A herança perversa do colonialismo racista

Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

O tráfico de escravos africanos para o continente americano, organizado, sobretudo por portugueses e brasileiros durante mais de três séculos e meio, foi a mais vasta e duradoura migração forçada de toda a História

Por Fábio Konder Comparato*

Segundo estudo divulgado em outubro deste ano pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, a crônica desigualdade social que marcou todo o curso de nossa história, desde que Pedro Álvares Cabral aqui aportou no dealbar do século XVI, aumentou em 2018. O rendimento médio mensal do 1% mais rico do país foi quase 34 vezes maior do que o da metade mais pobre de toda nossa população.

Não é difícil perceber que tais dados escandalosos representam o fruto podre do capitalismo excludente e do racismo genocida, implantados aqui desde o início do processo colonizador.

Estima-se que em 1500, quando os portugueses aqui chegaram, a população indígena em nosso território era cerca de 3 a 4 milhões de pessoas. Durante o período colonial, como reportam os historiadores, foram exterminados em média 1 milhão de índios em cada século. Ora, tal genocídio corre o sério risco de ser retomado com o atual desgoverno federal; o que levou o Coletivo de Advocacia em Direitos Humanos – CADHu e a Comissão Dom Paulo Evaristo Arns de Defesa dos Direitos Humanos, da qual tenho a honra de fazer parte – a encaminhar à Procuradora do Tribunal Penal Internacional uma Comunicação,pela qual requerem a abertura de um procedimento preliminar sobre a incitação ao genocídio da população indígena, por parte do atual Chefe do Poder Executivo federal.

Concomitantemente, o tráfico de escravos africanos para o continente americano, organizado, sobretudo por portugueses e brasileiros durante mais de três séculos e meio, foi a mais vasta e duradoura migração forçada de toda a História. Hoje, sabe-se com precisão que doze milhões e meio de escravos foram transportados da África para as Américas entre 1500 e 1867, sendo que desse total menos de onze milhões sobreviveram à travessia do Atlântico. Quase metade dessa vasta população cativa foi desembarcada em território brasileiro, sendo que 5% faleciam durante o processo de venda e transporte para os locais de trabalho; e outros 15% nos três primeiros anos de cativeiro em nosso território.

O tráfico escravagista para o Brasil foi, por quase três séculos, a nossa mais lucrativa atividade comercial e os traficantes de escravos formaram, durante todo esse tempo, a camada mais abastada de nossa população. Aliás, os nossos fazendeiros sempre preferiram comprar escravos trazidos por traficantes, do que utilizar os que já nasciam aqui, pois a expectativa de vida de um cativo nascido no Brasil, como constatado em 1872, era de apenas 18,3 anos, ao passo que o da média da população em geral chegava a 27,4 anos.

Em 13 de maio de 1888, fomos o último país das Américas a abolir a escravidão, e o fizemos pacificamente, em razão de nosso “caráter cordial” como disseram alguns; mas também sem pagar um centavo de indenização aos alforriados. Os senhores de escravos, entre os quais sempre estiveram várias congregações da Igreja Católica, não se sentiam minimamente responsáveis pelas consequências do crime nefando, praticado durante quase quatro séculos.

A história da escravidão de africanos e afrodescendentes no Brasil agora recomeça a ser relatada por Laurentino Gomes, em sua monumental obra Escravidão (GloboLivros, 2019) cujo primeiro dos três volumes já foi publicado. Alimento a esperança de que essa história execrável venha a ser uma parte importante do currículo didático de nosso ensino fundamental.

*Fábio Konder Comparato é Professor Emérito da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Doutor Honoris Causa da Universidade de Coimbra.

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Érico Andrade Jorge Luiz Souto Maior Antônio Sales Rios Neto Luiz Roberto Alves Henri Acselrad Eleonora Albano Boaventura de Sousa Santos Marcelo Guimarães Lima Denilson Cordeiro Juarez Guimarães José Raimundo Trindade Luis Felipe Miguel Eliziário Andrade Renato Dagnino Alexandre de Lima Castro Tranjan José Costa Júnior Salem Nasser Marcus Ianoni Heraldo Campos Eugênio Bucci Eleutério F. S. Prado Bruno Fabricio Alcebino da Silva Leonardo Boff Carla Teixeira Luiz Eduardo Soares Walnice Nogueira Galvão Bento Prado Jr. Paulo Nogueira Batista Jr Armando Boito José Micaelson Lacerda Morais Fernão Pessoa Ramos Ricardo Fabbrini Eugênio Trivinho Daniel Brazil Antonio Martins Yuri Martins-Fontes Daniel Costa Plínio de Arruda Sampaio Jr. Afrânio Catani Gilberto Lopes Michael Roberts João Feres Júnior Marcelo Módolo Andrés del Río Lorenzo Vitral Samuel Kilsztajn Sandra Bitencourt Tadeu Valadares Claudio Katz Atilio A. Boron Jorge Branco Rubens Pinto Lyra Caio Bugiato Lincoln Secco Chico Alencar Paulo Sérgio Pinheiro Henry Burnett Celso Frederico Airton Paschoa Chico Whitaker Flávio R. Kothe Elias Jabbour Ronald León Núñez Berenice Bento Maria Rita Kehl Valerio Arcary José Luís Fiori Luiz Renato Martins Igor Felippe Santos Milton Pinheiro Ricardo Musse Ricardo Antunes Luiz Marques Antonino Infranca Ladislau Dowbor André Márcio Neves Soares Osvaldo Coggiola Andrew Korybko Kátia Gerab Baggio Sergio Amadeu da Silveira Jean Marc Von Der Weid Ricardo Abramovay Vinício Carrilho Martinez Marilena Chauí Luiz Werneck Vianna Annateresa Fabris Luiz Bernardo Pericás Anselm Jappe Marcos Aurélio da Silva Lucas Fiaschetti Estevez Vladimir Safatle Valerio Arcary Francisco de Oliveira Barros Júnior Carlos Tautz Alysson Leandro Mascaro José Machado Moita Neto Tales Ab'Sáber Fábio Konder Comparato Mário Maestri André Singer Eduardo Borges Gilberto Maringoni Michael Löwy Luís Fernando Vitagliano José Geraldo Couto Gerson Almeida Celso Favaretto Priscila Figueiredo Manuel Domingos Neto Rafael R. Ioris Flávio Aguiar Fernando Nogueira da Costa João Carlos Salles Alexandre Aragão de Albuquerque Leonardo Avritzer Bruno Machado Ronald Rocha Mariarosaria Fabris Dennis Oliveira Vanderlei Tenório Tarso Genro Rodrigo de Faria Otaviano Helene Slavoj Žižek José Dirceu João Adolfo Hansen Francisco Fernandes Ladeira Remy José Fontana Paulo Fernandes Silveira Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Jean Pierre Chauvin Paulo Martins Marilia Pacheco Fiorillo Matheus Silveira de Souza Paulo Capel Narvai Marjorie C. Marona Luiz Carlos Bresser-Pereira Ari Marcelo Solon Leonardo Sacramento Dênis de Moraes Manchetômetro Luciano Nascimento Thomas Piketty Michel Goulart da Silva João Lanari Bo Bernardo Ricupero Leda Maria Paulani Ronaldo Tadeu de Souza João Paulo Ayub Fonseca Liszt Vieira Daniel Afonso da Silva João Carlos Loebens Marcos Silva Gabriel Cohn Everaldo de Oliveira Andrade Julian Rodrigues Alexandre de Freitas Barbosa João Sette Whitaker Ferreira Benicio Viero Schmidt Francisco Pereira de Farias

NOVAS PUBLICAÇÕES