A ideologia da austeridade

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Por RENATO FRANCISCO DOS SANTOS PAULA*

Por que, quando há corrupção, quem sempre paga a conta é a população mais vulnerável?

Nos últimos anos, o Brasil vem se equilibrando em uma corda bamba entre dois modelos de Estado: o que protege e o que cobra. De um lado, o Estado social, que garante direitos, assegura renda mínima e promove a cidadania; de outro, o Estado fiscal, que busca conter gastos, reduzir déficits e, muitas vezes, impõe cortes que atingem diretamente os mais vulneráveis. O recente afastamento do presidente do INSS, Alessandro Stefanutto, em meio à Operação Sem Desconto da Polícia Federal, trouxe mais elementos para essa tensão.

Corrupção como pretexto

Fraudes envolvendo o INSS não são novidade no noticiário brasileiro. A mais recente, revelada pela Operação Sem Desconto, expôs um esquema de cobranças indevidas que somam até R$ 8 bilhões, retirados diretamente dos bolsos de aposentados e pensionistas em todo o país. A ação derrubou o presidente do instituto, Alessandro Stefanutto, e escancarou as fragilidades nos mecanismos de controle dos benefícios previdenciários. Mas o episódio levanta uma questão maior: por que, quando há corrupção, quem sempre paga a conta é a população mais vulnerável?

A operação conjunta da Polícia Federal e da Controladoria-Geral da União (CGU) demonstrou que quase 98% das pessoas abordadas na investigação não autorizaram os descontos nos contracheques. O sistema operava por meio de convênios com associações que ofereciam planos de saúde ou auxílio-funeral, mas realizavam descontos sem autorização dos beneficiários. Embora os desvios tenham começado ainda no governo anterior, o escândalo não demorou a alimentar narrativas que pedem mais controle, mais contenção, mais cortes e menos direitos.

Casos como esse frequentemente viram combustível para justificar pacotes de austeridade. É um padrão: o desvio ocorre, os culpados (quando identificados) são punidos, mas as respostas do Estado (hegemonizado pela elite dominante) se voltam contra os próprios beneficiários — com aumento da burocracia, revisão de concessões, paralisação de benefícios e endurecimento de regras. Em vez de fortalecer a fiscalização e combater os verdadeiros responsáveis, o que se vê é o uso da crise para reduzir o papel do Estado na garantia de direitos sociais: vítimas e algozes são tratados como equivalentes.

A história não perdoa o esquecimento. Desde a década de 1990, quando o INSS foi oficialmente criado, fraudes se sucedem em ciclos que escandalizam o país. Do caso Jorgina de Freitas, com bilhões desviados por meio de processos judiciais forjados, até esquemas como os dos “mortos-vivos”, “idosos de aluguel” e falsificação de atestados, a lista é extensa. Só em 2025, ao menos 10 operações da Polícia Federal miraram irregularidades no instituto, envolvendo desde servidores públicos até empresários e advogados.

Em Roraima, outra operação recente revelou fraudes no Benefício de Prestação Continuada (BPC) voltado a idosos venezuelanos. Os criminosos falsificavam documentos para garantir o benefício e, em seguida, retornavam ao país de origem, deixando o rastro do golpe nos cofres públicos. A mesma lógica se repete: vulnerabilidades no sistema são exploradas, escândalos vêm à tona, e as respostas recaem sobre o endurecimento de políticas públicas — atingindo justamente aqueles que mais precisam delas.

Por trás da indignação seletiva com a corrupção, está uma engenharia política que transforma o combate à fraude em justificativa para encolher o Estado. É nesse movimento que a narrativa do “combate ao desperdício” se converte em corte de direitos, congelamento de recursos e restrições no acesso a benefícios sociais. O foco se desloca: sai da responsabilização dos fraudadores e entra na contenção de gastos — como se a raiz do problema estivesse na existência dos programas e não na má índole daqueles que querem lucrar com os programas sociais.

Enquanto isso, aposentados e pessoas em situação de vulnerabilidade continuam sendo os mais afetados. A corrupção, que deveria ser motivo de fortalecimento das instituições de controle e ampliação da transparência, vira argumento para políticas regressivas. E assim, o direito deixa de ser garantia para se tornar privilégio — cada vez mais restrito, cada vez mais condicionado, cada vez mais sob suspeita.

