Por ALIPIO DESOUSA FILHO*
Muitas das chamadas “opiniões” são, na verdade, produtos cuidadosamente moldados por discursos midiáticos que refletem e reforçam os interesses das elites que historicamente resistem às mudanças sociais no Brasil
1.
A Folha de S. Paulo divulgou recentemente os resultados de uma pesquisa que indicaria uma expressiva desaprovação da população brasileira ao governo federal, ao Supremo Tribunal Federal (STF) e ao Congresso Nacional. À primeira vista, a matéria sugere que se trata da voz livre do povo, da expressão autêntica e espontânea da vontade coletiva. Mas seria mesmo?
Como já advertiu o sociólogo Pierre Bourdieu, “a opinião pública não existe” – não no sentido absoluto e naturalizado que os institutos de pesquisa e a mídia frequentemente querem nos fazer crer. Pierre Bourdieu não negava que as pessoas tenham opiniões, mas sim que essas opiniões sejam formadas em um vácuo de influências, manipulações, controles etc. Ao contrário: elas são socialmente produzidas, condicionadas por estruturas simbólicas, hierarquias sociais e dispositivos de mediação – entre os quais se destacam os meios de comunicação, chamados, hoje, mídias.
Quando afirma-se que a população desaprova os três poderes, não se pode ignorar o contexto em que essa percepção se forma. A mídia, ao repetir incessantemente imagens de crise, corrupção, instabilidade ou “ativismo ideológico”, vai construindo um imaginário coletivo de desconfiança e rejeição, que é menos resultado de uma experiência direta das pessoas com essas instituições e mais fruto de uma pedagogia simbólica orientada. Não é raro que manchetes se tornem slogans – e que esses slogans passem a operar como “opiniões” nos levantamentos estatísticos.
Essa construção simbólico-ideológica da desaprovação cumpre funções políticas claras. Por trás dela, opera uma visão de mundo profundamente conservadora, que resiste a transformações sociais e redistribuições de poder. O atual governo federal, ao implementar políticas públicas voltadas à inclusão social, ao combate às desigualdades históricas e à valorização da diversidade, enfrenta resistências dos setores mais privilegiados da sociedade.
O STF, ao assumir posições firmes na defesa dos direitos fundamentais, da legalidade democrática e da contenção de avanços autoritários, também se torna alvo. O Congresso, quando eventualmente legisla em favor de reformas estruturais, enfrenta reações dos que desejam manter o status quo.
Assim, a desaprovação não é necessariamente dirigida às falhas reais das instituições e poderes visados – que, sem dúvida, existem e devem ser criticadas com rigor –, mas muitas vezes é fomentada por setores que se opõem justamente às virtudes dessas mesmas instituições quando elas operam em favor da democracia substantiva. Nesse contexto, a crítica se traveste de neutralidade técnica, mas age como campanha político-ideológica.
2.
Outro aspecto a ser considerado é a forma como as pesquisas são conduzidas e apresentadas. A seleção das perguntas, a ordem dos temas, os recortes de análise e a ênfase nas interpretações têm efeitos sobre os resultados. Como bem destacou Pierre Bourdieu, “a simples existência de uma pergunta pode suscitar uma resposta que não existia antes da pergunta”. A pesquisa, portanto, não apenas revela, mas produz a realidade que afirma descrever.
Além disso, a noção de “opinião pública” tende a apagar a pluralidade de vozes presentes em uma sociedade marcada por profundas desigualdades sociais, econômicas, regionais, e violentada por um elitismo racista, como disso falei em livro que publiquei em 2024, O menosprezo ao Brasil mestiço e popular (Paco Editorial).
Quem é ouvido? Que segmentos respondem? Quais condições sociais informam suas opiniões? Com que repertório simbólico interpretam os acontecimentos políticos? Ao homogeneizar o “público” em um bloco supostamente coeso, apaga-se a complexidade dos conflitos sociais reais.
Em tempos de polarização e disputas narrativas intensas, torna-se ainda mais necessário desnaturalizar os dados e os discursos. Quando um jornal como a Folha de S. Paulo apresenta a “desaprovação” como um dado bruto e irrefutável, sem questionar suas condições de produção, está contribuindo não para o esclarecimento público mas para a manutenção de uma hegemonia simbólico-ideológica e econômico-social que serve aos interesses de classes e de grupos sociais que, na sociedade brasileira, usufruem historicamente do poder e da dominação social e política que “coincide” com também a dominação de regiões brasileiras sobre outras….
Não se trata, aqui, de negar a legitimidade da crítica às instituições democráticas, tampouco de romantizá-las. Mas é preciso perguntar quem está criticando, com que motivações, por quais meios e com que efeitos. O ataque orquestrado ao STF, ao Executivo federal e ao Congresso, quando estes se alinham a pautas progressistas, não expressa uma crise da democracia, mas uma reação conservadora contra sua expansão real.
E a direita e a extrema direita políticas, hoje, no país, expressam-se à vontade por muitos canais – para o que não deve haver censura, afinal, a democracia comporta riscos, entre os quais, pontos de vista que a negam, agridem. Ao mesmo tempo, o Estado, nas democracias, deve ser o poder que deve inibir, por meios legais, tudo o que atente contra a igualdade participativa de todos e contra tudo aquilo (ideias, atos) que aja para impedir que o Estado seja agente que assegure a igualdade de participação, direitos.
Portanto, é preciso ter coragem e responsabilidade para afirmar: muitas das chamadas “opiniões” são, na verdade, produtos cuidadosamente moldados por discursos midiáticos que refletem e reforçam os interesses das elites que historicamente resistem às mudanças sociais no Brasil. E, nesse sentido, a “desaprovação” revelada pela pesquisa da Folha de S. Paulo não é apenas um dado técnico – é um fenômeno político a ser interpretado sociológica e criticamente.
*Alipio DeSousa Filho, cientista social, é professor do Instituto Humanitas da UFRN. Autor, entre outros livros, de O menosprezo ao Brasil mestiço e popular (Paco Editorial).
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