A explicação do comportamento

John Piper, Olho e câmera: azul a ocre, c. 1977
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Por CHARLES TAYLOR*

Prefácio do livro recém-editado

1.

Estou muito satisfeito porque este livro, cuja base foi a minha tese de doutorado, será novamente publicado na série Routledge Classics.

Na verdade, este livro foi uma intervenção em um debate importante que vem sendo travado há muito tempo e pode jamais chegar a uma conclusão final de consenso. Trata-se do debate entre os que acreditam que um relato adequado da vida humana, da sua evolução e do seu desenvolvimento histórico pode ser feito em termos (atomísticos e mecanicistas) de ciências naturais pós-galileanas, e os que sustentam que essa tentativa é fatalmente falha.

Trata-se de uma disputa entre os que sustentam que o conhecimento realmente válido deve tomar forma “científica”, cujos paradigmas se encontram nas ciências da natureza, e os que acreditam que nenhuma explicação adequada do ser humano pode desconsiderar ou deixar de lado os objetivos e as conquistas que nós buscamos, e os autoentendimentos com os quais lutamos, nenhum dos quais pode encontrar lugar em uma ciência construída sobre esses paradigmas.

Minha tese era (e continua sendo) que os propósitos e a autocompreensão – nos termos deste trabalho, teleologia e intencionalidade – não podem ser ignorados nas ciências da vida humana, sob pena de esterilidade e, enfim, fracasso.

A meta é “reduzir” os complexos pensamentos, sentimentos e atos culturalmente definidos para explicações em termos de blocos de construção aceitáveis de uma ciência materialista: estímulos e respostas motoras, quando se trata de “comportamento”; as operações dos programas de computador como suposta base do pensamento; a replicação do DNA a traçar a continuidade ao longo da história dos “genes egoístas” e de outros que tais.

Mas faz parte da natureza desse debate ser travado em torno a diferentes projetos redutivos. No início, fazem-se reivindicações exageradas e abrangentes para o novo projeto: todas as ações animadas serão explicadas por vínculos estímulo-resposta construídos pelo “hábito”, todo pensamento será explicado por programas de computador autocorretivos a operarem no cérebro como computador, toda hereditariedade pelos genes egoístas. Muito entusiasmo é gerado por essas perspectivas fascinantes. Mas, com o passar do tempo, os problemas se desenvolvem, as dificuldades se repetem, as hipóteses demasiado simples não dão certo e surgem dúvidas.

Por fim, chega-se a um ponto de crise no qual o projeto é abandonado ou, pelo menos, engavetado indefinidamente. Mas, para que esse movimento aconteça, tem de haver uma alternativa no horizonte. Pois, na verdade, essas duas perspectivas filosóficas (também se pode dizer: temperamentos – o redutivo e o humanístico) são vastamente compartilhadas.

Os reducionistas não podem se afastar de determinado programa a menos e até que um substituto dele desponte no horizonte. E, na realidade, o que aconteceu em certo momento da década de 1960 foi a ascensão da moda dos computadores como modelos da mente, coisa que criou o pano de fundo para o abandono em massa do behaviorismo de Hull-Skinner, e os estudiosos mais jovens entraram na onda.

2.

A explicação do comportamento foi publicado em 1964, justamente nessa transição crítica! Coisa que talvez pareça me colocar no papel do galo lendário que não podia deixar de acreditar que o seu canto fazia o sol nascer. Mas, naturalmente, eu nunca pensei assim – bem, não durante muito tempo. (O verdadeiro golpe de misericórdia na antiga teoria foi administrado por Noam Chomsky na sua famosa crítica do livro de B. F. Skinner sobre a linguagem, Verbal behavior [Comportamento verbal], depois da qual o behaviorismo foi reduzido a frangalhos.)

A explicação do comportamento foi o meu primeiro livro, mas não é um livro único, porque as questões em torno à ciência humana e às condições de uma explicação não redutiva adequada da ação humana continuaram a me preocupar durante toda a minha vida. Essas questões assumem formas diferentes em contextos disciplinares diferentes, mas há uma analogia óbvia entre os debates nesses lugares diferentes.

A minha posição sobre tudo isso inspirou-se desde o começo na tradição fenomenológica e, em particular, na obra de Maurice Merleau-Ponty. A sua influência é evidente em A explicação do comportamento. O modelo foi estabelecido por La Structure du comportement e La Phénoménologie de la perception, que unem as descobertas filosóficas e experimentais para fazer seus pontos principais.

Mais tarde, dei comigo no Departamento de Ciência Política, onde as questões acerca da natureza e do método das ciências sociais se tornaram inevitáveis. E as analogias com as questões tratadas em A explicação do comportamento eram inteiramente óbvias. Não que alguém estivesse propondo tomar emprestadas as teorias da ciência natural e explicar a ação humana em termos de estímulo-resposta. Mas se difundia a ideia de que a explicação da ação política tinha de invocar interesses concretos tangíveis.