Uma outra maneira de intrujar os pobres e desvirtuar programas sociais é conhecida a tempos. Beneficiários de políticas redistributivas, sejam previdenciárias ou assistenciais, são assediados pelos agentes da financeirização bancária com a oferta de empréstimos consignados descontados do valor de seus benefícios. O Estado é o avalista dessa relação, que ao final, faz com que um direito social se transforme em lucro para os agentes financeiros privados.

Desses mecanismos emergem justificativas que se apresentam como éticas para endurecer regras e reduzir benefícios: “é preciso economizar”, “coibir fraudes”, “melhorar a focalização”. Mas o pano de fundo é o avanço da lógica do Estado fiscal, que coloca o equilíbrio orçamentário acima da garantia de direitos sociais. No caso dos benefícios socioassistenciais, esse raciocínio contraria a própria legislação da área que afirma que a Política de Assistência Social tem como princípio a “supremacia do atendimento às necessidades sociais sobre as exigências de rentabilidade econômica” (Inciso I do Art. 4º. da Lei 8.742/93).

A austeridade é uma ideologia

A lógica do Estado fiscal está fundamentada na ideologia da austeridade, amplamente difundida no discurso político contemporâneo como solução para o suposto excesso de gastos públicos. Essa narrativa, frequentemente reproduzida pela mídia e economistas neoliberais, compara o orçamento estatal ao doméstico, defendendo que o Estado, assim como uma família, deve evitar déficits e manter o equilíbrio das contas. Tal analogia, embora didática, negligencia a complexidade da economia estatal, ignorando sua capacidade de emissão e decisão monetária, função redistributiva e mecanismos próprios de arrecadação.

A ideologia da austeridade opera com base em vários pressupostos, dos quais dois merecem destaque. O primeiro, de origem liberal clássica, sustenta que o mercado é o melhor alocador de recursos, devendo funcionar sem interferência estatal. Essa crença naturaliza o mercado como entidade autorreguladora, o que revela sua natureza mistificada e ideológica. O segundo relaciona o gasto público ao aumento dos juros, sob a alegação de que o Estado compete com o setor privado pelos mesmos recursos, elevando o custo do crédito. A consequência dessa visão é o aprisionamento do Estado à confiança dos investidores e aos humores do mercado financeiro.

A austeridade, portanto, não é uma técnica neutra, mas uma estratégia de contenção de direitos e disciplinamento social. Segundo Blyth (2013), “trata-se de uma deflação voluntária que visa restabelecer a competitividade por meio da compressão de salários, preços e despesas públicas”. Na prática, os cortes recaem prioritariamente sobre políticas sociais, vistas como improdutivas por setores neoliberais, enquanto áreas como o setor financeiro e o complexo industrial-militar seguem privilegiadas.

Esse cenário é intensificado pela financeirização da economia global, na qual o Capital especulativo assume centralidade nas decisões políticas e econômicas. Em 2024, os cinco maiores bancos internacionais apresentaram crescimento expressivo de lucros, especialmente por meio de operações cambiais e derivativos, ao mesmo tempo em que os gastos militares globais aumentaram 7,4% e chegaram a um recorde de US$ 2.46 trilhões (R$ 14.21 trilhões) em 2024, o que revela a bizarra e perversa associação entre exploração financeira e criminalização da pobreza.

No Brasil, a ideologia da austeridade atingiu seu ponto máximo com a Emenda Constitucional nº 95, que congelou os investimentos públicos por duas décadas, comprometendo profundamente as políticas de desenvolvimento, em especial as políticas sociais. Todavia, existem pontos específicos – senão o seu pano de fundo geral – na Reforma Tributária do atual governo que não superam os custos sociais da EC 95. Permaneceu na “reforma” a lógica que vincula rendimentos financeiros a criminalização da pobreza sob a ideologia da austeridade exatamente como foi revelado por Clara Mattei (2022) quando afirma que a austeridade preserva a ordem econômica e impõe disciplina social ao restringir alternativas de subsistência fora do mercado. Trata-se, assim, de um projeto político que limita resistências e esvazia o papel redistributivo do Estado.

A contenção de gastos sociais, longe de estimular o crescimento, aprofunda crises, conforme alerta Blyth (2017): “cortar em tempos de recessão agrava os efeitos da própria recessão”. A austeridade impõe ao Estado uma contradição: ao mesmo tempo em que protege os interesses do capital, fragiliza os direitos sociais e políticas universais.

