Por GUSTAVO NAVES FRANCO*
Universidade pública em crise: entre o esvaziamento dos campi e a urgência de reinventá-la como espaço de acolhimento e transformação
1.
Deve existir um termo em alemão ou japonês que defina isso. Esse sentimento do professor universitário (quando uma turma do ensino presencial vai definhando no decorrer do semestre, ou de um período para o outro) de que um dia ele poderá chegar em sala e estar sozinho, sem estudantes, num edifício silencioso, escutando ao longe o barulho de carros na estrada.
Não falo de números e estatísticas, falo de algo mais impalpável mesmo, embora os números e estatísticas de evasão universitária estejam aí para sustentar esse sentimento. Deve haver um novo nome técnico para isso, ou então alguma sigla. Se não existir a gente inventa. É o medo da Universidade acabar.
Eu pelo menos já senti isso. Sinto com frequência, para falar a verdade. Há dias bons, há sinais positivos, há motivos de alegria, mas no geral predomina a sensação de que o fim pode estar logo ali. E, como todo prognóstico catastrofista implica um diagnóstico da realidade atual, o medo da Universidade acabar é uma avaliação de que tal como está não podemos ficar, caso contrário a estrada para o inferno estará pavimentada de bons currículos Lattes. É verdade que a ideia de uma crise da universidade não é nova. Mas nosso tempo parece capaz de levar às últimas consequências aquilo que antes era apenas intuído como uma remota possibilidade para um universo paralelo.
Então, a chance de que a universidade deixe de existir, existe. Não “a boa e velha universidade tal como a conhecemos” – essa nunca existiu, era uma fantasia elitista – mas a universidade mesmo, como local de uma congregação de humanos em torno do objetivo comum de transmissão e produção de conhecimento. Perdoem-me a franqueza, pois o assunto do esvaziamento dos campi de nossas universidades públicas é em alguma medida um tabu. Mas começo a escrever esse texto motivado pela ideia de que precisamos discutir abertamente ideias para adiar o fim da universidade.
Sim, existem excelentes inciativas, bons projetos, ideias promissoras, e muito trabalho envolvido para dar conta do básico. Mas isso tem sido insuficiente, e é dessa sensação de insuficiência que quero tratar. Convivemos com ela, nós, professores, gestores, técnicos, movimento estudantil organizado, e demais atores envolvidos, como se a qualquer momento o pêndulo do nosso ânimo possa oscilar de vez para o lado da resignação. E acredito que, para alterar essa tendência, vai ser preciso não apenas trabalho, eficiência e bons indicadores. Será preciso reencontrar uma imagem que nos mova. Será preciso romantizar a universidade.
A universidade, aliás, é um ótimo exemplo de como é empobrecedor o discurso de que não devemos romantizar nossas experiências. A universidade é por natureza romântica, em diversos aspectos, e submetê-la à aridez de uma linguagem funcional e asséptica é abandonar algo de intrínseco à sua elaboração, levando ao sacrifício do lugar da universidade no imaginário coletivo. A dimensão simbólica é tão importante para o estudante universitário quanto suas condições concretas. A própria melhoria das condições materiais e de assistência estudantil deve presumir que seu objetivo não é permitir que o estudante frequente um lugar qualquer. É de que ele vá para a universidade.
Lembrando que o empenho em combater notícias falsas pode muito bem nos reduzir a uma instância exasperada de checagem de fatos. A necessidade de produzir notícias verdadeiras não deve nos fazer esquecer que existem outras formas de produção de verdade. Existe uma verdade poética que é fonte de ânimo e de vida; a direita sabe disso, e oferece Deus, a Prosperidade, a Família, sabendo que nada aí depende uma interpretação literal. Nós descontruímos essas promessas com a realidade dos números e da crítica. Nisso, deixamos de criar nossas próprias fantasias, porque é o próprio ato de fantasiar que fica sob suspeita de conivência com as forças do mal.
A “boa e velha universidade” nunca existiu, era uma fantasia, portanto. Nada de errado nisso. O que nos falta é uma fantasia sobre como será a boa e nova universidade. Tudo o que precisamos preservar é a ideia da universidade como um lugar diferente, da universidade como um lugar especial. E essa ideia sobrevive, apesar das desilusões que possa causar.
Esse choque é também intrínseco à experiência universitária, que implica uma ampliação de horizontes, mas também algum grau de desconforto e estranhamento, inclusive no contato com pessoas diferentes, uma linguagem estranha, um terreno desconhecido. Entrar para a universidade é como viajar para uma terra estrangeira.
