A base teórica e prática do novo partido de Bolsonaro
Por Otávio Dias de Souza Ferreira*
Em 14 de agosto de 2019, o deputado Eduardo Bolsonaro,
filho do presidente da República, anunciou em rede social que a cidade de São
Paulo seria sede, em cerca de dois meses, da Conservative Political Action Conference (CPAC), segundo ele, o “maior evento conservador do
mundo”.
Cumprindo a promessa, o evento realizou-se em um hotel
da capital paulista em 11 e 12 de outubro de 2019, contando com a presença de
público significativo e com a transmissão simultânea pela rede mundial de
computadores. Em que pesem tantas referências pejorativas aos inimigos e
governos antecessores e a seu terrível legado, o ambiente predominante foi de
otimismo e de euforia, com a perspectiva do futuro do Brasil sob as diretrizes
conservadoras.
Pelo universo das temáticas tratadas e dos conteúdos
dos discursos, de um lado, identificamos um papel propositivo do evento,
visando a fomentar o conservadorismo no Brasil com base na experiência e nas
contribuições do conservadorismo estadunidense. Do outro, notamos um papel
político de busca de fortalecimento de determinados atores em detrimento de
outros. De modo mais evidente, a CPAC se coloca contra todo espectro político
da esquerda, os progressistas e o “esquerdismo” dos expoentes e “órfãos da Maré Rosa”. De modo mais sutil, a CPAC se introduz como recurso
de um determinado grupo conservador na disputa interna no campo da direita,
objetivando o protagonismo político.
Contra
a Maré Rosa
Até agora pouco conhecida no Brasil, a CPAC foi criada
em 1974, em meio ao escândalo de Watergate envolvendo o então presidente
Richard Nixon, e logo se constituiu em um marco importante para o movimento
conservador estadunidense, empenhado no ambicioso projeto
de chegar ao poder, superando a condição de movimento intelectual já
consolidada desde meados dos anos 1970.
Desde a abertura daquele primeiro evento, protagonizada por ninguém menos que
Ronald Reagan, justamente aquele que em 1980 concretizaria a missão do
Movimento Conservador de alcançar a Presidência, a CPAC foi ganhando mais
notoriedade.
As reuniões da CPAC têm sido organizadas todos os anos nos Estados Unidos pela American Conservative Union (União
Conservadora Americana) e já rendeu outras edições no exterior além dessa no
Brasil: na Austrália, no Japão e na Coreia.
Em palestra na abertura do evento, o anfitrião Eduardo Bolsonaro definiu assim a reunião: “Esse evento aqui não é o Foro de São Paulo
invertido. Esse evento não serve como uma maneira para traçarmos uma estratégia
para alcançar o poder. Esse evento aqui é para dizer quem nós somos, o que é
ser conservador, como se posicionar como conservador em debates como por
exemplo o aborto, a ideologia de gênero. (…) O CPAC não é o Foro de São Paulo
porque aqui a nossa sede não é de poder. Nossa sede é de saber quem somos,
saber nos organizar. Se porventura a gente vier a eleger alguém, isso daí é
consequência. Mas nunca será o nosso objetivo principal. (…) Porque não adianta
nada você colocar o primeiro candidato, o número um nas pesquisas eleitorais,
se ele não vai ser a favor da família, se ele não vai saber como defender o
direito à legítima defesa, né, ao armamento, ou as outras pautas que são tão
caras a nós, como a redução do Estado e assim por diante.
Na mesma sessão de abertura do evento, o representante
da American Conservative Union, Matt
Schlapp, contou que a proposta de Eduardo que o seduziu envolvia a fundação de
um movimento conservador no Brasil, tanto no governo, como na cultura, na
sociedade.
Não foi pouca a propaganda difundida no evento a
respeito dos resultados supostamente extraordinários conquistados nas mais
diversas áreas de políticas públicas ao longo deste primeiro ano da gestão de
Jair Bolsonaro. Financiada pela Fundação Índigo (Instituto de Inovação e
Governança), ligada ao PSL, a CPAC Brasil 2019 reuniu influenciadores e
lideranças políticas do Brasil e dos Estados Unidos. Não por acaso, exclui-se
“políticos de fora do espectro governista”.