Rossi, Dweck e Terra (2018), afirmam que a austeridade não é inevitável, mas uma escolha política que deve ser questionada. Superá-la exige mobilização, fortalecimento da participação social e compromisso com um projeto de desenvolvimento orientado à justiça social.

A lógica reversa

Programas como o Bolsa Família e o BPC são pilares do sistema de proteção social brasileira no que diz respeito a segurança de renda afiançada na Constituição Federal de 1988 e na Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Garantem renda para a subsistência fundamental, movimentam a economia local e reduzem desigualdades históricas. Ainda assim, estão na mira da austeridade.

Em 2024, o governo anunciou mudanças nas regras do BPC, exigindo cadastros biométricos e cruzamentos de dados mais rigorosos. O argumento oficial é o de sempre: “evitar fraudes”.

Embora o presidente Lula tenha vetado pontos mais agressivos da Lei (como a exclusão de pessoas com deficiência leve), o movimento revela a pressão para adaptar a proteção social não-contributiva à lógica fiscal.

Além disso, o governo estuda propostas de alteração na estrutura institucional-administrativa do BPC, como por exemplo, a criação de uma secretaria nacional exclusiva para a gestão do benefício e a retirada de seus recursos do Fundo Nacional de Assistência Social (FNAS), seu atual instrumento de gestão orçamentária, o que em tese pode indicar um maior controle por parte da área econômica do governo, afastando o BPC das estruturas institucionais do Sistema Único da Assistência Social (SUAS) e caracterizando-o como uma “submodalidade” previdenciária e não um direito socioassistencial como prevê a Lei vigente, fazendo com que retornemos ao modelo de proteção social vigente na Era Vargas.

Ao longo dos últimos vinte anos, o BPC vem sofrendo inúmeras alterações em sua forma de gestão e oferta, de um lado pressionadas pelas necessidades sociais que se agravam e fazem com que o Estado tenha que incorporar dimensões da proteção não contributiva ignorada em outras épocas e, de outro, o crescimento da judicialização na concessão em virtude do conflito entre a rigidez dos critérios e a sobrevivência efetiva da população pobre idosa e com deficiência. Mas o que preocupa mesmo aqueles que desacreditam o Estado Social é a vinculação do benefício ao salário-mínimo.

O pano de fundo é, novamente, moral e não técnico, pois a sustentação ideológica dos ataques tem como pano de fundo a ideia de que benefícios vinculados ao salário-mínimo, sem que tenham sido conquistados por meio de contribuição (compulsória ou voluntária) advindas do mundo do trabalho ou de outras formas de geração de renda, não só causam déficits aos cofres públicos como degradam o indivíduo e a sociedade por induzirem a “vadiagem” e arrefecerem a oferta de força de trabalho.

A linha do tempo legislativa do BPC mostra um processo gradual de regulamentação, ampliação e aprimoramento das regras que evidenciam a constante tensão entre a necessidade social e seu anátema: o discurso da insustentabilidade financeira dos direitos sociais por parte do Estado Fiscal.

A Constituição de 1988 lançou as bases do benefício, e, cinco anos depois, a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS) detalhou sua operacionalização. A partir de 1995, com o Decreto 1.744, e posteriormente com outras normas, como os decretos de 2007 e 2011 e portarias conjuntas entre os ministérios e o INSS, novas diretrizes foram sendo incorporadas, sempre com foco na “melhoria da gestão e aumento do controle”. Os marcos mais recentes, como a Portaria Conjunta MDS/INSS nº 28 de 2024 e a Lei nº 15.077 do mesmo ano, introduziram exigências como a obrigatoriedade de biometria, atualização cadastral a cada 24 meses e verificação de inconsistências no processo de análise.

Mudanças legislativas e administrativas no BPC

AnoInstrumento LegalO que mudou
1988Constituição FederalGarante um salário-mínimo para idosos e pessoas com deficiência em situação de vulnerabilidade
1993Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS)Regulamento o direito ao BPC previsto na Constituição
1995Decreto 1.744Detalha as regras para concessão do benefício
1996 Início efetivo das concessões do BPC
2003Estatuto do IdosoReforça o direito dos idosos ao BPC
2004Decreto 5.096Cria o Departamento de Benefícios Assistenciais no MDS
2007Decreto 6.214Atualiza as regras do BPC
2009Portaria MDS/INSS n. 1Define critérios para avaliar a deficiência e o grau de incapacidade
2011Decreto 7.617Altera o regulamento anterior do benefício
2021Portaria MC/MPT/INSS n. 14Estabelece novos critérios para bloqueios e avaliação de renda
2024Portaria MDS/INSS n. 28Determina averiguações em caso de alteração cadastral com inconsistências
2024Lei 15.077Torna obrigatória a avaliação periódica, biometria e atualização cadastral a cada 2 anos.

