Por DANIEL L. JEZIORNY*
A falácia que transforma biodiversidade em commodity e perpetua a injustiça ambiental, enquanto o agronegócio e o capital financeiro lucram com a crise climática que ajudaram a criar
1.
O intercâmbio constante de CO2 entre a atmosfera e os oceanos regula o clima da Terra impedindo que este se assemelhe ao de Marte ou de Vênus. O CO2 atmosférico é transparente à luz solar, porém é opaco à energia (térmica) infravermelha, de tal forma que permite a entrada da luz ao mesmo tempo em que impede que o calor da Terra escape livremente para o espaço.
Quando a temperatura terrestre aumenta, os oceanos absorvem CO2 atmosférico e facilitam que parte do calor se esvaia, contribuindo assim para que a atmosfera de nosso planeta se resfrie. Já quando cai em excesso a temperatura da atmosfera terrestre, esta aquece-se ao absorver CO2 liberado pelos oceanos. Com efeito, por milhões de anos o ciclo do carbono tem impedido que a Terra se torne demasiadamente fria ou quente, isto é, que se assemelhe climaticamente à Marte ou à Vênus.
O ano de 2024 foi confirmado pelo Copernicus Climate Change Service (C3S)[i] como o mais quente já registrado na Terra. O primeiro ano em que a temperatura média global ultrapassara em 1,5 °C a sua marca pré-industrial.

Quadro de temperaturas preocupantes também na superfície dos oceanos cada vez mais aquecidos pelo CO2.


Na medida em que a temperatura dos oceanos aumenta, a solubilidade do CO2 na água diminui comprometendo-se a capacidade oceânica de absorver mais desses gases. Condição que reforça o efeito estufa e engendra um mecanismo de retroalimentação: quanto maior a concentração de dióxido de carbono na atmosfera mais aquecimento global, menor a capacidade dos oceanos em absorver CO2 e ainda mais aquecida a temperatura da superfície terrestre – tanto que para alguns especialistas o aquecimento global ganhara “vida própria”, visto que o gatilho que inaugura um mecanismo automático de aquecimento de nosso planeta já teria sido acionado.
Embora oscilações referentes ao El Niño tenham contribuído para temperaturas incomuns observadas na superfície marinha durante o ano de 2024, os cientistas do C3S são taxativos em afirmar que a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera são as suas principais causas, especialmente associadas à queima de combustíveis fósseis e ao desmatamento.
2.
O que significa que o gatilho do aquecimento global fora acionado pelo desenrolar daquilo que muitos entendem (por vezes acriticamente) por progresso e/ou desenvolvimento. A figura abaixo ilustra o quão crescem as concentrações médias de dióxido de carbono e de metano atmosféricos desde o início do presente século. Quadra história marcada por crescentes conflitos socioambientais e militares, não raras vezes em torno de recursos energéticos demasiadamente poluentes como o petróleo, mas cada vez mais por terras raras.
Ou seja, pela apropriação de recortes da biosfera que concentram elementos químicos transformados por milhões de anos pelo silencioso metabolismo da Terra. Qualidades da matéria geralmente mescladas à minérios e que contêm propriedades aproveitáveis na separação de certos componentes do petróleo, mas também na produção de lâmpadas de LED e de super ímãs que se encontram em computadores e em motores de automóveis movidos por energia elétrica.

Infelizmente não há surpresas nos dados expostos pelos pesquisadores do C3S em seu relatório. O que causa desconforto é a conclusão apresentada (e igualmente nada surpreendente) de que as mudanças climáticas extremas são provocadas pelos “seres humanos”. Afinal, cabe aí uma ponderação: se é inquestionável que o preocupante acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera resulte da ação humana, plenamente discutível é que a responsabilidade recaia indistintamente sobre toda a espécie humana.
Francamente, parece um grande equívoco – para não dizer uma injustiça – responsabilizar povos indígenas, pequenos agricultores, comunidades quilombolas e ribeirinhas pela concentração desses gases na atmosfera terrestre. Quando o assunto são mudanças climáticas extremas, tais grupos sociais não podem simplesmente figurar na mesma categoria de grandes corporações que impulsionam a degradação ecossistêmica para lucrar exorbitantemente com a comercialização de commodities agropecuárias e minerais – sem nenhuma medida ambiental verdadeiramente efetiva.
