica forma de concentração dos meios de consumo coletivos, regida em primeira instância pela distribuição desigual da renda e em última instância pelos interesses especulativos de uso do solo urbano. Estes dois fatores estão intimamente interligados na interpretação do autor, sendo que a diferenciação espacial estre as zonas mais bem equipadas de infraestrutura, correspondentes às áreas de negócios e residenciais das elites rentistas, e as zonas menos equipadas, correspondentes às áreas de habitação popular, reflete o grau de interação e influência de tais elementos    no quadro socioeconômico e espacial.

A disputa pelo espaço urbano se dá com a mediação da promoção imobiliária, de forma que o funcionamento do mercado imobiliário faz com que a ocupação das áreas mais bem servidas de infraestrutura seja um privilégio das camadas sociais de renda mais elevada, capaz de pagar um alto preço pelo direito de bem morar. A população pobre fica relegada às zonas menos servidas e que, por isso, são mais baratas.

Na interpretação de Singer a realidade do capitalismo periférico ao desenvolver a acumulação de capital produz um efeito sob o espaço semelhante ao efeito produzido sobre a população. Assim, em termos interpretativos temos constituído um espaço super-relativo, que além do elemento de concentração populacional, também concentra os equipamentos urbanos. Esse espaço requer concentração de serviços necessários ou serviços complementares, ao processo de produção, constituindo a massa de capital fixo imobilizado na forma de infraestrutura social. Assim, a lei geral de acumulação aplicada ao capitalismo periférico, estabelece cidades e até metrópoles (o autor investiga o caso de São Paulo). Nas quais a infraestrutura urbana se concentra em centros desiguais e as áreas de habitação popular são completamente ou parcialmente desprovidas de bens de consumo coletivos básicos.

Os movimentos sociais surgem das contradições do modo capitalista de produção, cuja base relacional central (a relação capital e trabalho) é em si mesma conflituosa, por mais que seja também necessariamente cooperativa[iv]. Essa conflitualidade inerente ao modo de viver capitalista, extrapola as relações propriamente produtivas do capital e se impõe enquanto conflito aberto na disputa pelo espaço de vida cotidiana, seja pelas condições de reprodução social dos trabalhadores em geral, seja pelo controle, inclusive especulativo, que o capital demanda sobre o espaço urbano e sobre os meios físicos de reprodução social.

De uma maneira geral é possível abstrair, a partir dos autores tratados, que os movimentos urbanos resultam da própria problemática urbana, que tem a ver com o uso, a distribuição e apropriação do espaço urbano, sendo esta problemática urbana manifestação da crise da cidade capitalista, decorrente seja da mercantilização pura e simples da cidade, seja da ação contraditória do Estado. Retornando aos autores discutidos, vale considerar como cada um deles analisou os movimentos sociais urbanos, para a partir daí construirmos a crítica aos recentes movimentos urbanos brasileiros.

Castells (1983) define movimento social como um “sistema de práticas” que envolve um conjunto diferenciado de atores sociais, cujo ato de ação sobre a “estrutura urbana e na estrutura social”, converge para modificações substanciais na própria relação de poder do Estado. Na medida em que este autor, concebia a cidade como um espaço de realização social da força de trabalho, a ação do Estado e a gestão de políticas públicas são estabelecidas como “motor” principal para ação coletiva. Segundo este autor já no final dos anos 1960 e inicio dos anos 1970, ocorre em alguns países o surgimento de três processos independentes que tenderiam a “gênese de um novo mundo”. São eles: a revolução tecnológica da informação; a crise econômica tanto do capitalismo quanto do estatismo e a posterior reestruturação destes; e o florescimento de movimentos sociais e culturais – feminismo, ambientalismo, defesa dos direitos humanos, das liberdades sexuais, e outros (CASTELLS 1999).

A configuração dos movimentos sociais analisados por ele teria um condicionante mais “humanista”. Esses movimentos ao contrário aos do modelo clássico buscavam a liberdade cultural individual, a essência do movimento está ligada ao processo cultural independente das transformações tecnológica e econômicas. Além disso, não era um movimento político, pois o objetivo não era tomar o poder.  Percebe-se que o movimento social não está ligado a perspectiva revolucionária do poder, mas buscam por transformações culturais baseadas no cotidiano dos atores sociais com orientações que se contrapunham às formas tradicionais de atuação política. Entretanto, o que veio a se denominar de “vingança neoliberal” parece impor o retorno a lutas sociais clássicas mesmo nos países centrais do capitalismo.

