A luta dos exilados pela anistia no Brasil

Imagem: Feyza Tuğba
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Por JEAN MARC VON DER WEID*

O projeto dos militares para a anistia estava muito longe da consigna da oposição dentro e fora do Brasil

A diáspora brasileira no tempo da ditadura merece um estudo mais aprofundado. O que este artigo pretende apenas é dar um testemunho pessoal da luta pela anistia assumida pelos exilados, sobretudo na Europa e nos Estados Unidos e Canadá, concebida em apoio ao movimento no Brasil.

O meu “lugar de fala” é justificado pelo papel que assumi no exílio, tanto nas denúncias da repressão, torturas e assassinatos de presos políticos como na criação dos Comitês Brasileiros pela Anistia (CBA), tendo sido coordenador do primeiro CBA no exterior, em Paris e, em 1978/1979, como coordenador do conjunto dos CBAs na organização do último e maior evento da diáspora, a Conferência Internacional Pela Anistia e Liberdades Democráticas no Brasil.

Primeiros movimentos — a denúncia das torturas e assassinatos de presos políticos no Brasil

Quando chegou ao Chile o grupo dos 70 presos trocados pelo embaixador suíço, em janeiro de 1971, este país já era o maior centro de convergência dos que tiveram que se exilar para evitar prisões ou coisas muito piores. Menos de quatro anos depois, no momento do golpe que derrubou o presidente Allende, estima-se que o número de brasileiros no Chile estava próximo dos mil, representando provavelmente dois terços do total espalhado mundo afora.

Ao que eu saiba, não havia uma organização política de brasileiros exilados no Chile voltados para campanhas sobre o Brasil. O que existia era a “Caixinha”, uma organização de solidariedade com os recém-chegados ao país, visando dar condições de alojamento, alimentação e de emprego aos necessitados. A Caixinha foi organizada por um grupo dos mais antigos no exílio, encabeçado pelo José Serra e tinha como princípio o apoio a todos, sem privilégios nem distinção por partido político.

Com o tempo ela foi agregando na sua coordenação alguns dos novos exilados, vindos de todas as correntes políticas. Por não conhecer detalhes desta entidade não vou citar nomes dos seus muitos ativistas, mas não se pode esquecer do papel essencial no apoio a quem chegava, muitas vezes com uma mão à frente e outra atrás.

Naquele momento do exílio havia apenas um grupo político divulgando denúncias contra a ditadura, centrado em Paris e intitulado Frente Brasileira de Informações (FBI), tendo à frente o ex-deputado Márcio Moreira Alves e agregando algumas organizações da esquerda brasileira: VPR e ALN e outras que não lembro, mas creio que todas ligadas à luta armada contra o regime. Acho que o PCB, que tinha uma representação em Paris, não fazia parte. A AP esteve um tempo no FBI, mas quando cheguei no Chile tinha rompido e nunca soube por que razão. O FBI distribuía um boletim informativo com denúncias do regime e divulgação de ações revolucionárias da esquerda.

O grupo dos 70, no dia seguinte da nossa chegada, convocou uma conferência internacional de imprensa, realizada no local do nosso alojamento, o Hogar Pedro Aguirre Cerda. Os dirigentes políticos das organizações da luta armada que tinham saído neste sequestro formaram uma coordenação política, com a participação da VPR, ALN, PCBR, MR-8 e VAR-Palmares e este grupo me convidou para dirigir o encontro com os jornalistas, na minha qualidade de presidente da UNE.

As organizações da luta armada não me chamaram para esta coordenação, pelo fato da AP, o partido ao qual era filiado, não ter aderido à esta forma de luta naquele momento, mas acharam que uma liderança de massas era importante na hora de se comunicar com o público. Entre parênteses, esta ambiguidade daria uma boa discussão sobre o papel da luta armada e da luta de massas na revolução, mas este não é o lugar para isso.

Aceitei o papel e fiquei um tanto preocupado pelo fato de que a coordenação não me deu qualquer orientação para o debate com a imprensa. Por minha própria conta decidi centrar a minha exposição inicial na denúncia da ditadura, em particular no tema da tortura e assassinatos dos presos políticos, que justificava o sequestro como forma extrema de salvar vidas de militantes. Ninguém da coordenação achou ruim a escolha que fiz e, em uma declaração de acordo e confiança, me propuseram representar essa “frente armada” em uma campanha internacional com o mesmo conteúdo que eu tinha dado à conferência de imprensa, denúncia das torturas e assassinatos.