Tampouco se pode comparar o impacto gerado por uma Terra Indígena, por exemplo, com o causado pelas Forças Armadas estadunidenses, maior consumidor mundial de petróleo e maior emissor mundial de CO2 – conforme aponta Ian Angus em seu elucidativo livro Enfrentado o Antropoceno.
Nesse sentido, vale lembrar que de acordo com o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas o aumento de eventos climáticos extremos expôs globalmente milhões de pessoas à insegurança alimentar e a insegurança hídrica, porém com impactos negativos desproporcionalmente mais severos para pequenos produtores de alimentos, famílias de baixa renda e especialmente povos indígenas – cujas terras abrigam 80% da biodiversidade remanescente no planeta.
Biodiversidade essencial à manutenção de serviços ecossistêmicos fornecidos gratuitamente pela natureza e indispensáveis à espécie humana, como a regulação do ciclo hidrológico da Terra, a ciclagem de nutrientes do solo e a já mencionada regulação do clima terrestre. A rigor, a biosfera é o conjunto de ecossistemas onde a vida é possível, um sistema cujo bom funcionamento requer a manutenção de metabolismos ecossistêmicos minimamente saudáveis.
O que por seu turno implica a preservação de elementos bióticos e abióticos que compõem os diferentes ecossistemas terrestres e marinhos. Talvez dois exemplos interconectados e bastante conhecidos ajudem a ilustrar a importância da preservação da biodiversidade que assegura serviços ecossistêmicos essenciais: (i) a existência de polinizadores que garantem a reprodução de árvores que – ao utilizarem energia solar – (ii) absorvem água do solo pelas raízes e transpiram vapor d’água pelas folhas, criando assim um ambiente propício para si mesmas e para muitas outras formas de vida terrena – inclusive a humana.
3.
O ponto a destacar é que a natureza não é mera fonte de “recursos naturais”, mas uma trama da vida, um organismo cuja saúde depende do bom estado de seus ecossistemas, consequentemente da biodiversidade que lhes constituem. Essa compreensão é relativamente nova para uma parcela menor das pessoas que enxergam o mundo com a lente do modelo de civilização que surgiu na Europa Ocidental as voltas do século XVI.
Nessa perspectiva de mundo, o estudo de nosso planeta como um organismo vivo só se tornou possível e imprescindível há não muito tempo, quando satélites projetados para reunir dados sobre a Terra combinaram-se com sistemas computacionais capazes de coletar e analisar esses dados.
Foi somente em 1986 que se criou o International Geosphere-Biosphere Programe, um programa de cooperação científica internacional com o objetivo de descrever e compreender processos (físicos, químicos e biológicos) que interagem entre si e regulam o sistema terrestre como aquilo que realmente é: um todo com dinâmica intrínseca. De acordo com Angus em seu trabalho supramencionado, presentemente cientistas perfuram partes da Antártica para acessar recortes desse todo intactas há milhares de anos.
Dessas perfurações são extraídas amostras para estudos que partem do pressuposto de que o entendimento do passado pode revelar elementos indispensáveis à apreensão do estado presente do Sistema Terra, com possíveis ensinamentos à construção de um futuro sem a insegurança da atual crise ecológica.
Um entendimento relativamente novo para a ciência tida como oficial, mas milenar para povos indígenas, que desde muito antes dos europeus do “descobrimento” desembarcarem nas Bahamas já reconheciam a natureza como um ser vivo, bem como o presente e o futuro como enlaçados pela sabedoria ancestral. Sabedoria transmitida muitas vezes através de rituais que funcionam como formas de se transmitir o passado ao futuro através do presente, mas também de sedimentar o senso de comunidade nas pessoas.
Manifestações culturais de uma forma de consciência que apreende a relação humanidade/natureza como a totalidade que é, em contraponto a ideia antropocêntrica que projeta a natureza como uma espécie de almoxarifado da espécie humana. Ideia essa, vale mencionar, que está na raiz epistêmica da crise ecológica. Certamente um problema global que requer uma solução por parte da comunidade internacional, mas que em sua essência não é apreensível pela simples quantificação de (pre)supostas “externalidades negativas” do desenvolvimento capitalista, talvez por ser uma contradição tão endógena a este quanto a tecnocracia que o defende praticamente como um ato de fé.