Apesar dessas constantes alterações legais e administrativas, os dados mostram que o número de pessoas beneficiadas continuou crescendo. Um estudo da Fundação Joaquim Nabuco, conduzido pelos pesquisadores Sergio Kelner Silveira e Carolina Beltrão de Medeiros, indica que, entre janeiro de 2004 e dezembro de 2023, houve um aumento contínuo e ininterrupto no total de beneficiários. Embora o crescimento do número de idosos contemplados tenha sido mais moderado em comparação com o total geral, o padrão é de expansão estável. O mesmo se observa em relação às pessoas com deficiência, cujo crescimento acompanha esse ritmo constante.

Fonte: Nota Técnica 25: BPC – Panorama Geral, Evolução e Soluções Possíveis, Fundação Joaquim Nabuco, 2024.

Esse crescimento contínuo levanta um ponto de interrogação importante: as mudanças recentes, mais restritivas, e aquelas ainda em debate no governo, serão capazes de conter esse avanço?

Há um desejo explícito de setores do Estado fiscal, empresariado e da mídia hegemônica em promover um enxugamento dos programas sociais, sob o argumento da necessidade de contenção de gastos públicos. No entanto, os dados demonstram que o BPC tem cumprido com efetividade seu papel constitucional de garantir o mínimo de dignidade a parcelas vulneráveis da população e que uma alocação responsável de recursos, no processo das disputas pelo fundo público, torna o BPC financeiramente sustentável.

Dados que desmontam o mito

O mesmo movimento se observa com relação ao Programa Bolsa Família (PBF). O incomodo, porém, não é com o valor dos benefícios, mas sim à escala e ao alcance do programa, que se tornaram ainda mais evidentes e socialmente valorizados durante a pandemia de Covid-19. Desde então, o PBF tem sido alvo de recadastramentos em massa, bloqueios e análises de “incompatibilidade” de renda, o que tem ocupado tempo e estrutura dos gestores e gerado repercussão midiática constante.

As evidências empíricas e os estudos científicos desmontam o mito de que o Bolsa Família seja um programa caro, ineficiente ou sujeito a fraudes generalizadas. O Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) aponta que, entre 2003 e 2018, o PBF foi responsável por uma redução de até 25% na extrema pobreza no país. É considerado o programa de maior impacto no combate à fome e à miséria da história recente brasileira.

Fonte: Ipea – Os efeitos do Programa Bolsa Família sobre a pobreza e a desigualdade: um balanço dos primeiros quinze anos

Além disso, os dados revelam que mais de 70% dos recursos do Bolsa Família são destinados aos 20% mais pobres da população, evidenciando o caráter focalizado e eficiente do programa naquilo a que se propõe.  

Fonte: Ipea – Os efeitos do Programa Bolsa Família sobre a pobreza e a desigualdade: um balanço dos primeiros quinze anos

Um levantamento feito pelo IBASE em 2007 já mostrava que 87% dos beneficiários utilizavam o valor recebido para comprar alimentos, sendo que mais de 70% relataram aumento na quantidade e na variedade dos produtos consumidos. Mesmo com parte dos gastos indo para produtos ultraprocessados, o programa teve papel decisivo no combate à insegurança alimentar.

Outro efeito importante foi a queda da mortalidade infantil. Entre 2006 e 2015, houve uma redução de 16% nas mortes de crianças entre 1 e 4 anos. Essa redução foi ainda mais significativa entre filhos de mães negras (26%) e nos municípios mais pobres (28%). A presença do Bolsa Família também estimulou a permanência das meninas na escola: entre 2005 e 2009, houve um aumento de 8 pontos percentuais na frequência escolar feminina e uma melhora de 10 pontos percentuais na progressão escolar — resultado direto da redução do trabalho doméstico entre meninas.

As desigualdades regionais também foram impactadas. O Bolsa Família contribuiu com 14,8% da redução da desigualdade de renda entre regiões no período de 1995 a 2006, graças à maior concentração de beneficiários no Norte e Nordeste. Outro dado relevante é o efeito multiplicador do programa na economia: cada real investido no Bolsa Família gera R$ 1,78 de impacto no PIB, mostra a pesquisa de Neri, Vaz e Souza (2013).