Desdobramento do esforço de alinhamento de atores do
continente americano com o conservadorismo estadunidense que teve na Cúpula
Conservadora das Américas, em dezembro de 2018, o marco inicial, a CPAC
incorpora a preocupação com a consolidação de um movimento intelectual e
político conservador no Brasil, na pretensão de fomentar o conservadorismo no
âmbito da educação da militância, da cultura e da institucionalidade política.
Parcela significativa dos anseios de integração
corresponde a uma reação contra a tendência recente no continente da Maré Rosa,
especialmente contra a orientação que negava os ditames do Consenso de
Washington e que tentava resistir à hegemonia estadunidense no continente.
O
amplo espectro de inimigos
Inúmeros foram os inimigos destacados pelos palestrantes e debatedores: “climatismo”, “iluminismo” [em Ernesto Araújo]; “globalismo” [em Flávio Morgensen]; “marxismo”, “socialismo”, “comunismo” e “esquerdismo” [em várias palestras, destacando-se a de Mike Lee, a de Matt Schlapp, e nos vídeos da Brasil Paralelo]; a Escola de Frankfurt [em Ana Campagnolo]; os Conselhos de Políticas Públicas e o 3º Programa Nacional de Direitos Humanos [em Damares Alves e em Taiguara Fernandez]; a Folha de S. Paulo, Rede Globo, The New York Times, El País, The Guardian [na mesa sobre Fake News e na entrevista com Eduardo Bolsonoro]; a Venezuela e Cuba [em Matt e Mercedes Schlapp, especialmente]; o Foro de São Paulo [em Oxyx Lorenzoni]; a ONU e as ONGs ligadas a George Soros [em Dom Bertrand]; e pessoas como Dom Claúdio Hummes [em Dom Bertrand e Bernardo Kuster], Antonio Gramsci [em Eduardo Bolsonaro, Onyx Lorenzoni, Ana Campagnolo e na mesa em homenagem a Olavo de Carvalho] e György Lukács [em vídeo do Brasil Paralelo], Karl Marx, Engels e Lênin [em Ana Campagnolo], Jean Willys [em Damares Alves], Voltaire, Slavoj Zizek e Alain Badiou [em Ernesto Araújo] e Marilena Chaui [em Abraham Weintraub].
Entre os políticos inimigos, Lula foi,
indubitavelmente, o mais lembrado, junto a seu partido vinculado a uma imagem
de “corrupção generalizada” [em Filipe Martins]. Fernando Henrique Cardoso
também recebeu algumas menções. Seu nome esteve associado ao início do projeto
da esquerda. Onyx Lorenzoni apresentou Lula e Fernando Henrique de mãos dadas,
afirmando que essas duas figuras “são a mesma coisa”.
A maioria dos ataques aos opositores foi muito agressiva.
O inflamado discurso da ministra da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos, Damares Alves, por exemplo, conclamou ao enfrentamento dos
“sanguinários e violadores de direitos”, pertencentes à esquerda que governou o
país. Acrescentou que “não podemos subestimar o cão, não podemos subestimar o
mau”. Destoando da média dos palestrantes, por adotar um tom mais brando e
moderado, que reivindicou o diálogo com todos, inclusive com a esquerda, merece
lembrança a fala de Ana Paula Henkel sobre o ativismo feminino conservador,
especialmente no esporte.
Embora fosse um evento conservador, o pensamento do
marxista italiano Antônio Gramsci recebeu uma atenção considerável,
especialmente no tocante à apropriação de sua ideia de “hegemonia” a partir do terreno
cultural, que chegou ao campo da direita brasileira pelas mãos de Olavo de
Carvalho. Sob essa orientação, dois dos vídeos da produtora Brasil Paralelo
transmitidos ao vivo no telão situado no palco do evento acusaram a Esquerda de
ter orquestrado uma estratégia de hegemonia, partindo da ocupação das
instituições educacionais, culturais e da mídia.