Diferentemente do modelo de civilização europeu ocidental, que arrogantemente se propõe como o único mundo possível, os povos indígenas partem de uma ontologia assaz diferente do que seja o tempo-espaço presente e a própria vida. Se na visão de mundo típica do universalismo europeu a natureza não é mais do que mera fonte de “recursos naturais”, aproveitáveis em processos muitas vezes degradantes de acumulação capitalista, para os povos tradicionais ela é uma teia da vida, na qual a humanidade se insere e da qual o bom funcionamento ela depende para existir e se desenvolver.
O entendimento ou cosmovisão dos povos indígenas latino-americanos, por exemplo, emerge de uma forma de estar no mundo que difere frontalmente a da “civilização ocidental”, que se propõe a portadora do progresso ao passo que degrada aceleradamente condições naturais indispensáveis à vida.
No entanto, muitos insistem em considerar como um ato civilizatório o desenvolvimento do sistema que ainda hoje expropria territórios de povos originários calcado na destruição ecossistêmica e no racismo que lhe acompanha – senão como pseudo e abjeta justificativa à pilhagem das riquezas naturais desses povos. Retrato de uma discriminação eivada de pedantismo, mas também de violências.
Opressões funcionais ao sistema de poder que de acordo com José Luís Fiori nasceu na Europa Ocidental e avança tal qual um universo em expansão, mediante um esquema interestatal marcado pela crueza do imperialismo. Contradições estruturais, forjadas no sistema-mundo-moderno-colonial desde os seus albores, quando o pensamento dos europeus passara a atribuir a si próprios a posição de avançados, estigmatizando outros povos do planeta como atrasados, em muitos casos, selvagens.
Conforme aponta o britânico Eric Willians em Capitalismo e escravidão, a captura de pessoas do continente africano – transportadas em porões de embarcações inglesas para trabalharem forçosamente nas plantations americanas – alimentou a acumulação de capital mercantil que deu impulso à Revolução Industrial. Revolução que alçara a produtividade do trabalho a níveis impressionantes e que trouxera avanços materiais e tecnológicos não menos impressionantes, muitos desses indispensáveis ao desenvolvimento humano.
Avanços conquistados, contudo, no desenrolar de uma ideia de civilização originalmente marcada pela violência contra grupos sociais oprimidos e que hoje nos coloca diante dos desafios da atual crise ecológica – ao retemperar draconianamente o racismo com a injustiça ambiental e com a conformação de “zonas de sacrifício”. Isto é, com a formação de áreas geográficas que padecem com degradações ecossistêmicas e desinvestimento econômico.
Uma espécie de custos ambientais do desenvolvimento, que recaem desproporcionalmente sobre minorias que vivem próximas a indústrias poluentes ou bases militares, ademais daquelas acossadas por desmatamento ilegal, pela grilagem de terras ou que são vizinhas das montanhas de lixo que se avolumam mundo afora.
4.
Atualmente esse sistema que hierarquiza e subjuga espaços, lugares e pessoas apresenta uma configuração bastante distinta da que lhe era característica quando despontou como modo de produção do “Novo Mundo”, que trouxe consigo a temporalidade febril da acumulação capitalista.
Mola mestra de uma forma de metabolismo social que avança calcada num consumismo exacerbado e associado a queima de combustíveis fósseis, hoje cada vez mais ciclópica, impulsionada pela negociação frenética – em Mercados de Futuros – de direitos de compra e venda de barris de petróleo sequer extraído das entranhas da Terra. Expressão de um modo de produção que se financeirizara até a medula sob tutela dos Estados.
Em A finança mundializada, François Chesnais nos deixou claro que a esfera financeira do capitalismo se tornara a espinha dorsal de um mundo no qual o capital portador de juros fora alçado ao centro das relações econômicas e sociais pela decisão dos Estados mais poderosos em liberalizar os sistemas financeiros. Na esteira desse movimento e de acordo com um recente relatório da Oxfam, atualmente pelo sistema financeiro fluem US$ 30 milhões – por hora – dos países do Sul Global para o 1% das pessoas mais ricas do mundo.
Pessoas que vivem em países do Norte Global, onde um alto consumo material está para além da quantidade de matéria natural disponível em suas fronteiras geográficas. Logo, Estados que se valem da natureza de espaços que não estão sob suas jurisdições para assegurar os insustentáveis padrões de vida de suas populações.