O programa também ajuda a desmentir preconceitos antigos. A ideia de que o benefício estimula a natalidade entre os pobres não se sustenta nos dados. A taxa de fecundidade entre mulheres de baixa renda caiu de 5,5 filhos, em 1991, para 3,3 filhos em 2010. Além disso, há ampla evidência de que os beneficiários conseguem se emancipar: entre os 1,15 milhão de primeiros inscritos no programa, 69% saíram dele por melhora de vida, seja por abertura de pequenos negócios ou pela entrada no mercado de trabalho formal.

Atualmente, o Bolsa Família representa um custo equivalente a apenas 0,12% do Produto Interno Bruto (PIB), mas sua eficiência, foco e impacto estrutural são internacionalmente reconhecidos. O programa é objeto de mais de 19 mil estudos científicos registrados na Plataforma Lattes, o que reforça sua relevância e eficácia. Segundo pesquisa do Instituto Datafolha, 71% da população brasileira deseja não só a manutenção do programa, mas também sua ampliação.

Em tempos de acirramento das disputas pelo fundo público e polarização política, os dados são um lembrete de que a assistência social não é um privilégio, mas um direito. A tentativa de restringir ou deslegitimar programas como o BPC e o Bolsa Família não encontra respaldo nos resultados concretos que eles oferecem para o combate à pobreza e à fome, a redução das desigualdades e o fortalecimento da cidadania. Trata-se, antes de tudo, de uma disputa de valores sobre qual modelo de sociedade desejamos construir.

A face oculta da austeridade

A austeridade não se expressa apenas como contenção fiscal — ela opera também por meio de uma guerra ideológica contra os pobres. Narrativas neoconservadoras, muitas vezes com respaldo institucional, atacam os programas de transferência de renda com base em estigmas e fake news: “As pessoas não querem trabalhar porque recebem Bolsa Família”; “Benefício está sendo usado para apostas online”; “Quem recebe auxílio usa para comprar eletrônicos ou drogas”.

Não são casos isolados que revelam a insidiosa dimensão daquilo que Karl Marx denominaria hoje por “expressões da luta de classes”. Em março de 2024, um restaurante localizado em um shopping da Zona Sul de São Paulo fixou no balcão um aviso dizendo: “Srs. clientes, por favor, tenham paciência, o pessoal do Bolsa Família e da cervejinha não quer trabalhar, estamos com muita falta de funcionários”.

A repercussão negativa forçou os proprietários a se retratarem, mas o preconceito já havia sido propagado. Na mesma semana, um empresário do setor de importação viralizou nas redes sociais por relatar sua frustração: “Estou há 6 dias procurando 3 pessoas pra descarregar um container… 45 reais pra cada, 950 caixas, café após o serviço, ninguém quer”. Ambos os episódios reforçam o estigma que vincula pobreza a “vadiagem”, dando margem para a criminalização de grupos e populações em situação de vulnerabilidade.

Esses discursos, por serem meramente ideológicos e com altas doses de irracionalismo, ignoram dados e evidências científicas. O número de famílias beneficiárias do PBF saltou de 13,8 milhões em 2019 para 20,5 milhões em março de 2024. O programa passou a incluir famílias com renda de até R$ 218 por pessoa, com uma “regra de proteção” desde 2023 que garante metade do benefício por até dois anos após aumento de renda, incentivando a formalização do trabalho. Estudo da London School of Economics (LSE) mostra que mães beneficiárias têm 7,4% mais chances de estarem no mercado formal, sobretudo aquelas com filhos pequenos. Dados do Ipea (2023) apontam que a taxa de ocupação de beneficiários subiu, e a proporção com emprego formal aumentou de 12,6% para 14,8%.

Ou seja, mais pessoas estão trabalhando — e com melhores condições. A queda na taxa de participação (pessoas buscando trabalho) entre beneficiários, de 2,3 pontos percentuais, não indica ociosidade, mas sim recusa a empregos precários. Mulheres e jovens, por exemplo, têm deixado o mercado para estudar ou cuidar da família, o que, segundo análise de Daniel Duque (FGV), contribui para o aumento do capital humano no longo prazo.

