A distopia bolsonarista

Imagem: Grupo de Ação
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por RICARDO MANOEL DE OLIVEIRA MORAIS*

A morte, a mentira, o desprezo, a indiferença como projetos de um governo

Acredito que grande parte dos leitores já tenha lido algum livro distópico (como a obra Admirável mundo novo) ou assistido a algum filme (como V de Vingança ou Jogos Vorazes) com esta temática. Normalmente se vive em uma realidade na qual todos os indivíduos são assujeitos por um processo altamente opressor, que domina não apenas a forma de se vestir, mas também o pensamento e a expressão. Tem-se um governo despótico que conseguiu criar um imaginário social no qual a maioria dos indivíduos reconhecem o regime ou não são capazes de vocalizar suas discordâncias. Mas não se trata de uma repressão pura e simples. Os indivíduos se veem no regime. Como diz Foucault, os assujeitados se tornam vigias não apenas dos outros, mas de si mesmos.

Uma marca que comum a todas estas distopias parece ser uma certa “normalização do absurdo”. Na obra de Aldous Huxley, por exemplo, normaliza-se o imperativo da felicidade, que deixa de ser algo efêmero e se torna decorrência de uma droga. Normaliza-se a morte, que passa a ser um evento programado (literalmente) e massificado. Normaliza-se o vazio de uma vida que gira em torno de tarefas cotidianas, vácuo este que não é sentido devido à referida droga. Normaliza-se, ainda, a presença de um Estado em quase todos os segmentos da vida, aceita pela ideologização inconsciente das pessoas. O Estado passa a estar na cultura, policiando o que é e o que não é cultural. O Estado passa a estar na educação, filtrando o que é “neutro” ou “sem partido” e o que não é.

Normaliza-se também o sumiço das pessoas que não se enquadram neste modelo de sociedade. E o que mais intriga nestas distopias é precisamente o fato de que as pessoas simplesmente aceitam tudo passivamente, e isso quando não são fiéis defensoras do absurdo. A pergunta que eu colocaria é a seguinte: estaríamos tão distantes assim de uma distopia?

A pergunta é fruto de uma angústia que, por vezes, parece ser passível de ser apagada apenas por algo que seria próximo à droga “soma” (e, aqui, compreendo “soma” não como a droga da distopia citada, mas como alienação deliberada). Explico.

Vemos um contexto social no qual as pessoas realizam manifestações individuais ou coletivas pedindo o fechamento do Congresso Nacional, o fechamento do Supremo Tribunal Federal, a intervenção militar, bem como carreatas da morte. Estes indivíduos se apoiam na liberdade democrática de manifestação do pensamento para pedir o fim da democracia. Ou seja, manifestam o pensamento para reivindicarem que o pensamento não possa ser manifestado. E o mais curioso de tudo isso é que manifestações deste teor ocorrem desde 2015. A pitada distópica do momento é que estamos em meio da uma pandemia que já matou centenas de milhares de pessoas só no Brasil e há cidadãos que, de forma consciente, objetivam a morte. Mais ainda, vozes defenderam (e ainda defender) que não haveria problema se alguns milhares morressem.

Vemos também um Presidente da República cujas falas deixam claro que não há, de sua parte, qualquer apreço pelo regime democrático e pela vida das pessoas. Mais de 250 mil pessoas já morreram. Somos o segundo país com o maior número de mortes. Não obstante, suas declarações ultrapassam o limite do abjeto. Ele sequer tenta esconder as suas pretensões ditatoriais. Após o episódio do “vou intervir” vir a público, ele nem mesmo tentou remediar suas palavras. O anterior Presidente da Câmara dos Deputados afirma não ver crimes de responsabilidade por parte do chefe de governo.

Vemos um grupo de Ministros de Estado tomar parte em um projeto político claro de descaso com políticas públicas de saúde e de educação, colocando-se, deliberadamente, como parte de um genocídio. Ora, um Ministro que aceita impor um protocolo médico baseado no uso de um medicamento sem comprovação científica; não estabelece medidas coordenadas para frear a disseminação da doença e diminuir o número de mil mortes diárias; deixa sobrar a verba separada para o enfrentamento da pandemia, não se pode dizer que ele esteja preocupado com a saúde ou com a vida das pessoas. Ao contrário, ele parece justamente querer o contrário.

Com relação à educação, testemunhamos um (breve) Ministro que parecia não ser capaz de gerir uma conta-salário. Convivemos, por mais de um ano, com um outro que era claramente inepto. Vimos um quase ministro mentir no currículo. Não fosse o bastante, o governo tentou boicotar o FUNDEB, criticou ideologicamente o papel das Universidades Públicas e ataca constantemente o ofício dos professores.

Também neste cenário distópico vemos uma infinidade de outros absurdos: compartilhamentos de cenas de goldenshower; evidências claras da prática de rachadinha e lavagem de dinheiro pela família Bolsonaro, bem como de seu envolvimento com milícias e grupos de extermínio; o recebimento de 89 mil reais pela Primeira Dama, Micheque; uma incapacidade de tomar decisões rápidas e de forma séria; uma política ambiental que tem o desmatamento como meta; o envolvimento do governo em um esquema de destruição de reputações através do tal gabinete do ódio; apoiadores do governo intimidando uma criança de 10 anos que sofreu um estupro; o Ministro da Economia dizer que livros devem ser taxados porque são produtos da elite.