Estamos então diante do paradoxo de que, após termos conseguido garantir passagens aéreas para contingentes da população que nunca puderam visitar outros países, afirmamos que na verdade a viagem não vale a pena. É muito perrengue e não dá futuro a ninguém. É verdade que precisamos ir além das passagens, e oferecer também estadia e alimentação adequadas, para que a experiência não se resuma ao perrengue. Mas estamos caminhando neste sentido – e, ainda assim, estamos longe de conseguir afirmar, com uma convicção renovada, que a experiência universitária presta, que ser universitário vale a pena.
Para isso, acredito que precisaremos exercer com maior frequência a linguagem do cuidado, comunicando-a efetivamente para a opinião pública como uma característica da vida universitária. Precisaremos oferecer o Acolhimento, a Inclusão, a Comunidade, mesmo sabendo que estamos longe do ideal. Comprar o contraste com as virtudes do individualismo conquistador, e mostrar nosso reconhecimento da fragilidade e da vulnerabilidade humanas, da necessidade de tempo para o desenvolvimento de nossas competências, do lugar do afeto em nossas dinâmicas sociais.
Será necessário imaginar a universidade como uma terra ao mesmo tempo transformadora e solidária. Um lugar de liberdade e mudança, e ao mesmo tempo um lugar seguro, um lugar de proteção. Este tipo de ambivalência só se resolve no plano imaginário ou metafórico, que comporta valores e vetores contraditórios, sem necessidade de uma dialética capaz de resolver suas contradições. Fica então a pergunta: qual é a metáfora que, hoje, melhor se aplica à universidade pública brasileira? Qual é a universidade que queremos imaginar?
2.
Agora, preciso reconhecer, parte da minha motivação aqui é pessoal. Hoje trabalho também como gestor da assistência estudantil em uma universidade pública, e preciso ver algum sentido nisso que ocupa minhas rotinas. Como vi, por exemplo, quando publicamos recentemente o anúncio de que um conjunto de estudantes passaria a contar com isenção do pagamento de refeições no nosso Restaurante Universitário, por uma questão de segurança alimentar. Entre os comentários de estudantes na postagem de divulgação da medida, havia várias no mesmo tom, dizendo que, com esse avanço, a universidade se tornava “cada vez mais uma mãe” para eles.
Quem trabalha com assistência estudantil nas universidades conhece bem esse tipo de manifestação. Da mesma forma como conhecemos bem (e como) as recorrentes expressões de insatisfação, frustração e abandono por parte dos estudantes, sobretudo os mais vulneráveis em termos socioeconômicos. São dois lados da mesma moeda. Mas seria apressado desqualificar este comportamento por sua infantilidade, ou por confundir direitos públicos e afetos privados. É importante entender o que está em jogo aí, presumindo que a ideia da “universidade como mãe” é um problema, tanto para a universidade, como para as mães. Pode também ser uma solução. Nos dois casos.
Pois se, por um lado, existe uma dificuldade para que a universidade reformule sua própria imagem e identidade nestes termos, por outro há de fato a projeção de um desejo coletivo de que ela se reconfigure em torno de valores associados à maternidade. E também à materialidade. Não é casual que estes dois termos sejam cognatos, que compartilhem o prefixo mater. A matéria mais fundamental de que dependemos para sobreviver provém do corpo materno, e é natural que essa associação reapareça quando recebemos alimento, cuidado ou proteção de outras fontes.
Naturalmente, as atividades principais da universidade devem seguir sendo o tripé ensino, a pesquisa e extensão. Mas a instituição deveria assumir com maior clareza seu papel enquanto provedora de bases materiais para que essas finalidades sejam alcançadas. Os entraves para isso não são apenas orçamentários, mas também históricos e culturais, uma vez que o ambiente universitário é tradicionalmente associado às atividades do espírito, presumindo que as necessidades corporais serão de algum modo resolvidas no âmbito da família. Mas este parece ser apenas o obstáculo mais óbvio em uma questão que envolve outros fatores.
De minha parte, devo adiantar, sinto certo desconforto com essa imagem contraditória e ambivalente da universidade maternal, talvez, sobretudo, pelas expectativas que ela cria. Mas, se minha avaliação estiver correta, é necessário que nos sintamos cada vez mais confortáveis com essa posição e com essas expectativas, cuidando também de que não se tornem desmedidas a ponto de anular todos nossos esforços. E aqui entra em cena um fator menos evidente, porém decisivo, que pode nos condenar ao sentimento de eterna insuficiência: o problema de tudo o que esperamos das figuras que assumem o papel de mãe em nossa sociedade.