Essa era uma abordagem muitas vezes caracterizada como “materialista”, termo esse que teve um papel central na variante marxista, mas a noção de “interesse” geralmente tinha um papel central na obra de cientistas políticos que eram virulentamente antimarxistas.

Porém, mesmo onde o reducionismo estava longe de ser grosseiro, havia uma tendência geral a evitar as tentativas de explorar em profundidade os diferentes autoentendimentos dos atores políticos ou de examinar em profundidade as diferentes culturas políticas que hoje operam em diferentes países.

3.

O que chamo de “culturas políticas” são entendimentos compartilhados das instituições e práticas aceitas de uma sociedade. Posteriormente, cunhei a expressão “imaginários sociais” para designar esses entendimentos compartilhados. Mas o problema é que eles geralmente são pouco teorizados ou, em outras palavras, não são suficientemente articulados. O excelente trabalho de Irving Goffman, por exemplo, mostra quanto do que acontece nas trocas cotidianas se baseia no entendimento tácito, que não se encontra claramente formulado em nenhum lugar.

O resultado é que sondar a natureza desses entendimentos implícitos exige que se tente enunciá-los muitas vezes em termos que os agentes não reconheceriam imediatamente. Aqui, as aptidões e as práticas são mais bem mostradas no trabalho de etnógrafos habilidosos. Mas não há garantia de que vamos acertar as coisas. De fato, poderíamos até dizer que não existe algo como acertar as coisas definitivamente, no sentido de que, possivelmente, não se poderia obter nenhuma melhora.

Aqui estamos às voltas com o que a tradição fenomenológica chama de “interpretação” ou “hermenêutica”, e esta é uma prática capaz de produzir genuíno insight genuíno, mas que nunca pode afirmar que chegou a uma versão final impossível de se melhorar. Uma das principais etapas do meu pensamento veio com a redação de um artigo, cinco anos depois da publicação de A explicação do comportamento, denominado Interpretation and the Sciences of Man [Interpretação e as ciências do homem] (ao qual eu hoje daria um título de gênero neutro, mas 1970 ainda estava na era ignorante, na qual a necessidade disso não era amplamente reconhecida).

Aqui os insights me vieram da tradição fenomenológica, porque foram pensadores dessa linhagem que desenvolveram as ideias-chave: Martin Heidegger, Hans-George Gadamer, Paul Ricoeur.

Por que acho a “virada hermenêutica” importantíssima? Porque, na sua ausência, os teóricos sociais e políticos são tentados a lidar com universais artificiais, processos de sociedades diferentes agrupados sob um único nome, que, na verdade, são muito diferentes, porque, mesmo se os agentes envolvidos usarem o mesmo vocabulário, ou termos que são considerados traduções uns dos outros, as verdadeiras autocompreensões podem ser muito diferentes de uma cultura para outra, e as generalizações que fazemos só podem causar espanto por sua incorreção.

Duas áreas de que participei na tentativa de mostrar isso são: teoria da “modernização” e (como um componente desta) “secularização”.

No fim do século XX, a moda da política comparativa para uma “teoria da modernização” universal estava no auge. O movimento na história mundial era rumo a sociedades economicamente desenvolvidas, geográfica e socialmente móveis, altamente urbanizadas, “seculares” (só para citar algumas das principais características), e, como essas sociedades pertenciam historicamente a civilizações diferentes, isso representou uma convergência em direção a uma semelhança muito maior. “Modernização” era o nome do processo que causou (ou está causando) isso, e acontece em civilizações diferentes em tempos diferentes, mas traz o mesmo resultado, e, como processo, é muito semelhante em toda parte.

Mas, quando se olha mais de perto para as sociedades reais, “em desenvolvimento” e “desenvolvidas”, que constituem o nosso mundo, fica evidente que diferenças importantes persistiram, juntamente com as convergências supramencionadas. Na verdade, a própria noção de “desenvolvimento”, que subjaz à classificação crucial que acabamos de invocar, também poderia nos cegar para diferenças importantes.

O necessário era o reconhecimento das “modernidades alternativas”, ideia desenvolvida pelo Centro de Estudos Transculturais, com o qual venho trabalhando há 35 anos. (E um grupo em torno à obra fértil de Shmuel Eisenstadt desenvolveu uma concepção semelhante de Múltiplas Modernidades).

Quanto ao segundo conceito mencionado, “secularização”, poder-se-ia argumentar que uma homogeneização infundada semelhante foi aqui imposta pela ciência social ocidental. Isso foi pensado muitas vezes para ser um processo único, acontecendo em um ritmo diferente e ocorrendo em diferentes países em momentos diferentes, mas fundamentalmente o mesmo. O resultado foi uma imagem muito centrada no Ocidente: nós, ocidentais, fomos os pioneiros, e os outros seguiram depois, às vezes com relutância, na nossa esteira.