Eu já tinha decidido dedicar um tempo a uma campanha internacional de denúncia da ditadura, aproveitando o fato de que tinha um passaporte suíço e falar inglês e francês, mas pretendia fazê-la vinculado à AP. A “frente armada” não viu problemas nesta associação com a AP na campanha embora, obviamente, ela teria uma imagem mais próxima da AP do que deles, dada a minha filiação e papel mais destacado nesta atividade.

Em 1971, essa “frente única” de denúncias funcionou em parte. Na Suíça eu me apresentei como presidente da UNE e não como “representante dos 70” ou como militante da AP. Como (meio) suíço e em um país muito conservador onde eu era sensação mais por ter sido trocado pelo embaixador suíço, sequestrado pela VPR, eu teria perdido muito do apoio e solidariedade de grupos humanitários que eram essenciais para isolar a ditadura.

Já na Itália, fortemente politizada e com organizações mais à esquerda como Lotta Continua, Avanguardia Operaia, Potere Operaio e mais convencionais como o PCI e o PSI, todos com bases importantes no proletariado, estudantado e, em menor grau, no campesinato, além da forte base parlamentar dos dois últimos, falar em nome dos 70 não causava reações. Mesmo entidades menos “políticas”, como a Comissão de Direitos Humanos do Vaticano me receberam para escutar as minhas denúncias contra a ditadura.

Nesta longa campanha de quase dois meses eu convidei dois companheiros dos 70 para participarem comigo dos eventos: René de Carvalho, do PCBR e Roberto Fortini, da VPR. Estivemos em mais de 15 grandes cidades, entre elas Roma, Milão, Turim, Florença, Bolonha e Veneza. E outras menores, como Sassari e Cagliari, na Sardenha, Varese, Parma, Verona e várias outras. Acho que foi a campanha com maior impacto de massa de que participei.

Quando chegávamos às cidades um ou mais interlocutores políticos nos recebiam e, com frequência, eram tantos os eventos que nos dividíamos para atender todos os compromissos. Vou contar um deles, em Milão, para dar uma ideia do clima.

Convidado pela organização da esquerda “extraparlamentar”, Avanguardia Operaia, mas com o apoio de uma dezena de outras organizações, inclusive da Democracia Cristã (a Itália era um espaço político muito singular!), fui falar para os operários da fábrica Pirelli no final do expediente e me deparei com uma enorme assembleia com mais de mil pessoas. Àquela altura da campanha eu já falava italiano correntemente e fiz o discurso e o debate sem tradutores. Muitas perguntas foram feitas sobre as condições da classe operária no Brasil e sobre os sindicatos e sobre a luta revolucionária contra a ditadura.

No final de evento o delegado sindical vinculado ao partido Democrata Cristão (de direita e no governo desde o final da segunda guerra mundial) propôs uma coleta de fundos “para financiar a compra de armas para as organizações revolucionárias brasileiras”. Foi vaiado pela massa, o que me confundiu um tanto, mas a razão foi a falta de coerência do sujeito, que se fazia de revolucionário … no Brasil. Outros apoiaram a moção, mas deixando que os brasileiros decidissem sobre o uso a dar a estes fundos. Levantou-se uma boa grana na coleta, talvez porque estivessem muito preocupados com a perspectiva de transferência das fábricas da Pirelli para o Brasil.

Depois do debate as lideranças sindicais me convidaram para um jantar no bairro proletário onde todos eles viviam, o Sexto San Giovanni e eu aceitei encantado.

Chegamos a uma ruela no bairro onde havia já dezenas de mesas lado a lado, com as mammas e nonnas colocando pratos e travessas de comida, acompanhadas por muitas garrafas de vinho. Foi muito agradável e delicioso, sem papo político a sério. Ao final eles puseram-se a cantar canções revolucionárias, anarquistas, comunistas, socialistas e até cristãs. Era uma grande frente única solidária e todos entoavam em coro as canções.

Depois de ouvir várias músicas vibrantes e beber muitos brindes aos povos italiano e brasileiro, meu mais próximo contato naquele mundo pediu silêncio e me convocou: “canta una música revolucionária brasiliana”. Embatuquei. Não sabia direito a Internacional em português e o hino nacional, é claro, não cabia ali. Pensei no “subdesenvolvido”, mas também não me pareceu adequado. Acabei cantando o “Caminhando e cantando” do Vandré, me esgoelando com a minha vozinha rouca.

