A imaginação do paradoxo

Imagem: João Nitsche
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JOÃO ADOLFO HANSEN

Comentário sobre a entrevista concedida por Guimarães Rosa a Günter Lorenz em janeiro de 1965

Entrevistas envolvem não só coisas ditas, efeitos no enunciado, como maneiras de dizer, regulação pragmática da enunciação. Este texto é montado como cena da articulação das falas de Lorenz e Rosa, atendo-se a alguns pressupostos dos discursos em jogo. Na entrevista, o leitor lê o confronto, por vezes oposição, de duas máquinas discursivas de determinações distintas.

Comecemos rapidamente pela fala do crítico Günter Lorenz, que avança como discurso que vai distribuindo os significados do que diz e ouve por duas séries excludentes, fixando-os em um sistema de interpretação lógico, que orienta as questões e a tradução/interpretação das respostas de Rosa. Discurso que pressupõe e trabalha com a contradição, a metalinguagem de Lorenz não admite que dois contrários contraditórios possam ser verdadeiros ou válidos simultaneamente. Isso se dá, é óbvio, não devido a qualquer insuficiência, mas por sua situação de mediador – finíssimo, diga-se – entre João Guimarães Rosa e o público; por isso, com astúcia de entrevistador e certa obstinação de crítico, na sua enunciação

Lorenz tenta cercar seu objeto extremamente escorregadio, exigindo dele uma metalinguagem explicitadora de posicionamentos frente a uma determinação exterior (a discussão sobre política no Congresso Internacional de Literatura de Gênova, em 1965) ou interior à obra do entrevistado (relação língua/obra, método de trabalho etc.). Com humor, também com ironia, as falas de Rosa efetuam uma análise de linguagem e de acontecimentos – não só os da circunstância da entrevista e os do Congresso, também os literários e biográficos – por meio de paradoxos, que afirmam dois sentidos contrários simultaneamente válidos.

Maneira hábil de esquivar-se à grade conceitual do crítico, esse discurso outro, fabulador/fabulista, vai colocando o parceiro da discussão frente a alternativas que provocam um curto-circuito nas categorias lógicas do seu discurso de contradição, exigindo paradas contínuas para efetuar metalinguagem da metalinguagem (que se releia o efeito de impaciência de Lorenz, sua quase irritação, quando não consegue acompanhar um pseudoparadoxo que Rosa (des)monta, no qual converte a obra no autor, ao mesmo tempo em que diz ser preciso evitar qualquer intimidade ou subjetivismo para falar da obra).

Falando por paradoxos – e insistindo no valor deles em oposição ao lógico em seus livros –, Rosa insiste em que seu discurso, como prática e efeito, visa a deslocar continuamente os limites explícitos das linguagens estabelecidas e, subordinando sempre o que diz à maneira como diz, mostra que opera com decisões e não com adequação do discurso a verdades já constituídas. É certamente por isso que, lida a entrevista toda, ainda se pode perguntar pela real oposição que se camufla nas idas e vindas das duas estratégias discursivas, principalmente na de Rosa, que produz um vácuo humorístico em que as perguntas do crítico são esquecidas.

Uma hipótese é pensar Rosa como crítico literário – no caso, crítico da crítica – demonstrando no seu jogo de linguagem a insuficiência/irrisão do aparato binário (do tipo “político/apolítico”, “lógico/ilógico”, “real/mágico”, “vida/obra” etc.) utilizado pela crítica que não sai da moldura da representação. Devido a duas imaginações diferentes de linguagem e de sentido, certamente também se está diante de duas concepções diversas do significado de “político”. (Estrategicamente considerado como principal neste texto, o paradoxo que permeia a entrevista inteira consiste no fato de Rosa recusar a política e simultaneamente afirmar a responsabilidade política do escritor – como se lê, por exemplo, quando diz estar do lado de Astúrias e não do de Borges).

Não importa se idealista pelo emprego de categorias que remetem seu discurso ao metafísico, absorvendo-o num lugar atópico fora do tempo, fica patente a insistência de Rosa em falar da linguagem – nesse sentido, seu fingido horror pela intimidade e a afirmação do desejo de escrever um dicionário que seria sua autobiografia a ser publicada em seu centenário devem ser pensados como rastros furtivos de sua poética e, implicitamente, de sua relação política com a língua e a linguagem.