Mesmo diante desses dados, discursos morais seguem repondo velhos preconceitos em novos moldes. O recente debate sobre uso do benefício com apostas online escancarou mais uma face do conflito entre Estado Fiscal vs. Estado Social. Uma nota da FIOCRUZ/MG, assinada por Rômulo Paes de Sousa e Wanessa Debôrtoli de Miranda, analisa os dados do Banco Central (Bacen), que estimou que 5 milhões de beneficiários do Bolsa Família teriam transferido R$ 3 bilhões para sites de apostas em agosto de 2024.

O estudo do Bacen, porém, é criticado por falhas metodológicas, como a ausência de distinção entre valores transferidos e efetivamente apostados, e por não considerar que contas usadas por beneficiários do programa também recebem recursos de outras fontes. Além disso, não há comparação com o comportamento de não-beneficiários. Como alertam os pesquisadores, os dados podem esconder práticas ilegais, como lavagem de dinheiro, e não necessariamente escolhas “irresponsáveis” por parte dos pobres.

A leitura aligeirada de levantamentos como estes do Bacen reativa perigosamente o impulso de controle sobre os pobres, com propostas de maior vigilância e punição, violando princípios fundamentais da cidadania. A alternativa, segundo os autores, está em políticas de regulação inspiradas em experiências internacionais, que incluem restrição à propaganda, monitoramento das plataformas e apoio médico e psicossocial a pessoas com transtornos de jogo — sem criminalizar os mais vulneráveis.

A falta de consenso ou no mínimo de uma direção social, ética e política sobre como lidar com a tensão – artificialmente criada – entre direito e gestão também se evidencia na composição difusa, politicamente eclética e heterogênea do atual governo. É natural, no capitalismo, que disputas entre classes e frações de classe atravessem a ossatura do Estado como demonstraram brilhantemente intelectuais como Antonio Gramsci e Nicos Poulantzas .

Em nosso caso, essas tensões se tornam mais acentuadas quando o presidencialismo de coalizão se torna refém de um legislativo que abertamente se vira contra os interesses populares e atua em benefício próprio. Esse quadro piora quando sujeitos políticos importantes, no campo do que deveria ser o progressismo, se rendem ao fiscalismo e a visão neoliberal de direitos reforçando preconceitos.

Esse é o caso do titular da pasta de Desenvolvimento Social, Wellington Dias, que anuncia no mesmo dia em que eclode o escândalo no INSS que seu Ministério estima retirar um milhão de pessoas do Benefício de Prestação Continuada (BPC) como forma de economia fiscal, com expectativa de redução de R$ 9 bilhões em despesas.

Embora tenha reconhecido o mérito do benefício e mencionado a possibilidade de saída pelo emprego e combate às fraudes, sua declaração reforça a lógica da “porta de saída” como princípio ordenador da política social, promovendo a ideia de que o benefício deve ser temporário, mesmo para pessoas com deficiência ou idosos em situação de pobreza extrema.

Ao afirmar: “estamos trabalhando agora em um caminho” para tornar mais eficientes os cruzamentos de dados e restringir o acesso ao BPC, o Ministro, ainda que com discurso moderado, contribui para a hegemonia de uma racionalidade fiscalista que subordina o direito social à lógica da economia.

Tal abordagem, embora apresentada como “eficiente”, reforça a falsa oposição entre assistência social e trabalho, como se ambos fossem excludentes e não pudessem ser pensados de forma articulada, como direito humano e social e em conformidade ao previsto na Constituição Federal de 1988. Esse raciocínio, um dos maiores pilares do pensamento neoliberal em termos de política social, desconsidera, sobretudo, que nosso mercado de trabalho é fortemente precarizado e assentado sob as bases da desigualdade estrutural que vilipendia as pessoas por sua origem racial e étnica, por sua condição de gênero ou base geográfica.

É também intrigante que a pasta do Desenvolvimento Social, uma pasta que nunca foi gerida fora do Partido dos Trabalhadores (PT) nos governos Lula I e II, Dilma I e II/5 e esse fato se repita em Lula III, tenha atualmente um titular que reafirma com entusiasmo todas as prédicas neoliberais que o PT historicamente combateu em toda sua trajetória.

A insistência do Ministro em manter o tema das comunidades terapêuticas em sua pasta mesmo tendo sido alertado por todos especialistas da área, e, suas constantes menções a: “porta de saída”, “empreendedorismo”, “meritocracia”, a “falácia de composição da austeridade fiscal” e “o falso antagonismo entre assistência social e trabalho” são apenas alguns exemplos.