Um dos vídeos propunha a releitura da história da
redemocratização e da Constituinte de 1988, e o outro, a da história dos
movimentos políticos de 1968. Nessa linha de raciocínio, Bernardo Kuster assim se posicionou em sua palestra na
CPAC Brasil 2019: “Não é só porque
Bolsonaro chegou ao poder que tudo está resolvido. Como foi dito, não temos uma
Universidade conservadora, não temos uma alta cultura conservadora, não temos
mídia conservadora”.
A
principal referência intelectual
Acreditaria o leitor se lhe dissesse que o pensador
campeão de referências foi Olavo de Carvalho? Pois foi. E isso não é fake news. Uma mesa inteira foi formada
por quatro de seus ilustres alunos [Filipe Martins, Rafael Nogueira, Flávio
Morgensen e Taiguara Fernandez] em sua homenagem. Os dois ministros de Estado
de Bolsonaro que abriram e fecharam os trabalhos da CPAC no sábado, Ernesto
Araújo (Ministério das Relações Exteriores) e Abraham Weintraub (Educação),
respectivamente, juntam-se ao time de ex-alunos e discípulos do filósofo. O
próprio organizador do evento, Eduardo Bolsonaro, declarou na abertura da CPAC
que “nosso querido Olavo” seria, “para ele, o maior líder dos conservadores do
Brasil”.
A lista dos notórios admiradores que foram destaque na
CPAC ainda inclui Bernardo Kuster e o jornalista Allan dos Santos. Este último
não constava da programação oficial, mas comandou a Sala Interativa do evento,
em um auditório onde entrevistou vários palestrantes e participantes da
Conferência. Nada mais simbólico para
um evento que trata da integração conservadora Brasil-Estados Unidos do que a
consagração de um intelectual brasileiro que vive na Virgínia e bebe
diretamente da fonte do pensamento conservador americano.
Para além da identificação dos inimigos, do tratamento
despendido para eles e da centralidade da guerra no terreno da cultura, há que
se destacar os conteúdos mais propositivos. A defesa da livre-iniciativa, do
livre-mercado e de valores do “libertarianismo” apareceu em vários momentos,
sempre em oposição às mazelas da burocracia estatal e do Estado ineficiente e
intrinsecamente inimigo das liberdades. Referências à orientação econômica
compartilhada por Milton Friedman e Paulo Guedes foram recorrentes. Neste
ponto, ressaltam as falas de Christine Wilson, de James Roberts e de Weintraub.
Outra questão recorrente foi a defesa do patriotismo e
da soberania do território, especialmente da Amazônia, na resistência contra o
comunismo [em Mike Lee] contra o “climatismo” e o “globalismo” do “esquerdismo”
contemporâneo [em Ernesto Araújo e em Dom Bertrand].
A defesa da família e dos valores cristãos
conservadores [em Damares Alves, Dom Bertrand e Bernardo Kuster] foi sustentada
em oposição às orientações da Teologia da Libertação, a qual, segundo Dom Bertrand, “que também de libertação não
tem nada, por que essa libertação leva à tirania da esquerda, a esquerda
vermelha, comunista”.
O direito de autodefesa por meio da liberdade do uso
de armamentos foi tematizado em uma sessão específica [de Benê Barbosa], mas
também foi elogiado por outros palestrantes [como por Eduardo Bolsonaro].
Outra questão recorrente foi o “negacionismo” em relação a vários aspectos da nossa história: desde a negação do genocídio dos índios e da história de racismo em nossa sociedade [em Dom Bertrand], até a negação do golpe militar de 1964 e da própria existência da ditadura militar[em Eduardo Bolsonaro e em vídeo do Brasil Paralelo] . Fez-se a defesa da democracia, a partir, sobretudo, da ênfase contemporânea na representação eleitoral e da “maioria silenciosa” conservadora que esteve alheia ao poder durante a Maré Rosa.
A visão de direitos humanos centrada na defesa da vida
foi preconizada pela ministra Damares Alves, segundo o direito natural e o
credo cristão, em detrimento da visão liberal do controle das arbitrariedades
das autoridades do Estado.
Tradição
brasileira
Diversamente dos esforços mais antigos dos think tanks neoliberais e libertários de construção de uma rede
integrada no Brasil e na América Latina no âmbito da Atlas Network e de outras
iniciativas de aliança, o movimento conservador brasileiro é mais
fragmentado e padece historicamente de institucionalidade e de organização em
rede.
O Brasil dispõe, sim, de tradição conservadora na
sociedade civil e na política, contando com referências intelectuais no
pensamento político desde pelo menos Oliveira Viana, Gilberto Freyre, Alberto
Torres, José de Alencar e Visconde de Uruguai, com organizações na sociedade
civil e com influenciadores e lideranças de orientação conservadora. Em sua
forma de ação como um movimento intelectual e político, tem-se desenvolvido, no
entanto, de modo fragmentado e com pouca capilaridade na sociedade.
Depois da ampla aliança de vários setores sociais e de
todo bloco da direita na sociedade contra a Maré Rosa e os governos petistas,
tivemos, após a derrubada de Dilma Rousseff em 2016, uma crescente cisão e
diferenciação no espectro político da direita em busca da ocupação dos espaços
de poder. A vitória de Jair Bolsonaro nas eleições de 2018 conduziu um grupo
determinado da direita à Presidência da República, mas não encerrou essas
disputas.
Ao fim de todo um discurso preconizando um vínculo
natural entre liberalismo econômico e o que entende por “atitude conservadora”,
em oposição ao “totalitarismo” próprio do “esquerdismo” e ao “globalismo”,
quando o ministro Ernesto Araújo reivindicou a consolidação da “Aliança
Liberal-Conservadora”, ele explicitou a tentativa de retomar aquela aliança,
porém sob a liderança dos conservadores. Embora negasse que o conservadorismo
se constituísse propriamente em ideologia, a parte inicial do discurso se
aproximou da leitura do conservadorismo feita por Karl Mannheim, quando ataca
frontalmente o culto à razão do Iluminismo, o qual incorporaria “o máximo da
arrogância do ser humano” e teria afastado gerações e gerações do caminho da
“verdade”.
Perto do final dessa primeira Conferência no Brasil,
Eduardo Bolsonaro e Matt Schlapp subiram ao palco, sob efusivos aplausos da
plateia, para assinarem publicamente um termo de compromisso para garantir a
realização de futuras edições da Conferência no Brasil. Enquanto a Cúpula
Conservadora das Américas, que tem a edição prevista para o final do ano no
nordeste do Brasil, volta-se para a integração conservadora no continente, a
CPAC Brasil seguirá como um esforço bilateral, mais voltada para afetar a
realidade brasileira sob a inspiração da construção institucional
estadunidense.
Combinando as posturas reativa e propositiva, ambas as
iniciativas visam essencialmente “afinar os discursos” [conforme as palavras de Eduardo Bolsonaro em
entrevista para Allan dos Santos] dos
conservadores no Brasil e no continente americano.
*Otávio Dias de Souza Ferreira, doutor em Ciência Política pela USP, é membro do corpo docente da Maestria Estado, Gobierno y Politicas Públicas da FLACSO Brasil
Publicado originalmente no site Observatório Político dos Estados Unidos (OPEU)
Nota
Todas as
palestras e inclusive as entrevistas na Sala Interativa do CPAC Brasil 2019 estão
disponíveis para acesso livre no YouTube.
Sugestões de leitura
Burgos, R.
Contra o ‘socialismo’, Direita se reúne em busca de uma identidade. Entendendo
Bolsonaro. 13 de out. 2019.
Ferreira, G. N.;
Botelho, A. Revisão do pensamento conservador.
São Paulo, Hucitec/Fapesp, 2010.
Lievesley, G.,
& Ludlam, S. “Introduction: reaction and revolt”. In: F. Dominguez, G.
Lievesley, & S. Ludlam. Right-Wing Politics in the New
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Poggio, C. G.
Análise: ‘Conferência da Direita não tem raizes robustas’. In: O
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Neoliberais do Cone Sul e suas alianças. In: E. Bohoslavsky, R. P. Motta, &
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Rocha, C.
Direitas em rede: think tanks da direita na América Latina. In: S. V. Cruz; A.
Kaysel; G. Codas (orgs). Direita, volver!: o retorno da direita e o ciclo político
brasileiro. São Paulo, Fundação Perseu Abramo, 2015.
