Por MARLÈNE COULOMB-GULLY*
Prefácio do livro recém-lançado de Amanda Braga e Carlos Piovezani
“Olha, olha! Estas palavras ainda não foram descongeladas, disse Pantagruel. Depois disso, ele nos lançou várias palavras congeladas no convés. Elas pareciam pérolas de diversas cores. Algumas delas eram vermelhas, outras, verdes, e outras ainda eram azuis, negras e douradas. Ao serem aquecidas em nossas mãos, elas se derretiam e nós conseguíamos ouvi-las…” (François Rabelais, Gargântua e Pantagruel, livro IV, cap. 56).
1.
Durante muito tempo, as palavras das mulheres se pareceram com essas palavras congeladas de que fala Rabelais. Suas falas eram interditadas e suas intervenções não eram ouvidas. A voz das mulheres também foi constantemente criticada: “muito aguda” ou “muito frágil”, “histérica” ou “estridente”.
Em suma, sempre havia um “muito”, sempre eram um excesso. As mulheres foram constantemente rebaixadas por suas falas, que continuam a ser depreciadas, ridicularizadas, deslegitimadas e interditadas.
Em contrapartida, a ordem do discurso e o campo da fala pública foram construídos como espaços do privilégio masculino: Vir bonus dicendi peritus, ou seja, “O homem de bem é quem está capacitado para falar”, escrevia Catão, o velho, ainda no início da era cristã.
O emprego do substantivo “vir”, que significa “homem”, ao invés de “homo”, que é sinônimo de “humano”, dá a medida de como a virilidade foi alçada à condição de substância essencial dessa arte de bem falar e de como a iniciativa de fala foi convertida numa das primeiras e mais fundamentais manifestações da identidade masculina. Mais do que falante, o homem se tornou, então, naturalmente orador. Essa própria “natureza” é uma invenção dos homens. Natural-mente, eles mentem, ao sustentar essa invenção.
Seguindo o longo fio condutor da dominação masculina e dos silenciamentos impostos às mulheres (mas também o de suas resistências), Amanda Braga e Carlos Piovezani construíram esta obra-prima. Para essa construção, autora e autor adotaram uma abordagem crítica e feminista no exame de sua longa duração histórica, tarefa indispensável para apreender as lógicas dessa dominação.
Assim, somos conduzidas e conduzidos por um percurso que remonta à Antiguidade grega e latina e que atravessa séculos e continentes para mostrar como se formou e se reproduziu esse duplo paradigma que associa a fala ao mundo masculino e o silêncio ao feminino. Essa já milenar oposição continua a marcar as práticas e as consciências ainda em nossos dias. Nessa oposição, se forja o seguinte contraste: eles têm facilidade para falar e indisposição para renunciar ao turno de fala, ao passo que elas têm grande dificuldade para tomar a palavra e para se fazerem ouvir.
Ao refletir ainda no calor da hora sobre o revolucionário movimento de Maio de 68 na França, em sua obra La Prise de parole, o historiador Michel de Certeau (1968) dizia: “Vozes que jamais tinham sido ouvidas nos modificaram. Nós tínhamos a sensação de que então se produzia algo inédito: os silenciados começaram a falar. Tínhamos a impressão de que era a primeira vez que isso acontecia. De todos os cantos, surgiam tesouros adormecidos ou experiências vividas que jamais tinham podido se exprimir. Ao mesmo tempo, os discursos do poder se calavam e as ‘autoridades’ ficaram silenciosas. As existências congeladas se despertaram numa manhã cheia de sonhos. Tomamos a fala como nossos companheiros tinham tomado a Bastilha”. Não raras vezes e em larga medida, a fala continua ainda uma Bastilha a ser tomada pelas mulheres.
2.
O Brasil é um privilegiado centro de gravidade dessa reflexão sobre os silenciamentos da fala feminina: os zooms sobre o que ocorreu recentemente na história brasileira com Dilma Rousseff, Manuela D’Ávila, Sâmia Bomfim e, evidentemente, com Marielle Franco, uma mulher de origem social desfavorecida, negra e lésbica, que foi assassinada por ter falado do que ela falou – como se fosse uma Olympe de Gouges, de séculos mais tarde e do outro lado do Atlântico, que também foi morta pelo que disse em plena Revolução Francesa…
Sexismo, misoginia e machismo não conhecem as fronteiras do espaço nem as do tempo. Em todo caso, a realidade e a singularidade dos silenciamentos de mulheres brasileiras são cirurgicamente analisadas aqui em A fala feminina.
Mas a reflexão de Amanda Braga e Carlos Piovezani ultrapassa amplamente esse enquadramento territorial. É preciso destacar aqui a formidável erudição da autora e do autor que nos fazem ouvir as vozes mais diversas, quer se trate das vozes dos dominantes, quando são evocadas, entre outras, as mortíferas ideologias do patriarcalismo, do colonialismo e do fascismo, quer se trate das dominadas, que têm de buscar quebrar os silêncios e desconstruir essa ordem de coisas: a extensa série de resistentes (entre as quais, constam Mary Astell ou Mary Wollstonecraft, assim como Jeanne Derouin, Louise Michel ou bell hooks, para mencionarmos apenas algumas do mundo moderno e contemporâneo do hemisfério norte) é certamente a consequência da violência imposta, é sem dúvida o efeito desse “Cala a boca, mulher”, que atravessa os séculos e os continentes. O #metoo é provavelmente o último e o mais globalizado avatar desse longo combate.
Qualquer pessoa que não tem acesso à fala é reduzida ao silêncio ou é falada por outros, deixa de ser sujeito pleno de seu próprio discurso e tende a ser convertida num objeto. “Ela/s”, “ele/s”, enfim, as terceiras pessoas, estão em boa medida excluídas/os do ato de fala, ou seja, são transformadas numa “não pessoa”, tal como aponta o linguista Émile Benveniste.
Portanto, não há nada de supérfluo na análise das condições de direito e de exercício da fala pública. Antes, muito ao contrário, pois se trata de algo decisivo na vida de cada uma e de cada um de nós. Com efeito, a partilha igualitária das mais diversas vozes e seu acesso à fala pública, concebida como bem-comum, estão no fundamento da cidadania e são elementos decisivos da vitalidade democrática.
Tomar consciência de que os lugares de fala e os espaços de intervenção se constituem como elementos privilegiados das relações de poder é a primeira etapa de um processo que nos permitirá conjurar a “male–diction” da fala feminina, isto é, que nos permitirá eliminar essa maldição da fala das mulheres feita e refeita pelos machistas. Essa é mais uma das tantas razões pelas quais a leitura de A fala feminina: silenciamentos e resistências é indispensável.
Sua leitura certamente concorrerá para que as “palavras congeladas”, evocadas por Rabelais, se tornem “pérolas de diversas cores”, para que os discursos das mulheres durante tanto tempo proibidos se transformem em falas cheias de vida, que cada vez mais funcionarão como pequenas pedras com as quais vamos ladrilhar o caminho da igualdade.
*Marlène Coulomb-Gully é professora emérita da Universidade de Toulouse II. Autora, entre outros livros, de Femmes en politique: en finir avec les seconds rôles (Belin).
Referência

https://shre.ink/ekOQAmanda Braga e Carlos Piovezani. A fala feminina: silenciamentos e resistências. São Paulo, Editora Jandaíra, 2025, 416 págs. [https://shre.ink/ekOQ]
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