Considerando que me parecia evidente, embora houvesse analogias entre os desenvolvimentos religiosos (ou antirreligiosos) em diferentes civilizações, os termos em que foram levados a cabo e as dinâmicas envolvidas eram bem diferentes. O modo de proceder seria tentar um estudo da secularização em uma civilização (e talvez mesmo isso fosse demasiado amplo, porque também havia diferenças importantes em qualquer grande civilização), e então contrastar essa imagem com o que se passou em outros lugares e construir uma imagem mais geral a partir de uma combinação desses estudos mais limitados.

4.

Essa foi a ideia que me precipitou na redação de Uma era secular, que se concentrou deliberadamente no que ocorreu na sociedade ocidental, mais precisamente em (algumas das) sociedades que surgiram da cristandade latina da Idade Média. Esse foi um exercício de hermenêutica e tem toda a vulnerabilidade desse ramo do conhecimento. De acordo com o que eu disse acima acerca da hermenêutica, ele não pretende ser definitivo. Pelo contrário, sei que há muito mais a dizer e que o quadro será muito alterado por essas novas contribuições.

O meu livro mais recente, The language animal [O animal de linguagem], explora outra faceta do mesmo grupo de questões. As teorias reducionistas da vida e do desenvolvimento humanos sempre viram a linguagem como essencialmente importante devido à sua função de codificação, gravação e comunicação de informações. Os primeiros pioneiros modernos da teoria da linguagem que precederam, se sobrepuseram e contribuíram para o Iluminismo – Hobbes, Locke e Condillac – estavam muito enfocados no modo como a linguagem contribuiu para – na verdade possibilitou – o desenvolvimento da ciência. E esse foco persiste nos herdeiros dessa tradição, que se pode encontrar nas linhagens pós-fregianas da filosofia analítica contemporânea.

Não quero de modo algum contestar a importância dessa função da linguagem e a maneira como ela se desenvolveu e foi aprimorada mediante a lógica e a filosofia. Mas a linguagem tem outros papéis cruciais na vida humana, que têm sido explorados em uma tradição alternativa da filosofia proveniente do romantismo alemão, e na qual as figuras importantes são Hamann, Herder e Humboldt (e, no século XX, Heidegger). A linguagem é decisiva para a intimidade dos seres humanos; nós promovemos a intimidade e também mantemos a distância no modo como falamos uns com os outros.

Mas, em um nível social mais amplo, a linguagem que usamos também cria ou sublinha hierarquias. Recordemos que, em muitos idiomas, a linguagem se apoia na distinção entre o tratamento íntimo e o formal (a distinção tu/vous ou du/Sie).

Sem falar no papel da literatura e da arte; nem na importância da narrativa para a nossa compreensão de nós mesmos.

Aqui há vastos campos a explorar e que precisam ser integrados à nossa teoria da linguagem e, por conseguinte, à nossa compreensão de nós mesmos como “animais possuidores de linguagem”, a definição do humano oferecida por Aristóteles.

Essa descrição dos meus escritos faz-me parecer um monomaníaco. E talvez haja alguma verdade nisso. Mas, em todo caso, é preciso deixar claro que A explicação do comportamento me iniciou em um caminho que me levou a muitos destinos dos quais eu tinha pouca ideia na época, mas, em retrospectiva, formam um único itinerário por muitos lugares diferentes. Estou muito satisfeito pelo fato de o livro estar novamente disponível, coisa que agradeço à Routledge.

A minha obra encaixou-se principalmente naquilo que chamamos de “ciências humanas”, as quais poderíamos caracterizar grosseiramente como as disciplinas em que a cultura e, particularmente, as diferenças culturais desempenham um papel óbvio: a história política, a teoria social, a religião, a linguística e outras que tais. Mas uma área central, na qual a disputa entre as duas perspectivas contrastantes tem sido discutida a fundo, está nas ciências biológicas ou da vida. Esta decerto é a área em que a postura reducionista pode parecer mais plausível.

Como não me sinto competente para intervir aqui, me inspirei muito na obra de Evan Thompson, Denis Noble e Lenny Moss.

Mas, uma vez eliminada a presunção reducionista, abre-se o caminho para uma explicação hermenêutica das culturas humanas, e é aqui que importantes descobertas ainda precisam ser feitas.

*Charles Taylor é professor emérito de filosofia e ciência política n a Universidade McGill (Canadá). Autor, entre outros livros, de As fontes do “self”: a construção da identidade moderna (Loyola).

Referência


Charles Taylor. A explicação do comportamento. Tradução: Luiz Antônio Oliveira de Araújo. São Paulo, Unesp, 2024, 392 págs. [https://amzn.to/3QCkRsQ]


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