A internet é humana, demasiadamente humana

Imagem: Jakub Dziubak
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Por PAULO GHIRALDELLI*

A subjetividade maquínica já nos tornou ciborgues; o desafio não é evitar a IA, mas conter sua inflação semiótica para que a legitimidade do encontro corporal ainda ressoe

1.

A internet logo terá mais conteúdo de robô que de pessoas. O colunista da Folha de S. Paulo Ronaldo Lemos deu essa informação não faz muito tempo. Agora, ele voltou com o assunto (Folha, 27/10/2025): a internet não é mais humana. Em 2025 mais de 53% dos textos da internet foram produzidos por Inteligência artificial, e os vídeos e áudios seguem a mesma tendência.

Ele conta que também o modelo de negócios das plataformas mudou. Como sempre, o que se quer é mais tempo de atenção dos usuários, todavia, a novidade é que a Inteligência artificial entrou para valer como a principal arma das plataformas para se conseguir o engajamento. Ela está se passando por “namorada”, “terapeuta”, “amigo” etc. Busca as necessidades afetivas humanas e dobra todas as pessoas pelas suas carências, uma vez que o mundo segue atomizado, com mais gente solitária.

As conclusões que Ronaldo Lemos tira disso é que a Inteligência artificial vai tornar as pessoas condicionadas pela máquina, uma vez que irá se aperfeiçoando em conseguir responder aos padrões de carência humana. Ele até disse que irá jantar com Emmanuel Macron e, então, avisará o mandatário francês disso tudo! Ele disse que é necessária uma “Revolução Francesa” na internet.

Essa narrativa de Ronaldo Lemos sobre a internet e Inteligência artificial surfa no senso comum. Qualquer pessoa pode dizer isso que ele disse. Mas, que tal olharmos procurando mais complexidade? Acho que vale o exercício.

2.

Primeiro: a relação homem-máquina na infosfera na qual habita a Inteligência artificial não é de justaposição ou de condicionamento. A relação é de agenciamento. Não o maquinal, mas o maquínico agencia os humanos. A subjetividade de nossos tempos é uma subjetividade maquínica. Isto é, homens e máquinas estão há muito criando condições de se apresentarem como ciborgues, e a Inteligência artificial é um passo a mais nesse processo.

Os algoritmos das máquinas tornam os humanos parte da teia de algoritmos. Nesse processo, há uma visível semiotização da infosfera. Podemos até dizer: uma inflação semiótica e uma deflação semântica. Estar na infosfera, já faz tempo, é funcionar no sentido de colaborar com o fluxo de dinheiro, linguagem e trabalho. E esse fluxo não pede hermenêutica, não solicita interpretação, apenas diz: empurre o fluxo, faça a onda continuar.

Então, aqui, o conceito não é o de relação homem-máquina, nem o do homem que vira maquinal, mas o de nascimento de nova subjetividade. Em determinados momentos isso porá todos nós alheios aos seus corpos, e em outros momentos isso acabará exigindo a volta dos corpos à cena.

Lula e Donald Trump poderiam ter se encontrado em vídeo conferência, trocando mensagens etc. Não! Só foi válido para todos no mundo o encontro dito pessoal, corpo a corpo. No passado, valeria a troca de mensagens, justamente hoje em dia, isso não vale! O cheiro que está no ar, quando isso ocorre, é que em algumas instâncias a semiotização parece precisar ser contida para que o que se apresenta tenha legitimidade.

3.

Segundo: a dependência das pessoas fragilizadas, ou apenas pessoas que querem se divertir, que deverão buscar ajuda para dramas emocionais na Inteligência artificial, pode ser barrada por um movimento da própria Inteligência artificial. Como ela está a serviço do capital, sendo ela própria um elemento deste, ela busca o crescimento infinito e também em alta velocidade.

O capital quer tempo zero em tudo, a internet e a Inteligência artificial o acompanham. Se a Inteligência artificial fosse mostrando seus serviços em um tempo não tão veloz, isto é, num tempo condizente com o tempo humano, ela poderia ser mais influente. Todavia, tentando conquistar tudo em velocidade desenfreada, ela expõe sua fraqueza.

Sua semântica é criada por probabilidade, e se torna rapidamente repetitiva e enfadonha. Pode ser consultada durante um período, mas seus resultados de aconselhamento podem não funcionar e, mais ainda, gerar uma busca por situações reais, por sugestões que venham da criatividade que só pode surgir no diálogo de corpos presentes.

Muita gente consultava e até consulta os horóscopos de jornais, mas isso sempre alterou pouco suas decisões. As decisões do mundo moderno são tomadas pelo limite do cartão de crédito. A vida material se impõe. Quando a vida material se impõe, até aqueles que nunca quiseram interpretar, buscam se inteirar das velhas hermenêuticas.

Em nenhuma das duas objeções que coloco para a narrativa de Ronaldo Lemos eu estou advogando que o mundo futuro é um campo de amor, compreensão e inteligência. Só estou dizendo que os conceitos envolvidos com a infosfera não precisam ser simplificados como Ronaldo Lemos fez.

O que ele escreveu aposta em uma história linear que, cá entre nós, não vimos ocorrer em lugar algum. Creio que uma concepção de história com mais zigue-zague talvez seja mais útil. Fornece narrativas que me parecem melhores sobre o que estamos vivendo.

*Paulo Ghiraldelli é filósofo, youtuber e escritor. Autor, entre outros livros, de Capitalismo 4.0: sociedades e subjetividades (CEFA Editorial). [https://amzn.to/3HppANH]


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