Estamos diante do impasse social gerado pela ideia de que ‘mãe só tem uma’, o padrão-ouro de um imaginário classista e racista elaborado a partir do século XIX europeu. É o que a psicanalista Vera Iaconelli denuncia em seu Manifesto Antimaternalista: psicanálise e políticas da reprodução (Zahar). Ela argumenta que a mãe nutriz, e inteiramente responsável pelo cuidado com as novas gerações, é uma construção colapsada e insustentável. E, ao recuperar a noção de ‘ambiente bom o bastante’ do pediatra D. W. Winnicott (no lugar, inclusive, da famosa ‘mãe boa o bastante’, ou suficientemente boa), Vera Iaconelli nos faz lembrar que a tarefa do cuidado precisa ser compartilhada por um conjunto de agentes da comunidade (como se sabe, “é preciso uma aldeia para cuidar de uma criança”), uma vez que a própria preocupação materna primária não seria um fenômeno reservado às mães.
Esta reflexão tem dois desdobramentos importantes, quando a vemos na perspectiva do ensino superior. O primeiro, mais simples e evidente, é de que a universidade precisa integrar nossos esforços sociais para amparar as famílias brasileiras no cuidado com as novas gerações. Embora os estudantes que recebemos sejam em geral jovens adultos, são ainda, e cada vez mais, os filhos de uma senhora de cerca de cerca de 50 anos, negra, trabalhadora informal, que, além de feliz por ter seu rebento na faculdade, estaria razoavelmente satisfeita com a ideia de que ele continue seus estudos contando com duas refeições por dia garantidas.
O detalhe importante aqui é que, para esta senhora, a separação entre a esfera privada e a esfera pública, que fundamenta o questionamento de interseções entre valores familiares e políticos, nunca existiu. O mundo lá fora, público, político, histórico, sempre fez parte de sua constituição subjetiva e familiar, por meio de marcas da desigualdade e da violência das quais seu lar nunca esteve imune; muito pelo contrário. Deste modo, quando sua filha ou seu filho adquirem acesso a uma faceta do mundo estatal que lhe dá acesso a direitos e benefícios, lhe parecerá muito natural e adequado compartilhar a tarefa do cuidado com a universidade.
A outra conclusão, que precisa acompanhar a primeira, é de que a universidade não pode nem deve tomar para si as funções idealizadas atribuídas à figura materna na configuração familiar restritiva. Fazer isso seria implodir sua capacidade de contribuição ao ambiente de cuidados, tornando todos seus esforços sujeitos à frustração. Quando falamos em uma universidade que incorpore valores maternos à sua identidade, precisamos saber de que tipo de maternidade estamos falando. Há um encontro aí: os valores aos quais a universidade deve associar sua imagem são exatamente os valores comunitários da maternidade exercida pelas mães periféricas.
Então, quando um estudante diz que a universidade está se tornando uma figura materna para ele, isso não necessariamente implica que ele esteja procurando cobrir uma falta. Isso quer dizer que ele está somando a universidade a um conjunto de figuras que incluem a própria mãe, que, notoriamente, não pode estar sozinha nessa incumbência. Saber contar com a ajuda de estranhos é uma estratégia de sobrevivência que acompanha a fragilidade da espécie. É também um valor que impede o esgarçamento de nossa rede de vínculos em núcleos familiares atomizados, e que a universidade precisa tomar para si, como parte da sua missão institucional.
3.
Algumas premissas para a universidade avançar no sentido da reconfiguração de sua identidade enquanto instituição pública, a partir deste valor, são bastante práticas. Elas envolvem, sobretudo, o fortalecimento das políticas de assistência estudantil, através de bolsas e auxílios, e também com investimento em políticas estruturantes, como Restaurantes Universitários e Moradias Estudantis. Mas, diante das limitações orçamentárias, como convencer os demais agentes envolvidos que os recursos disponíveis devem ser cada vez mais utilizados para esta finalidade, e não para outras? Basicamente, dizendo que é isso que já estamos fazendo. Só não fazemos o bastante.
E lembrando que, a princípio, a mudança experimentada no ensino superior público brasileiro neste século foi voltada para a questão do acesso. A partir daí, começaram a surgir as bolsas e equipamentos assistenciais, como ilustrou Jefferson Tenório em De Onde Eles Veem, seu romance mais recente (Cia. Das Letras). Casa, comida e transporte entraram no radar das universidades como necessidades do corpo para as realizações do espírito. Essa é a grande mudança que temos vivido em termos de financiamento da experiência universitária – mas uma mudança, em grande medida, silenciosa e envergonhada de suas faltas.
Nesse período, o Plano Nacional de Assistência Estudantil (PNAES) foi criado e se desdobrou até ser assumir a forma da Lei 14.914, em 3 de julho de 2024. Entre altos e baixos, seu financiamento atingiu a casa do bilhão – mas um bilhão claramente escasso para o tamanho do desafio. Precisamos reverter este problema, caso contrário a transformação terá sido ao mesmo tempo grandiosa e medíocre, decisiva e inconsequente. Uma grande jornada começa com os primeiros passos, mas a questão agora é que estamos no meio do caminho, e tem gente paralisada com medo de que tenha sido tudo em vão.