A valorização do dicionário como linguagem virtual da poesia implica, no caso, espécie de atividade compendiaria temporalmente imanente aos objetos designados, em que não se trabalha a língua como adequação, semelhança ou reflexo, mas como força, uma vez que os objetos do discurso não são predeterminados e vigem como virtualidade infinita da significação: Rosa chama o processo de alquimia e, citando Novalis, álgebra mágica. Binariamente, poder-se-ia pensar em formalismo, aqui, por oposição a um conteudismo realista qualquer.

Mas Rosa não acredita numa autonomia do linguístico, pois não confunde o material simbólico com os objetos coletivos articulados nele – leia-se o que diz sobre a sinceridade no uso da língua ou sobre a responsabilidade do escritor ou, ainda, sobre a língua da metafísica. E, como ainda estamos escrevendo binariamente, diga-se que Rosa também não aceita a escrita literária posta instrumentalmente a serviço de padrões: “Zola… provinha apenas de São Paulo”, diz como exemplo de dissociação forma/conteúdo.

O que se pode entrever, pois, nesta sua recusa do formalismo e do instrumentalismo fáceis? Resumidamente, a afirmação de um trabalho que Lorenz traduz como contradição: negação da lógica, defesa do irracional – operadas por um intelectual. Não vendo contradição alguma no que afirma, pois não fala por meio do discurso de contradição, diz que “o gênio é um homem que não sabe pensar logicamente, mas prudentemente”. Aqui, com a sua alguma modéstia, Rosa reafirma o pressuposto de seu discurso: a “lógica” equivale à prudência tornada científica, como petrificação de padrões que não mais produz ideias (nesse sentido, seu trabalho com o paradoxo também poderia ser entendido como recusa do dogmatismo, um tanto paradoxalmente).

Mas é sua não-aceitação de uma língua do tipo “balões de papel” da indústria cultural – expressão que lembra a monnaie courante de outro grande solitário da invenção – que pode explicitar melhor sua repugnância pelo lógico: este corresponde a significados que já se oficializaram com a bênção eclesiástica, filosófica e científica. Como contraponto da recusa, Rosa afirma um trabalho de corrosão/mistura da língua que dissolve a mediação da representação e a estica até uma origem que, sem paradoxo, é um futuro e uma virtualidade da enunciação (e uma realização, se pensamos em sua obra, que é o que conta): a língua como meio donde procede e em que se produz a extensão/tensão de um trabalho “reacionário” com a palavra.

Conferindo à palavra seu “sentido original”, sua produção desborda as fronteiras preestabelecidas da designação/significação linguísticas, efetuando um acontecimento puro como invenção de um outro que a categorização metafísica pode candidamente bem pensar como alma ou outro mito catalogável – mas que, pelo trabalho do paradoxo e compensação (liberação das “impurezas da linguagem falada”, emprego de variantes dialetais ainda não codificadas literariamente, recurso ao Português arcaico, uso do dialeto que é a língua da ciência moderna etc.) é uma formidável máquina moderna de produzir diferenças, singularidades. Trata-se de trabalhar com uma língua in fieri, em que convergem e dialogam as multiplicidades dos padrões de enunciação coletiva – o Português do Brasil, língua que ainda não é estática, misto de formas portuguesas, índias e africanas, e a contribuição vária de outros idiomas.

O método: (des)montar tais padrões na combinatória do enunciado, purificar, transformar a língua em linguagem, soltar ou liberar as línguas da língua, umsorgen. Pensando a “brasilidade” – que é a “língua do indizível” – e também dizendo que seu personagem Riobaldo provavelmente é só Brasil, Rosa intui uma política da linguagem que necessariamente desemboca na confluência de linguagens em festa: o talvez impressionante, para seu leitor, é que a festa das linguagens encontra seu contraponto e ritmo no mato, neste “sertão” louco e torto e nada metafísico marcado justamente pela ausência de voz.

Infelizmente – talvez – Rosa não o teoriza suficientemente, pois quando fala dele sua categorização é metafísica – por isso, fica como que cego à radicalidade radical da sua linguagem, terceira margem. E, desta maneira, como este texto quer ser curto, retoma-se o paradoxo do inicio: Rosa é político? Certamente não o é, se “político” é pensado como engajamento da obra e/ou propaganda de determinada práxis – e deve ficar claro que aqui não se leva em conta seu engajamento do coração, ainda que fosse oportunidade para um escrito sobre o teatro das intenções. Mas Rosa é intensamente político, quando paradoxalmente faz falar aquilo que ainda não teve voz e está preparando em surdina a festa das linguagens do mato; a metafísica, no caso – e a despeito dele mesmo, homem inatual em relação à sua obra – é bem a metáfora desse vazio.

*João Adolfo Hansen é professor titular aposentado e sênior da USP. Autor, entre outros livros, de Agudezas seiscentistas – Obra reunida, vol 1 (Edusp).

Publicado originalmente em Arte em Revista – Anos 60. São Paulo: Kairós, maio/ago. 1979.

 

Referência


Günter Lorenz. Diálogo com a América Latina: Panorama de uma literatura do futuro.

São Paulo, EPU, 1973.

 

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Antônio Sales Rios Neto Daniel Brazil Benicio Viero Schmidt Priscila Figueiredo Heraldo Campos José Costa Júnior Jean Pierre Chauvin Ari Marcelo Solon Luiz Werneck Vianna Eugênio Bucci Marcus Ianoni João Carlos Loebens João Adolfo Hansen Tales Ab'Sáber Bruno Fabricio Alcebino da Silva Marcos Aurélio da Silva José Luís Fiori Plínio de Arruda Sampaio Jr. Fernão Pessoa Ramos Carla Teixeira Gerson Almeida Fábio Konder Comparato Annateresa Fabris Michael Löwy Tadeu Valadares Andrew Korybko Everaldo de Oliveira Andrade Marilia Pacheco Fiorillo Michael Roberts Liszt Vieira Henri Acselrad Ricardo Abramovay Sergio Amadeu da Silveira Luciano Nascimento Sandra Bitencourt Ricardo Musse Thomas Piketty Valerio Arcary Ronaldo Tadeu de Souza Daniel Afonso da Silva João Feres Júnior Marilena Chauí Gabriel Cohn Michel Goulart da Silva Marcos Silva Milton Pinheiro Kátia Gerab Baggio João Lanari Bo Maria Rita Kehl Jorge Luiz Souto Maior Celso Favaretto Henry Burnett Atilio A. Boron Lincoln Secco Julian Rodrigues Ronald Rocha José Micaelson Lacerda Morais Rodrigo de Faria Vinício Carrilho Martinez Caio Bugiato Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Osvaldo Coggiola Ricardo Fabbrini Ricardo Antunes Yuri Martins-Fontes Jean Marc Von Der Weid Elias Jabbour Bernardo Ricupero Manchetômetro Leonardo Sacramento João Carlos Salles Luiz Carlos Bresser-Pereira Francisco Fernandes Ladeira Luiz Bernardo Pericás Lorenzo Vitral Alexandre de Lima Castro Tranjan Eduardo Borges Luiz Renato Martins Paulo Nogueira Batista Jr Dênis de Moraes Ladislau Dowbor Mário Maestri Bruno Machado Juarez Guimarães Chico Whitaker Eleonora Albano João Paulo Ayub Fonseca Flávio R. Kothe Afrânio Catani Berenice Bento Lucas Fiaschetti Estevez Paulo Fernandes Silveira Gilberto Lopes Rafael R. Ioris José Raimundo Trindade José Geraldo Couto Fernando Nogueira da Costa Eugênio Trivinho Celso Frederico Alysson Leandro Mascaro Leonardo Avritzer André Márcio Neves Soares Andrés del Río Armando Boito Érico Andrade Igor Felippe Santos Carlos Tautz Mariarosaria Fabris Renato Dagnino Remy José Fontana Eleutério F. S. Prado Boaventura de Sousa Santos Slavoj Žižek Paulo Martins Anselm Jappe Luis Felipe Miguel Marjorie C. Marona Valerio Arcary Rubens Pinto Lyra José Dirceu Eliziário Andrade Vladimir Safatle Marcelo Módolo Luiz Marques Ronald León Núñez Salem Nasser Vanderlei Tenório Luís Fernando Vitagliano Leda Maria Paulani Gilberto Maringoni José Machado Moita Neto Luiz Eduardo Soares Daniel Costa Manuel Domingos Neto Walnice Nogueira Galvão Paulo Sérgio Pinheiro Chico Alencar Alexandre de Freitas Barbosa Tarso Genro Luiz Roberto Alves Alexandre Aragão de Albuquerque Dennis Oliveira Jorge Branco Denilson Cordeiro Francisco Pereira de Farias Matheus Silveira de Souza Antonio Martins Bento Prado Jr. Claudio Katz Antonino Infranca Otaviano Helene Airton Paschoa Francisco de Oliveira Barros Júnior João Sette Whitaker Ferreira Marcelo Guimarães Lima Leonardo Boff André Singer Paulo Capel Narvai Flávio Aguiar Samuel Kilsztajn

NOVAS PUBLICAÇÕES