Mais ainda, que o fazem de forma a agigantar a dívida ecológica que acumularam com os países do Sul Global, referente a um montante histórico de injustiças ambientais; fruto da expropriação de riquezas naturais, da degradação de ecossistemas e da poluição de territórios pelo descarte irresponsável de resíduos produtivos.
Inclusive com a agravante de situações criminosas estarrecedoras, como a que ceifou mais de uma centena de vidas humanas e contaminou o Watu – ou Rio Doce – com a lama tóxica da Vale, mesmo após as advertências de que a barragem de Brumadinho poderia ceder ante o ritmo da exploração de minério naquela região. Ritmo ensandecido, quiçá por uma tentativa de compensar a lucratividade perdida com a queda momentânea do preço do minério de ferro no mercado internacional de commodities – regulado bela bolsa de Chicago.
Não obstante, a complexa esfera financeira (estruturada em torno do dólar estadunidense) propõe falsas soluções à crise ecológica que acelera. Soluções falsas à medida que não têm por principal objetivo a preservação de territórios ricos em biodiversidade e retenção de carbono, mas engordar ainda mais as já abarrotadas contas bancárias e o patrimônio de empresas poluentes, bem como o das pessoas super ricas que se locupletam com o sistema que consome autofagicamente a trama da vida.
Conforme matéria de Silvia Ribeiro, uma nova onda de projetos de mercado de carbono avança sobre Terras Indígenas e comunidades que vivem da agricultura tipicamente camponesa. Em reposta a isso e por iniciativa de comunidades indígenas da Amazônia e da América Latina, o Movimento Global pelas Florestas produziu o vídeo Não ao REDD e aos Mercados de Carbono.
O vídeo é uma denúncia elucidativa, comparte experiências e perspectivas de povos ameaçados por projetos de crédito de carbono e que ademais de mineradoras, madeireiros ilegais e grileiros convivem agora com o assédio dos que chamam “garimpeiros de ar”. Representantes de empresas que – por meio de mentiras – tentam seduzir povos tradicionais a assinarem contratos que habilitam essas empresas a negociar créditos de carbono emitidos com lastro na biodiversidade preservada cuidadosamente por esses povos durante centenas – talvez milhares – de anos.
No geral, as empresas que compram tais créditos se valem de propaganda enganosa para passar uma falsa imagem verde. Grandes mineradoras, empresas petrolíferas e do setor de aviação estão entre estas, que se utilizam de créditos oriundos de projetos REDD para seguir com suas emissões massivas e crescentes de CO2, sob falsas alegações de que são “carbono neutras”. Isto é, de que o desmatamento que causam e o dióxido de carbono que emitem mundo afora podem ser compensados pela preservação da biodiversidade em determinados territórios de comunidades tradicionais.
Entretanto, o que tais projetos vendem tampouco é absorção de carbono, mas a promessa de proteção de florestas que há muito são protegidas pelos povos tradicionais, sob a justificativa (estapafúrdica) de que estes são incapazes de resguardá-las por conta própria. Falácia que reforça a velha lógica colonial e racista da expropriação, agora complexificada pela transformação da biodiversidade de territórios tradicionais em produtos financeiros negociáveis em bolsas de valores.
No fundo, o que os indígenas latino-americanos que se levantaram contra os projetos REDD estão a dizer é que não querem que seu trabalho de cuidar e preservar a trama da vida seja apropriado por grandes empresas poluentes. De fato, um escárnio, especialmente porque estas empresas se aproveitam dos “direitos de poluir” desses projetos para seguirem – contumazes em outros recortes da biosfera – com sua necroeconomia que persegue e destrói comunidades tradicionais. Especialmente por isso os indígenas e pequenos agricultores da Amazônia resistem ao avanço dessas supostas soluções.
Fajutas soluções, que tampouco resultaram de um debate público no qual se tenha dado voz às comunidades tradicionais latino-americanas e de outros lugares do Sul Global, mas que vieram de cima para baixo na esteira das COPs. Ou seja, são fruto dos encontros das partes signatárias da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima. Conferências que reúnem representantes de Estado e de grandes empresas para encaminhar saídas à crise climática.
Encontros que seguem a acontecer ano a ano desde 1995, talvez por se assemelhar cada vez mais a um balcão de negócios do capitalismo do desastre, no qual aparentemente se negociam muitas coisas, menos soluções efetivas à crise ecológica em curso. Do contrário tal problema não estaria a avançar persistentemente.
5.
Esse ano Belém do Pará sediará a 30ª edição da COP. É possível que seja celebrada nessa ocasião o fato de que em 11 de dezembro de 2024 foi sancionada no Brasil a Lei 15.042/2024, que instituiu o Sistema Brasileira de Comércio de Emissões (SBCE). Iniciativa que em alguma medida visa regular o mercado de carbono brasileiro e que estabelece regras de compensação para setores que mais emitem gases de efeito estufa.
Curiosamente, como mostra matéria de Lorena Tabosa (publicada no portal O Joio e o Trigo), a lei deixou de fora o agronegócio. Setor que é responsável por 74% das emissões de gases de efeito estufa no Brasil – seja pelas emissões de metano dos animais ou pelas mudanças no uso da terra que promove, das quais se destaca o monocultivo da soja. Aliás, vale destacar que atualmente o Brasil é o maior exportador mundial dessa oleaginosa.
Em 2024 o país exportou cerca de 156 milhões de toneladas, cuja produção de 1 quilograma consome em média 1.800 litros de água. Quem sabe um fenômeno que ajude explicar porque nossos rios estejam a secar em áreas de intensa atividade agropecuária – como revelou um estudo de pesquisadores da USP, publicado na Revista Nature e resgatado numa matéria de Carolina Bataier no Brasil de Fato.
Aliás, em 04 de dezembro de 2024, a CUT publicou em seu portal uma matéria de Walber Pinto. A matéria denuncia ataques de fazendeiros contra comunidades tradicionais no Brasil com o uso de agrotóxicos. Segundo o levantamento da Comissão Pastoral da Terra (CPT), os disparos de veneno lançado por aviões contra essas comunidades vêm crescendo, especialmente nas áreas marcadas por conflitos com fazendeiros e representantes do agronegócio.
No total, foram 182 registros desse tipo nos últimos seis meses, ou seja, média de 1 ataque por dia. Infelizmente, a “guerra química” que promove a pulverização aérea por agrotóxicos chegou a um número muito maior do que o do ano passado, quando foram registradas 19 ocorrências. Triste capítulo da guerra promovida pelo agronegócio contra a trama da vida.
Em tempo: em 9 de maio de 2024 o Congresso Nacional derrubou parte do veto do presidente Lula à Lei 14.785/2023. Lei que por flexibilizar o controle de agrotóxicos se constitui numa clara ameaça à saúde e ao meio ambiente. Apelidada de “Pacote do Veneno” por ambientalistas, mas fortemente impulsionada pela bancada ruralista, a lei foi aprovada no Senado em novembro do ano passado.
Conforme denunciam os povos indígenas que se levantaram contra os projetos REDD, atualmente há duas visões de mundo em disputa no espaço agrário brasileiro. A visão dos povos tradicionais é frontalmente contrária à das grandes corporações do agronegócio e dos fazendeiros que impulsionam a violência no campo.
Fica a questão de qual caminho privilegiar: o indicado pelos territórios de povos tradicionais, que oferecem importantes elementos subjetivos para se encontrar a saída do labirinto de alienação em que nos encontramos em nossa relação metabólica com a natureza de que somos parte, ou aquele no qual se acelere ainda mais um metabolismo social autofágico, que retempera o racismo e requenta a guerra química que envenena solos, aquíferos e pessoas.
A arena política é decisiva nessa questão. No entanto, parece imprescindível rever o atual estatuto da política, ofuscada por cruentos nacionalismos e fantasiosas ideias de soberania e supremacia.
*Daniel L. Jeziorny é professor da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
Referências
ANGUS, Ian. Enfrentando o antropoceno. São Paulo: Boitempo, 2023.
CHESNAIS, François. A finança mundializada: raízes sociais e políticas, configuração, consequências. São Paulo: Boitempo, 2005.
FIORI, José Luís. Uma teoria do poder global. Petrópolis, RJ: Vozes, 2024.
HAESBAERT, Rogério & PORTO-GONÇALVES, Carlos Walter. A nova des-ordem mundial. São Paulo: Editora UNESP, 2006.
KLEIN, Naomi. A doutrina do choque: a ascensão do capitalismo do desastre. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.
KRENAK, Aílton. A vida não é útil. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
KRENAK, Aílton. Futuro ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
WILLIAMS, Eric. Capitalismo e escravidão. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
Notas
[i] Programa de Observação da Terra da União Europeia: https://climate.copernicus.eu/
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