Por JEAN PIERRE CHAUVIN*
Desconfio que grande parte desta geração enxerga e utiliza a Inteligência artificial de maneira absolutista e acrítica, exatamente de acordo com o que o mercado recomenda e vende.
“A paralisia da imaginação completa as coações da burocracia, estas mesmas motivadas e justificadas por razões financeiras” (Henri Lefebvre, Posição: contra os tecnocratas).
Há vinte e poucos anos, era comum nos envaidecermos por sermos leitores vorazes de Dom Quixote e Grande Sertão: Veredas. Separadas por dois séculos e meio, ambas as narrativas não se deixavam enfeixar facilmente no gênero romance, mas isso em nada diminuía o sabor dos relatos e aventuras, combinadas ao repertório cultural e à linguagem moldável dos autores.
Cervantes parodiava as novelas de cavalaria; Guimarães Rosa enfileirava uma sucessão de “causos” sob a fala densa, volumosa e ininterrupta, feito um rio: curso, discurso. Riobaldo, rio baldo. Entre nós, impressionáveis leitores, talvez houvesse a sensação de pertencimento a algum grupo que ousava devorar palavra impressa, deixando para depois o acesso às contas de e-mail, o envio de mensagens SMS ou a participação em salas de bate-papo: ferramentas que devem soar anacrônicas e excessivamente formais, para quem nasceu de 2000 em diante.
Ignorávamos que eram os estertores da era analógica ou pré-digital. Não havia a incômoda sensação de atualizarmos, de modo ainda mais eficiente e perverso, a miséria social e a coerção individual descritas por George Orwell, em 1984. A diferença entre nós e Winston Smith é que, na distopia literária, o protagonista evitava a teletela pois a identificava como um severo mecanismo de vigilância e irradiação de falsas notícias; quanto a nós, seres híbridos (mezzo analógicos, mezzo digitais), desde o advento da internet, passou-se não só a consumir telas de variados preços, marcas e formatos, mas a fazer delas acessórios tão fundamentais quanto o molho de chaves e a carteira.
Quando parte da infra-existência repousa no consumo compulsório, a prometida funcionalidade dos gadgets deixa de ser o aspecto mais relevante. Smartphones, tablets e notebooks permitem que o consumidor ostente maior poder aquisitivo e amplie as formas de distinção socioeconômica. Gradativamente, a noção de cultura como cultivo da literatura e de outras artes, cedeu espaço para o imediatismo, contraparte da ansiedade. Não por acaso, o consumo de ansiolíticos e estabilizadores de humor aumentou sensivelmente, nesses vinte e poucos anos. Em ambientes os mais variados, comprimidos são ingeridos quase com a mesma naturalidade que se consomem balas ou chicletes.
Evidentemente, a relação com a palavra também mudou. Desde que a chamada Inteligência artificial passou a ser positivada pelas big techs, tanto a leitura quanto a escrita foram abaladas. As escolas e universidades brasileiras estão repletas de alunos empenhados; mas a proporção de estudantes-que-não-estudam tende a aumentar. Noutro dia, soube que uma aluna se gabava por ter obtido média elevada numa disciplina, sem ter perdido tempo a ler os textos recomendados pelo docente. A estudante contou com a Inteligência artificial para resumir o teor dos artigos e capítulos de livro, antes de fazer a atividade prevista.
Desconfio que grande parte desta geração enxerga e utiliza a Inteligência artificial de maneira absolutista e acrítica, exatamente de acordo com o que o mercado recomenda e vende. Pouco importa que milhões de profissionais percam seus empregos ou sejam gradativamente substituídos por aplicativos que pirateiam dados, imitam estilos de autores e artistas ou condensem quinze laudas em meia página.
De um lado, há poderosos grupos de extrema direita, sediados em São Paulo, a distribuir materiais que deturpam o ensino de história, desprezando a pesquisa séria realizada nas universidades; de outro, há uma proporção crescente de pré-adolescentes e jovens adultos dispostos a trocar a reflexão pelo automatismo.
Ora, a Inteligência artificial não cria nada: alimenta-se de cinco mil anos de arte, pensamento, cultura e história, veiculadas em bancos de dados na web. Jean-Michel Jarre, o músico francês que mais vendeu discos naquele país, desde o início de sua carreira em 1976, tornou-se um porta-voz dos “benefícios” da Inteligência artificial. Em recente entrevista[i] veiculada por um canal de streaming, o tecladista refutou os ataques à Inteligência Artificial, alegando que os músicos já copiavam ideias, uns dos outros, havia décadas.
O que o compositor esqueceu de admitir é que há grande diferença entre ser inspirado por outros artistas e transferir a faculdade de selecionar e estilizar músicas para um aplicativo. Aliás, é curioso perceber a quantas anda a criatividade das “suas” novas composições.
Voltemos à sala de aula.
Não demora muito, veremos se estabelecer uma geração orgulhosamente holográfica, apática e dispersa, incapaz de ler mais que duas páginas, ou de assistir a um vídeo que dure mais de dez segundos. Esses seres pouco terão de humanos: autocentrados e autorreferentes, agirão como clientes e serão cada vez menos tolerantes às adversidades e diferenças (a despeito do discurso politicamente correto e supostamente inclusivo); incapazes de mirar o que não sejam elogios; incompetentes em decifrar mensagens (ainda que simples), por terem perdido a habilidade primordial da escuta (do outro) e da leitura (alheia).
O conhecimento implica admitir o tanto que nos falta; pressupõe curiosidade, raciocínio, imaginação, discernimento etc. Quanto os usuários e apologetas da Inteligência artificial estão dispostos a subtrair de si mesmos?
*Jean Pierre Chauvin é professor de Cultura e literatura brasileira na Escola de Comunicação e Artes da USP. Autor, entre outros livros de Da arte de (se) orientar [para pós-modernos e geração Z] (Ponta de Lança).
Nota
[i] Jean Michel Jarre. “L’IA, une opportunité pour la Culture”. WAICF (10.2.2024). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=UQlDR3yRdps
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