Precisamos continuar nesse caminho. Ainda que o ideal esteja distante, é importante avançarmos dia a dia, ainda que seja pouco. Isso é o que nos impede de entrar no modo desespero, colocando em risco todas as conquistas das últimas duas décadas. Ao mesmo tempo, um avanço consistente nos daria segurança para aprimorar a comunicação a respeito do PNAES, aproveitando seu potencial enquanto marca da atuação do poder público da vida da população. “Sou filho do PNAES” é uma frase que, dita com o devido reconhecimento e orgulho, tem muito a expressar sobre a trajetória acadêmica e profissional de muitos egressos de nossa rede.
E, como observou o Tribunal de Contas da União no acórdão 2281/2024, que analisou justamente esse tema, a assistência estudantil executada nas universidades carece de uma comunicação mais efetiva. A população que mais teria interesse em saber da disponibilidade de bolsas e incentivos voltados para a permanência no ensino superior com frequência desconhece esses estímulos. Isso se dá, em parte, por causa de deficiências da comunicação de entes públicos em geral. Mas acontece também porque as universidades convivem com a sensação de que oferecemos muito pouco.
Precisamos resolver isso nas duas pontas – a objetiva e a subjetiva. Precisamos de mais recursos, mas precisamos também entender que não estamos diante de uma tarefa absolutamente impossível, insustentável e colapsada. Entendo que sinais alarmistas sejam dados no sentido de garantir o mínimo, mas percebo também que esses gestos não são necessariamente estratégicos, e, sim, movimentos genuínos de frustração e descrença.
Não podemos sucumbir a estes sentimentos, e não apenas por causa de nossos estudantes, mas por causa da própria universidade pública brasileira – um fenômeno repleto de sucessos históricos, que hoje precisa da assistência estudantil não apenas para dar continuidade a seus feitos, mas também para reinventar-se a si mesma como um todo, em torno de qualidades como o cuidado e o acolhimento.
Minha aposta é de que esse ajuste encontraria ressonância na sociedade. Pois se, por um lado, as virtudes maternas são negadas pelas ilusões heroicas de autossuficiência do ultraliberalismo, por outro, existem grandes contingentes de pessoas capazes de reconhecer a própria vulnerabilidade e buscar amparo onde possam encontrar. Isso não implica que sejam destituídas de força ou de mérito para o próprio sustento. Muitas vezes, é exatamente o contrário: junto com o reconhecimento de nossas limitações, vem o tempo necessário para o amadurecimento de nossos projetos, a chance de um sucesso mais consistente a longo prazo.
Ao ultraliberalismo, não interessa que as pessoas tenham esse tipo de tempo, que tenham a chance de adquirir essa autonomia. Não interessa que a universidade, enquanto incubadora de vocações e talentos, possa oferecer a estas pessoas, em particular a estes jovens, apoio material e simbólico a continuidade de seus estudos. O tempo passado na universidade nunca será tempo perdido, porque terá sido um tempo investido na experiência, no amadurecimento da personalidade, que são atrofiadas pelo ingresso precoce no universo das fantasias do empreendedorismo.
Enquanto isso, em nossos pesadelos apocalípticos, entramos num círculo vicioso: a sensação de insuficiência gera apatia, que se reverte no risco de sermos ainda mais insuficientes. Precisamos construir um ciclo virtuoso, baseado na confiança em nossa capacidade de imaginar e cumprir um novo destino, e no desejo de reconstruir a percepção da universidade perante a opinião pública. Hoje, isso passa pelo financiamento do que há de mais básico e corpóreo na experiência acadêmica, uma vez que a assistência estudantil é ainda, em grande medida, uma novidade, que pode ser mobilizada de várias maneiras na reconfiguração de nossas identidades institucionais.
O medo da universidade acabar, enfim, precisa ser substituído pela coragem para transformar a universidade. Curiosamente, porém, na ousadia deste epíteto reside uma forma de modéstia. A universidade que surge daí precisa ser simples e efetiva no cumprimento de seu papel político, renunciando, por um lado, a antigas ambições sobre o que a universidade é ou deve ser, e por outro assumindo novas imagens em torno das quais possa se definir.
Essas imagens podem ser contraditórias, ambivalentes, insuficientes, como são, por exemplo, nossas mães, nossos pais, e todas as demais pessoas que nos criaram. O importante é que sejam imagens vivas, carregadas de uma paixão nova, e ao mesmo tempo antiquíssima: a do esforço conjunto, de toda uma comunidade, pela sobrevivência e pelo sucesso de nossas crianças.
*Gustavo Naves Franco é professor do Departamento de Letras e Pró-Reitor de Assuntos Estudantis e da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO).