a terra é redonda

A grande ambição

Por MARCO MONDAINI*

Considerações sobre o filme dirigido por Andrea Segre

1.

Entre os anos de 1972 e 1984, o secretário-geral do Partido Comunista Italiano (PCI), Enrico Berlinguer, foi para muitos que constituíam a tradição antifascista, dentro e fora da Itália, um ponto de referência fundamental. Isso, em uma conjuntura política na qual o país esteve perto de ter a sua democracia desestabilizada em função do crescimento das ações terroristas de extrema direita e extrema esquerda que, em muitos dos casos, contavam com algum tipo de envolvimento de serviços secretos nacionais e internacionais, bem como de organizações mafiosas e lojas maçônicas.

Então, pela primeira vez desde o fim do vintênio fascista e da Proclamação da República italiana, em 2 de junho de 1946, a pátria de Garibaldi via-se envolvida por um clima político em que as bombas procuravam substituir as lutas institucionais e de massas travadas, principalmente, entre os três grandes partidos responsáveis pela derrota do regime mussoliniano, na Resistência: a Democracia Cristã, o Partido Comunista e o Partido Socialista.

O filme A grande ambição, dirigido por Andrea Segre e estrelado pelo ator italiano Elio Germano, no papel de Enrico Berlinguer – que não tenho a menor pretensão de analisar sob o aspecto propriamente cinematográfico – procura retratar um pouco da história dos “anos de chumbo” do ponto de vista de quem tinha que enfrentar o duplo desafio de lutar contra a possibilidade concreta de esgarçamento do tecido democrático italiano, ao mesmo tempo em que percebia a necessidade de se distanciar do socialismo autoritário existente na União Soviética e nos demais países do Leste Europeu.

Duplo desafio este a ser enfrentado em meio às idas e vindas da Guerra Fria na Europa e, também, potencializado pela pretensão de fazer com que os comunistas italianos passassem a fazer parte da esfera governativa, como integrante legítimo das forças responsáveis por terem salvado a Itália da barbárie fascista e da invasão nazista após a deposição de Mussolini, em 25 de julho de 1943.

Como pode ser visto, as tarefas assumidas por Enrico Berlinguer tinham grande magnitude e, como tal, só poderiam ser enfrentadas tendo em mente uma “grande ambição”, definida por Antonio Gramsci como uma luta “indissociável do bem coletivo” – uma noção que, infelizmente, com a hegemonia neoliberal, foi sendo engolida pelas “pequenas ambições”, de caráter particular.

2.

O golpe de Estado que derrubou o governo da Unidade Popular no Chile, em 11 de setembro de 1973, impactou profundamente o secretário-geral do PCI eleito no XIII Congresso Nacional do partido, realizado em março de 1972 na cidade de Milão, pois Enrico Berlinguer sempre observara com particular interesse a experiência liderada por Salvador Allende de construção de uma sociedade socialista por intermédio de mecanismos politicamente democráticos

Para Enrico Berlinguer, o trágico encerramento da experiência socialista democrática chilena teve o mesmo impacto que a derrota, em 1949, do Partido Comunista Grego na guerra civil iniciada após a libertação de Atenas em 1944, para Palmiro Togliatti. À época, o líder máximo do PCI, entre 1943 e 1964, afirmou em alto e bom som: “não façamos como os gregos!”. Em fins de 1973, foi a vez de Enrico Berlinguer afirmar para que todos ouvissem: “não façamos como os chilenos!”.

Andrea Segre conseguiu transplantar para a tela do cinema a inquietude que tomou conta de Enrico Berlinguer após as cenas do bombardeio do Palácio de La Moneda, levando-o à urgente redação de um artigo publicado na revista Rinascita em três partes (28 de setembro, 5 e 9 de outubro), com o título de “Reflexões sobre a Itália após os fatos do Chile”.

No longo artigo, o secretário-geral do PCI afirma que a experiência chilena só faz reforçar a correção da estratégia adotada pelo PCI togliattiano, no pós-Segunda Guerra Mundial, de “evitar que se chegue a uma coligação estável e orgânica entre o centro e a direita, a uma ampla frente de tipo clerical-fascista”, por intermédio da tentativa de “conseguir deslocar as forças sociais e políticas que se situam no centro até posições coerentemente democráticas”.[i]

Partindo de tal premissa, Berlinguer chega àquele que foi o pano de fundo de A grande ambição, a saber, a defesa de “um novo grande compromisso históricoentre as forças que reúnem e representam a grande maioria do povo italiano”: os comunistas, os socialistas e os católicos.[ii]

No período em que vigorou o compromisso histórico, o PCI teve o seu eleitorado aumentado em 7,86 %, um crescimento espetacular de algo em torno de 1/4 do eleitorado italiano para aproximadamente 1/3 dos votantes – o que leva a crer que as posições assumidas pelo partido sob a direção de Enrico Berlinguer atraíram setores da sociedade italiana que não eram propriamente comunistas, mas que passaram a observar nas propostas do partido um horizonte de renovação da política tradicional italiana, de virada na sua direção.

Assim, tendo como base o compromisso histórico, o Partido Comunista Italiano passou de 26,57% nas eleições regionais de 1970 para 32,05% nas eleições regionais de 1975; e de 27,21% nas eleições nacionais de 1972 para 34,4% nas eleições nacionais de 1976. Um salto que passou a alimentar a expectativa de entrada dos comunistas na composição de uma maioria de governo.

Em meio à confiança despertada em setores moderados católicos da população italiana de que o PCI teria deixado para trás o seu anticlericalismo e o seu maximalismo e, também, sob a desconfiança de partes das suas bases militantes, que viam na proposta de aliança com a Democracia Cristã um abandono das tradições revolucionárias do partido de Antonio Gramsci, Enrico Berlinguer e seu núcleo dirigente depositaram todas as suas fichas na aproximação com o ex-primeiro ministro da DC, Aldo Moro, como o caminho a ser seguido para a construção de um governo composto por comunistas, socialistas e católicos – um governo suficientemente capaz de implementar as reformas estruturais necessárias ao país.

A vitória do espírito laico de comunistas e socialistas contra o confessionalismo moralista da liderança exercida pelo primeiro-ministro democrata-cristão Amintore Fanfani no referendo sobre a manutenção, ou não, da lei sobre o divórcio, recém aprovada pelo parlamento italiano, fez crescer em muito as esperanças de Enrico Berlinguer de que a Itália estava pronta para um novo bloco de poder.

Entretanto, um trágico episódio viria a mudar completamente tal expectativa, fazendo com que a política do compromisso histórico naufragasse por falta de interlocução no campo democrata-cristão.

Em fins do inverno italiano de 1978, os terroristas das Brigadas Vermelhas sequestraram Aldo Moro, assassinando os membros da sua escolta. Depois de 55 dias mantido em cativeiro e sob a recusa de negociação com os sequestradores pelo governo italiano, o corpo de Aldo Moro é encontrado crivado de balas no porta-malas de uma Fiat na Via Caetani, a meio caminho entre as sedes do PCI, na Via delle Boteghe Oscure, e da DC, na Piazza del Gesù.

O recado havia sido dado de maneira clara pelas Brigadas Vermelhas, com o apoio e conivência de organizações de extrema-direita e de uma rede de serviços secretos nacionais e internacionais: os comunistas italianos não poderiam compor uma maioria de governo.

A violência política da “estratégia da tensão” derrotara o compromisso histórico do PCI berlingueriano.

3.

Ao mesmo tempo em que precisou enfrentar os dilemas e desafios, dentro e fora do partido, que envolviam a política do compromisso histórico no plano nacional, Enrico Berlinguer observou a urgência de distanciar o Partido Comunista Italiano da esfera de influência da União Soviética, do PCUS e dos países e partidos comunistas satélites do Leste Europeu.

Dois episódios retratados no filme dirigido por Andrea Segre demonstram a proximidade de um ponto de ruptura que acabou não se concretizando até a dissolução do PCI, em 1991: o atentado levado a cabo contra Enrico Berlinguer e a sua comitiva por ocasião de uma visita a Sofia, nos inícios de outubro de 1973; e o discurso pronunciado por Enrico Berlinguer em Moscou, quando das comemorações dos 60 anos da Revolução de Outubro de 1917.

Exageros à parte, ambos episódios evidenciaram a insatisfação recíproca existente entre a Nomenklatura dos países soviéticos e o grupo dirigente do PCI pós-togliattiano, após a severa reprovação deste último à forma como a Primavera de Praga fora reprimida em 1968, com a invasão da Tchecoslováquia pelos tanques do Pacto de Varsóvia – o “grave dissenso” foi a expressão utilizada oficialmente pelo núcleo dirigente do PCI à época.

Uma insatisfação recíproca que só fazia crescer de dimensões à medida em que os comunistas italianos, espanhóis e franceses aproximavam-se em torno da ideia da necessidade de buscas independentes por vias nacionais ao socialismo, que avançou em meados dos anos 1970 na direção de uma via europeia ao socialismo, batizada de eurocomunismo.

No primeiro episódio acima citado, depois de quase 20 anos sendo tratado como um simples acidente de trânsito, revelou-se que, de fato, houve um atentado político com o propósito de matar Enrico Berlinguer, que acabou escapando com ferimentos leves, mas que resultou na morte do seu intérprete, que acompanhou de perto as fortíssimas divergências explicitadas no decorrer do colóquio entre o secretário-geral do PCI e o secretário-geral do PC búlgaro, Todor Zhivkov.

No segundo episódio, talvez o mais emblemático da audácia renovadora de Enrico Berlinguer à frente do PC italiano, é pronunciada a expressão que, desde então, soou como uma heresia nos ambientes de esquerda autoritários – isso, não numa reunião de petit comité, mas diante do secretário-geral do Partido Comunista da União Soviética, Leonid Brejnev, e de todas as principais lideranças do chamado movimento comunista internacional:

“A experiência realizada nos levou à conclusão – assim como aconteceu com outros partidos comunistas da Europa capitalista – de que a democracia é hoje não apenas o terreno no qual o adversário de classe é forçado a retroceder, mas é também o valor historicamente universal sobre o qual se deve fundar uma original sociedade socialista”.[iii]

Mesmo não tendo sido este o trecho do discurso de Enrico Berlinguer escolhido por Andrea Segre para retratar o ponto mais elevado da sua dissidência com os soviéticos em A grande ambição,[iv] as imagens de um magnífico Elio Germano, pequeno e franzino, circundado por uma massa de dirigentes comunistas em larga medida já esclerosados politicamente, conseguiu demonstrar a estatura política de um líder que, para este que escreve o presente texto, foi um dos últimos no campo comunista que tinha algo de realmente novo a dizer.

*Marco Mondaini, historiador, é professor titular do Departamento de Serviço Social da UFPE e apresentador do programa Trilhas da Democracia. Autor, entre outros livros, de A invenção da democracia como valor universal (Alameda) [https://amzn.to/3KCQcZt]

Referência


A grande ambição (La grande ambizione)
Itália, 2024, 123 minutos
Direção: Andrea Segre
Roteiro: Andrea Segre, Marco Pettenello
Fotografia: Benoît Dervaux
Elenco: Elio Germano, Stefano Abbati, Francesco Acquaroli, Paolo Calabresi.

Notas


[i] BERLINGUER, Enrico. Democracia, valor universal (seleção, tradução, introdução e notas de Marco Mondaini). Brasília/Rio de Janeiro: Fundação Astrojildo Pereira/Contraponto, 2009, p.83-4.

[ii] Ibid. p.84.

[iii] Ibid. p.116.

[iv] Eis o trecho do discurso de Enrico Berlinguer escolhido pelo diretor do filme: “Eis por que a nossa luta unitária – que procura constantemente o entendimento com outras forças de inspiração socialista e cristã na Itália e na Europa Ocidental – está voltada para realizar uma sociedade nova, socialista, que garanta todas as liberdades pessoais e coletivas, civis e religiosas, o caráter não ideológico do Estado, a possibilidade da existência de diversos partidos, o pluralismo na vida social, cultural e ideal” (ibid).


CONTRIBUA

A grande ambição – 19/07/2025 – 1/1
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