Lefebvre (1972, 1973) analisou os movimentos sociais enquanto atores de disputas pela produção do espaço, pois o espaço passa a desempenhar o papel de reproduzir as relações de produção, e com isso se torna também o espaço de grandes questionamentos, não localizados, difuso, que originam o seu centro em lugares diferentes. Esses questionamentos estavam diretamente relacionados ao crescimento econômico do mundo e a ocupação do espaço por meio do Estado e pelo mercado. Dessa maneira os movimentos sociais eram um dos aspectos da questão do espaço, pois as mudanças no sistema capitalista de produção estariam relacionadas a uma luta ao mesmo tempo social e espacial.

O entendimento de Harvey acompanha parcialmente a intuição de Lefebvre quanto os movimentos sociais, ele parte da análise dos grandes centros, de que eles causam/aumentam as desigualdades existentes, assim como vão dá origem aos movimentos sociais. São nos principais centros urbanos que se definem as reivindicações e mudanças que atingem as periferias. Segundo Harvey (2005), “elas (cidades) não são túmulos, mas arenas”. Dessa forma, é nelas que surgem os conflitos sociais. Os movimentos sociais urbanos configuram novas formas de organização social que estabelecem novos parâmetros de alteração das relações sociais de produção capitalistas. Assim, fazem-se necessárias novas e mais intensas lutas por direitos sociais, realizadas por um número maior de grupos e movimentos sociais, sem desconsiderar as lutas passadas, segundo ele “é hora de tecer redes entres os que buscam de muitas maneiras, nas cidades, construir formas de vida além dos limites docapital”.

As manifestações sociais brasileiras deste início do século XXI estão claramente relacionadas a precariedade urbana e ausência de efetiva reforma urbana que democratize a cidade e estabeleça padrões de socialização radicais do acesso aos bens públicos.  Não poucos estudos já sinalizaram os enormes déficits sociais de nossas cidades[v], fruto, em parte, da acelerada urbanização e periferização decorrente do padrão concentrador de renda da sociedade brasileira e da especulação com o solo urbano. A reforma urbana já estava prevista nas chamadas reformas de base do governo Jango, que, como sabemos, foram interrompidas no nascedouro, pelo golpe militar de 1964. Nesta agenda de reforma urbana, se inscreve políticas públicas de mobilidade urbana, como o transporte público de qualidade e a preços subsidiados, reivindicação central das recentes manifestações.

Finalmente, vale observar acerca dos movimentos sociais urbanos é que eles, ainda que se formem em torno do mesmo objetivo (busca de melhores condições de vida), possuem uma composição heterogênea, e, portanto, devem ser pensados como processos abertos e sujeitos a contradições internas e de grande diversidade. Portanto,suas identidades são fluídas e dependentes do contexto, não podendo, portanto, ter sempre a mesma intensidade no tempo e espaço, aliás elemento já teorizado pelos autores aqui resenhados.

Este artigo tratou em largas linhas tanto do escopo teórico que analisa a dinâmica urbana contemporânea, quanto buscou estabelecer a interação com elementos da práxis social. Pelas teorias expostas, concluiu-se que a cidade é muito mais que um reflexo do capital, na verdade, é o espaço privilegiado para execução das atividades produtivas e reprodução das relações sociais, sujeita tanto ao movimento de reprodução da acumulação capitalista, como também a um conjunto diferenciado de forças sociais que agem tanto na construção do espaço urbano, quanto na sua modificação.

Na medida em que os movimentos sociais urbanos são fluidos e dependentes do contexto conjuntural de ação, isto é, se adaptam às especificidades referentes às mudanças do modo de produção capitalista e produzem, ao mesmo tempo, alterações sobre o capitalismo. Os limites do capital na fixação dos valores mercantis urbanos são fortemente contestados pelos movimentos sociais, sendo que a disputa pela democratização da cidade e socialização abrangente dos meios de consumo coletivos são partes do processo de lutas sociais.

Vale concluir ressaltando, a exemplo do que faz Maricato (2011, p. 87) que o direito à cidade bem como a permanente inconformidade para com a injustiça urbana não são criações absolutas ou a-históricas”, mas fontes permanentes de conflitos. Mesmo em um momento histórico de retrocessos sociais como o atual que vivemos, porém, a dialética e as contradições do capitalismo periférico brasileiro exacerbam as disputas sociais no espaço urbano, o que coloca a constante tarefa de pensar e atuar na transformação desta realidade.

Nas vésperas da disputa que teremos pela cidade que queremos se coloca a fundamental construção de um projeto de “Cidade Inclusiva” e que estabeleça uma agenda nacional de reconstrução da soberania nacional a partir do local de vida e convívio da grande maioria do povo brasileiro. Nesta agenda de disputa urbana se coloca necessariamente um projeto de ruptura radical com a atual lógica excludente neoliberal, para isso em próximo artigo propomos uma agenda de debates e um programa para o urbano brasileiro.