E mesmo diante de tudo isso, o que se passa? Absolutamente nada. Assistimos de forma passiva o absurdo se consolidar como aceitável. E a popularidade do atual governo se mantém. Sim. Um governo que optou por destruir a vida, a educação, o acesso à leitura, o meio ambiente, a dignidade de crianças vítimas de crimes bárbaros. Um governo que espalha, de forma deliberada, notícias e informações falsas. Um governo que resolveu fechar os olhos para a realidade indígena. Um governo que não queria viabilizar o mínimo existencial para as famílias durante a pandemia. Sim, é um governo “popular”.

E é esta a distopia. Temos a morte, a mentira, o desprezo, a indiferença como projetos de um governo. Errados parecem estar aqueles que não estão de acordo.

*Ricardo Manoel de Oliveira Morais é doutor em Direito Político pela UFMG.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Chico Alencar Armando Boito Lucas Fiaschetti Estevez Elias Jabbour Luís Fernando Vitagliano José Geraldo Couto Julian Rodrigues Luciano Nascimento Milton Pinheiro João Paulo Ayub Fonseca Atilio A. Boron Marilena Chauí Marcos Silva Manuel Domingos Neto Mário Maestri Ladislau Dowbor Alexandre de Lima Castro Tranjan Leda Maria Paulani Jorge Luiz Souto Maior Jean Marc Von Der Weid André Singer Igor Felippe Santos Fernando Nogueira da Costa Ronald León Núñez Luiz Marques Plínio de Arruda Sampaio Jr. Marilia Pacheco Fiorillo Remy José Fontana Celso Favaretto Daniel Brazil Alexandre de Freitas Barbosa Fábio Konder Comparato Renato Dagnino Tarso Genro Berenice Bento Érico Andrade Vinício Carrilho Martinez Bernardo Ricupero Benicio Viero Schmidt Eleonora Albano Ricardo Musse Leonardo Boff Lincoln Secco Slavoj Žižek Valerio Arcary Gabriel Cohn Luis Felipe Miguel Gilberto Maringoni João Feres Júnior Tales Ab'Sáber Samuel Kilsztajn Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Carla Teixeira Anselm Jappe José Dirceu Boaventura de Sousa Santos Matheus Silveira de Souza Carlos Tautz Vanderlei Tenório Antonio Martins Rodrigo de Faria Antonino Infranca José Micaelson Lacerda Morais Michel Goulart da Silva Eleutério F. S. Prado Luiz Bernardo Pericás Luiz Werneck Vianna Andrés del Río José Luís Fiori Mariarosaria Fabris Sergio Amadeu da Silveira Eugênio Trivinho Bruno Machado Ronald Rocha Sandra Bitencourt Francisco de Oliveira Barros Júnior João Lanari Bo João Adolfo Hansen Michael Roberts Annateresa Fabris Alexandre Aragão de Albuquerque Manchetômetro Bento Prado Jr. Marcos Aurélio da Silva Rafael R. Ioris Jean Pierre Chauvin Priscila Figueiredo Eduardo Borges Henri Acselrad Valerio Arcary Paulo Martins Andrew Korybko Afrânio Catani João Carlos Salles Caio Bugiato Francisco Fernandes Ladeira Ronaldo Tadeu de Souza Juarez Guimarães Gerson Almeida José Raimundo Trindade Eliziário Andrade Paulo Fernandes Silveira Ari Marcelo Solon Marjorie C. Marona Osvaldo Coggiola Fernão Pessoa Ramos Maria Rita Kehl Luiz Carlos Bresser-Pereira Marcus Ianoni Antônio Sales Rios Neto Flávio Aguiar Rubens Pinto Lyra Gilberto Lopes Paulo Nogueira Batista Jr Paulo Capel Narvai Ricardo Abramovay Heraldo Campos Everaldo de Oliveira Andrade Luiz Roberto Alves João Sette Whitaker Ferreira Daniel Costa Alysson Leandro Mascaro Ricardo Antunes Marcelo Guimarães Lima Luiz Eduardo Soares Leonardo Avritzer João Carlos Loebens Dennis Oliveira Dênis de Moraes Tadeu Valadares Thomas Piketty Lorenzo Vitral Denilson Cordeiro Marcelo Módolo Flávio R. Kothe Vladimir Safatle Yuri Martins-Fontes Bruno Fabricio Alcebino da Silva Salem Nasser Francisco Pereira de Farias Otaviano Helene Liszt Vieira Henry Burnett Ricardo Fabbrini José Machado Moita Neto Daniel Afonso da Silva Michael Löwy José Costa Júnior Eugênio Bucci Celso Frederico Walnice Nogueira Galvão André Márcio Neves Soares Chico Whitaker Leonardo Sacramento Paulo Sérgio Pinheiro Airton Paschoa Luiz Renato Martins Kátia Gerab Baggio Jorge Branco Claudio Katz

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada