A farsa é uma tradição

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Por LUCIO GREGORI*

O Brasil é constituído política e discursivamente à base de farsas

Depois de uma boa quantidade de anos vividos em nosso país e de ter experimentado diversas situações políticas, não consigo deixar de pensar que o Brasil é constituído política e discursivamente à base de farsas, costumeiras nos países periféricos com suas respectivas classes dominantes subalternizadas e próprias dos padrões capitalistas internacionais. Algumas mais grotescas e outras mais refinadas.

Começo pela tradicional questão de nosso “descobrimento”, que na verdade foi tão somente nossa captura pelo Império português. Sigo pela “cristianização” dos índios, na realidade a prática de uma catequese de submissão e derrota com benção das carnificinas. E em seguida nossa divisão do território, uma verdadeira “parceria público privada” que instituiu as capitanias (que vem de capitão…) hereditárias – primeiro marco do fracasso das elites privadas que dominam o Brasil desde então.

Seguindo o esquema do colonialismo de ocasião, fizemos guerra ao Paraguai, assassinamos seu “ditador” nacionalista Solano Lopez e fizemos de nosso comandante general Caxias, herói nacional e marquês. Continuo com nossa independência proclamada por um futuro imperador de Portugal e culmino esta primeira parte, com nossa Proclamação da República feita pelo comandante Marechal do Exército, tirado às pressas de sua cama para tal finalidade. O capitalismo de então assim o exigia, Imperador já era…

Já próximo ao final do último milênio, em 1945, com a guerra mundial recém acabada, aos meus nove anos de idade é derrubado o ditador Getúlio Vargas e convocadas eleições que culminaram na vitória do general Eurico Gaspar Dutra que havia sido… o Ministro da Guerra da mesma ditadura derrubada. Assim exigia a nova fase do capitalismo com sua característica democracia de fachada.

Na sequência, assisti à eleição do ex-ditador Getúlio Vargas e seu suicídio por conta de feroz campanha contra, na prática, algumas de suas políticas nacionalistas (a criação da Petrobrás, por exemplo). Com a renúncia do presidente Jânio Quadros em 1961, assisto ao impedimento pelas Forças Armadas e conservadoras, da posse do vice-presidente eleito João Goulart e, por fim, ao acordo de transformação do país em parlamentarismo que viabilizou sua efetiva posse. Passados somente dois anos, a volta do presidencialismo em 1963, mediante plebiscito. Em seu governo, Goulart promoveu a desapropriação de terras localizadas às margens de rodovias, ferrovias e obras públicas, na perspectiva de uma reforma agrária objetivando melhor uso produtivo das terras em geral.

No desenrolar dos fatos em 1964, as Forças Armadas e conservadoras derrubam Goulart num golpe de estado e então ouvi o presidente do Senado, Auro de Moura Andrade, declarar “vaga a presidência da república”, quando o presidente João Goulart ainda estava em Porto Alegre , fugindo do golpe. Ou seja, democracia tudo bem, mas governo à esquerda não, assim exige o modelo capitalista ocidental. Melhor que seja uma ditadurazinha disfarçada…

Ao dito final da ditadura iniciada em 1964, veio a redemocratização parcial do país em 1985. Ainda se manteve, como instituída pela ditadura, a Polícia Militar como polícia civil e, depois da morte de Tancredo Neves, acaba por ser empossado José Sarney como presidente eleito indiretamente. Lembrando Dutra, José Sarney foi o último presidente da Arena, partido criado pela ditadura para manter-se no gerenciamento do país aplicando suas regras. Democracia ok, mas sem exageros era o que o capitalismo admitia então.

Em 1990 enfim, vi a eleição direta de Collor de Melo para presidente. Ele acabou renunciando em 1992 após a votação da Câmara a favor do seu impeachment. Em 2014, passados 22 anos, o vejo sendo inocentado, pelo STF, de todas as acusações que resultaram deram origem ao seu processo de impeachment.

Antes disso, vi o presidente Fernando Henrique Cardoso, eleito em 1994, propor a reeleição para ser, ele próprio, beneficiado por ela. Foi reeleito em 1998! Lembro-me apenas de uma medida de seu governo social democrata: a isenção de imposto de renda para dividendos das empresas, em 1996, significando que um trabalhador pagaria até 27,5% do salário em imposto de renda, mas o dono ou sócio passaria a pagar zero de imposto pelos lucros a ele transferidos pela empresa. Sem igual em outro país capitalista! Capitalismo social democrata da época é isso aí.

Depois na eleição seguinte, em 2002, vejo a Carta aos Brasileiros do PT em que se dizia, por exemplo, “O caminho da reforma tributária, que desonere a produção” e “Premissa dessa transição será naturalmente o respeito aos contratos e obrigações do país e, as recentes turbulências do mercado financeiro devem ser compreendidas nesse contexto de fragilidade do atual modelo e de clamor popular pela sua superação”. Algo assim como “oi pessoal de cima, não se preocupem”…

Em 2008 assisti o governo Lula renovar sem mais, a concessão da TV Globo por mais 15 anos, sem sequer abrir uma concorrência pública para exploração dessa concessão pública de radio e TV – como até o Reino Unido de Thatcher fez e faz… Capitalismo de esquerda tem essas coisas… Pratica a subserviência consentida.

Na crise dos anos 2012 e depois da reeleição da presidenta Dilma, acompanhei a sugestão de nomeação para o Ministério da Economia feita por Lula: seria o presidente do Bradesco Luiz Carlos Trabuco. Dilma resolveu nomear Joaquim Levy, economista conservador e diretor superintendente do Bradesco.

Depois do impeachment de Dilma, iniciativa de Janaína Paschoal e Helio Bicudo, em uma estranha associação, vi Michel Temer seu vice escolhido, promover a aprovação do teto de gastos do estado, algo como, “ao invés de fazer os mais ricos pagarem mais impostos, por exemplo, com a revogação da isenção imposto de renda de dividendos e lucros, faremos os pobres terem menos dinheiro do Estado”. Tudo isso além de outras reformas conservadoras e/ou neoliberais. Capitalismo em crise exige medidas severas…

E segue a farsa da “carga tributária enorme que atinge a todos”: JBS paga menos de 3% de imposto sobre sua receita, enquanto o pobre, que precisa gastar tudo que ganha, quando ganha, paga 18% de ICMS sobre seu consumo – e toda sua renda é igual ao consumo.

Finalmente, ou melhor, consequentemente, vivi o fato de Jair Bolsonaro ser eleito contra Fernando Haddad – após Lula não apoiar Ciro Gomes ao tempo em que as pesquisas o indicavam como o único vencedor de um segundo turno contra Bolsonaro e Ciro Gomes ir para Paris no segundo turno – e que defende o golpe de 1964 e a tortura como, por exemplo, no caso do torturador coronel Carlos Brilhante Ustra. Além de muitas outras propostas e atitudes neofascistas bastante conhecidas.

Houve também o capítulo Sergio Moro, juiz de primeira instância em indevida associação com vários promotores públicos, julgando, condenando e prendendo em 2017 – com sentença aprovada pelo TRF-4 da Região sul – um ex-presidente da República, caso de Lula, e com isso, sendo elevado a Ministro da Justiça de Bolsonaro. Mas agora, quatro anos depois, estou assistindo o STF anular esta sentença e todas as acusações (!) porque um juiz de primeira instância não poderia julgar um ex-presidente da República nos processos do triplex do Guarujá, do sítio de Atibaia e do Instituto Lula.

Finalmente, vivencio este período em que alguns médicos, um general ministro da saúde e “especialistas” defendem o uso de medicamentos – condenados por entidades mundiais de saúde – no combate a Covid-19 , com o total apoio do presidente Jair Bolsonaro que, além de não usar máscara em vários eventos públicos, inclusive na ONU, defende tais tratamentos, cujos resultados em muitos casos são as mortes dos pacientes. Sua estratégia colocada em prática foi a da morte por contágio, que pretendia atingir imunidade sem vacinas (“e daí? Todo mundo morre mesmo”…). Assim é a nossa democracia no capitalismo em fase neoliberal.

Essas são algumas lembranças minhas, o leitor (a) poderá acrescentar outras. Pergunto então: com meus 85 anos o que devo pensar e fazer como cidadão? E eu respondo: Cansei e decididamente quero uma mudança radical. Não me venham, pois, com esquemas tradicionais ou assemelhados para 2022. Tô fora. É isso.

Em Tempo. Tenho, salvo esquecimento, apenas uma boa lembrança de atitude diferente dessa farsa interminável. Quando do citado golpe contra a posse de Jango Goulart, o então governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola convenceu o então comandante do III Exército, lá sediado, a não concordar com o golpe. E apareceu armado com uma metralhadora junto ao general em uma foto nos jornais. Foi por conta disso que houve o acordo para a posse de Jango.[1]

Assim é…

*Lucio Gregori, engenheiro pela USP, foi secretário municipal de transportes no governo de Luiza Erundina.

 

Nota


[1] Agradeço a Rosimar Gonçalves, José Jairo Varoli e Mauro Zilbovicius pelos comentários e sugestões.

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