*José Raimundo Trindade é professor do Programa de Pós-graduação em Economia da UFPA.

Referências


ARANTES, Pedro F.  Em busca do urbano: Marxistas e a cidade de São Paulo nos anos de 1970. Novos Estudos 83, março de 2009.

BRITO, F. O deslocamento da população brasileira para as metrópoles. Estudos Avançados, v. 20, n. 57, 2006, p. 221-236. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/ea/v20n57/a17v2057.pdf. Acesso em: 11 de fevereiro de 2014.

CASTELLS, Manuel. A questão urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

_______. Sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.

HARVEY, D.  A Produção Capitalista do Espaço. São Paulo : Annablume, 2005.

__________.  A justiça social e a cidade. São Paulo: Hucitec, 1980.

LEFEBVRE, H. La Revolución Urbana. Madrid: Alianza, 1972.

____________.  A Re-Produção das Relações de Produção. Porto: Escorpião (1a parte de La SurvieduCapitalisme), 1973.

LIMONAD, Ester. Espaço-tempo e urbanização: algumas considerações sobre a urbanização brasileira. In: Revista Cidades, vol. 05, n. 08, 2008.

LOJKINE, J. O Estado Capitalista e a Questão Urbana. São Paulo: Martins Fontes, 1981.

MÁRICATO, E. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2011.

MARX, K. E ENGELS, F. Manifesto Comunista. São Paulo: Boitempo, 2010.

MARICATO, Ermínia. Os impasses da política urbana no Brasil. Petrópolis/RJ: Vozes, 2011.

RIBEIRO, L. C. de Queiroz e JUNIOR, O. A. Santos. Desafios da questão urbana. Le Monde Diplomatique Brasil, abril de 2011. Disponível em: http://goo.gl/wdNwxn. Acesso em 13/02/2014.

SINGER, Paul. Economia Política da Urbanização. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

TRINDADE, J. R. B. Expansão periférica e exclusão social no espaço urbano de Belém na segunda metade da década de 80. Revista do Centro Sócio-Econômico, Belém, v. 4, jan./dez. 1997, p. 95-115.

Notas


[i] Harvey (2005, p. 54-55) lembra que a “crise fiscal da cidade de Nova York foi um caso paradigmático”, isso porque a falência da principal cidade estadunidense desencadeou tanto uma crise urbana de enormes proporções (desemprego, empobrecimento e suburbanização), quanto a reestruturação do sistema de políticas públicas, impondo a privatização dos serviços públicos e o desmonte do estado de direito. Segundo Harvey: “foi equivalente a um golpe das instituições financeiras contra o governo democraticamente eleito da cidade de Nova York, e tão eficaz quanto o golpe militar que ocorrera antes no Chile”.

[ii] Vale observar que Engels tinha grande preocupação com a análise das questões urbanas e buscou tratar, principalmente, das condições sociais de reprodução da classe trabalhadora frente a dinâmica de expansão da acumulação no setor imobiliário e o impacto sobre a precariedade habitacional da população trabalhadora europeia de meados do século XIX. Duas obras valem destaque: “A situação da classe trabalhadora na Inglaterra” (1845) e “Contribuição ao problema da Habitação” (1872).

[iii] Harvey (2005) utiliza o termo “teoria geral” de Marx para designar centralmente as formulações estruturadas inicialmente nos “Grundrisse” e posteriormente desenvolvidas em O Capital. Não há aqui presente a mesma significação que os autores burgueses, especialmente Keynes (1990) atribui a sua teoria de “um modelo” global de explicação, e sim um conjunto de formulações que tratam das condições sistêmicas de desenvolvimento da acumulação de capital, uma dialética entre tempo e espaço profundamente condicionada pela lógica da rentabilidade do capital.

[iv]No capitalismo, a relação capital é a de apropriação da mais-valia fundada em relações contratuais entre o capitalista (comprador da mercadoria força de trabalho) e o trabalhador (vendedor da mercadoria força de trabalho). Entre eles trava-se uma troca de equivalentes no processo de circulação de mercadorias: a força de trabalho, mercadoria que é a única propriedade do trabalhador, é comprada pelo capitalista, que oferece em troca a forma monetária salário, o preço da mercadoria força de trabalho. Essa aparente igualdade na forma do trato jurídico torna a relação salarial condição central tanto da reprodução econômica do sistema, quanto da sua configuração política.

[v] Conferir, entre outros, Maricato (2011); Ribeiro e Júnior (2011); Limonad (2008); Trindade (1996).

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