É curioso que o PT abra as portas para a destruição daquilo que ele mesmo criou, usou como bandeira durante anos, assistiu aos benefícios que isso trouxe ao país e valeu-se disso com resultados positivos nas urnas. A popularidade do presidente cai entre os mais pobres. Por que será?

O que se revela é mais do que uma política de corte de gastos e de eficiência de gestão. Trata-se da consolidação de uma racionalidade que criminaliza a pobreza e reforça a vigilância sobre os corpos e escolhas dos pobres, naturalizando o Estado fiscal e enfraquecendo o Estado social. Trata-se, também, de um “teatro de responsabilidade” que transfere o ônus do fracasso econômico aos beneficiários dos programas sociais — enquanto ignora a precariedade do trabalho, a concentração de renda e as estruturas históricas de exclusão.

Uma alternativa real

Em audiência pública realizada na Câmara dos Deputados em Brasília em 12 de dezembro de 2024, a professora e pesquisadora Aldaíza Sposati enfatizou que o Brasil precisa investir na gestão qualificada de sua proteção social. O Cadastro Único (CadÚnico), por exemplo, é uma ferramenta poderosa, mas ainda subutilizada. Ele pode — e deve — ser usado para cruzar dados, planejar políticas, prever demandas. O problema não é excesso de direitos. É falta de planejamento com foco em inclusão e justiça social.

Ferramentas eficazes de gestão como o CadÚnico quando não utilizadas corretamente podem provocar a perda da capacidade de planejar políticas intersetoriais e, quando submetidos aos humores fiscalistas pode excluir famílias “vulneráveis” no meio destes critérios de “pente-fino” reduzindo o alcance dos programas.

Parte das estratégias anunciadas pela CGU e por outros órgãos de governo para solucionar os problemas levantados pela Operação Sem Desconto mostram que é possível melhorar a gestão, combater e evitar fraudes sem penalizar os usuários de serviços e beneficiários de programas sociais. Necessitamos repor no conflito distributivo valores e pressupostos humanistas que foram abandonados mediante a necessidade de combatermos os extremismos e o irracionalismo trazidos pelo advento da extrema direita no país.

Em nome da nossa sobrevivência imediata, permitimos retirar do horizonte – utópico ou não – as possibilidades civilizatórias do nosso desenvolvimento. É fora de rever isso, sob pena de um retorno ainda mais vigoroso do neofascismo ao poder central.

Proteção Social não é gasto – é investimento

A corrupção deve ser combatida. Mas a austeridade não pode ser sua consequência. Cortar direitos em nome da eficiência é como amputar um braço para tratar uma unha encravada. É preciso proteger a proteção social — com mais estrutura, mais controle público e mais justiça. O Brasil precisa decidir de que lado da história quer estar: o da punição aos vulneráveis ou o da dignidade para todos.

*Renato Francisco dos Santos Paula é professor de Serviço Social e Administração Pública na Universidade Federal de Goiás (UFG).

Referências


BLYTH, Mark. Austerity: The History of a Dangerous Idea. Oxford: Oxford University Press, 2013.

BLYTH, Mark. Austeridade. A História de uma ideia perigosa. São Paulo: Autonomia Literária, 2017.

MATTEI, Clara E. A ordem do capital: Como os economistas inventaram austeridade e reformataram o mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.

NERI, Marcelo C.; VAZ, Fabio M.; SOUZA, Pedro H. G. F. Efeitos macroeconômicos do Programa Bolsa Família: Uma análise comparativa das transferências sociais. In: CAMPELLO, Tereza; NERI, Marcelo C. (Org.). Programa Bolsa Família: uma década de inclusão e cidadania. 1. ed. Brasília: Ipea, 2013. v. 1, p. 193-206.

ROSSI, Pedro; DWECK, Esther; TERRA, F. Economia para Poucos: impactos sociais da austeridade e alternativas para o Brasil. São Paulo: Autonomia Literária, 2018.

IPEA. Os efeitos do Programa Bolsa Família sobre a pobreza e a desigualdade: um balanço dos primeiros quinze anos. Brasília: Ipea, 2019.

GOVERNO FEDERAL. Painel de Benefícios – MDS. Disponível em: https://www.gov.br/mds.

PAES DE SOUSA, Rômulo; MIRANDA, Wanessa D. de. Notas técnicas sobre o uso do PBF em apostas. FIOCRUZ/MG, 2024.

FGV. Impacto do Bolsa Família na economia local. FGV Social, 2023.


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