Terminei com um silêncio decepcionado à minha volta e alguém comentou bem alto: “se depender da música a revolução brasileira não vai longe”. Tive a presença de espírito de responder: “se dependesse da música vocês já teriam feito a revolução”. Fui ovacionado.

As campanhas se sucederam ao longo do ano de 1971, 1972 e 1973, passando pela França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Dinamarca, Suécia, Inglaterra, Escócia, Irlanda e Canadá e Estados Unidos. Na primeira ainda compartilhei com o René, mas no resto foi um voo solo, com eventuais parcerias com exilados que lá moravam, alguns ligados ao MR-8, à VPR, à ALN e, na maioria dos casos, à AP, é claro. Mas não havia organizações de exilados estruturadas em frentes nestes países.

Em 1972, acabei me concentrando no caso do líder camponês da AP, Manoel da Conceição, preso em janeiro no interior do Maranhão e desaparecido por quase todo aquele ano. Rodei por vários dos países citados tendo como alvo conseguir declarações de “gente de peso”, de qualquer setor da sociedade, de preferência de centro e até de direita, pois a ditadura não se incomodaria com protestos de esquerdistas.

Deu certo e obtive apoios da Comissão de Relações Exteriores do Parlamento canadense, do Partido Camponês da Suíça (membro do governo), do cardeal de Paris, do governo sueco e uma parte da bancada democrata no senado americano, entre outros. Em dezembro Manoel foi apresentado a um juiz e teve sua situação regularizada depois de meses de torturas e ameaças de morte em vários quartéis das Forças Armadas.

Em vários dos lugares por onde passei, quando encontrava brasileiros exilados ou não, ou estrangeiros, dispostos a levar adiante a campanha a nível local ou nacional, criei comitês de solidariedade com o povo brasileiro, com os quais mantive contato e municiei com informações e orientações nos anos subsequentes, em geral até o golpe do Chile.

Depois do Chile

O golpe levou dezenas de companheiros e companheiras para o Estádio Nacional ou para o Estádio de Chile, com alguns assassinados pelos militares. Muitos outros se refugiaram nas embaixadas da Argentina, Panamá, Venezuela, Suécia, México e, para cidadãos com dupla nacionalidade, França, Itália e Suíça. A diáspora, até então concentrada no Chile, dispersou-se em dezenas de países, na maior parte na Europa, com cerca de 350 na França, quase todos em Paris.

Um segundo país de abrigo importante foi a Suécia com perto de uma centena. Algumas dezenas foram parar na Suíça, Bélgica e Alemanha. Um punhado se refugiou na Dinamarca, Holanda, Itália, Inglaterra, Canadá e Estados Unidos. Não tenho ideia de quantos foram parar nos países socialistas, mas desconfio que o maior número foi para Cuba.

Ao todo não acredito que fossemos mais de que uns 1500, apesar da imprensa brasileira ter divulgado, em 1979, que seriam 10.000. Este número superexagerado originou-se de uma entrevista para a revista Veja do José Anibal Pontes, um dos membros do CBA Paris. Questionei esta avaliação em uma reunião da coordenação do comitê e o Zé disse que tinha extrapolado os números de exilados na França, segundo ele mais de 3000.

Fiquei atônito, pois em nossas mais numerosas manifestações de exilados nunca reunimos mais do que 400 pessoas, incluindo estudantes brasileiros que lá estavam legalmente, fazendo seus mestrados e doutorados. Procurei o organismo do governo francês que lidava com exilados de todo o mundo naquele país e fiquei sabendo, “em off”, que seriam 327, se bem me lembro, incluindo um bebê recém-nascido (a filha de Liszt Vieira).

Ao longo do ano de 1974, período em que a maioria estava se instalando nos seus novos países de refúgio e reorganizando suas vidas, as campanhas de denúncia da ditadura arrefeceram.

Eu tinha encerrado esta etapa da minha vida e da minha militância quando fui para o Chile pouco antes do golpe e não via sentido em retomar as viagens pelo mundo nesta atividade. Tentei por uns meses ficar morando na Argentina, mas o acirramento da direita peronista (a Triple A) antecipava o golpe que se seguiu à morte de Perón e eu resolvi voltar para Paris. As organizações que eu tinha criado ou atraído para uma ação permanente contra a ditadura brasileira voltaram-se para a solidariedade ao Chile, caso mais recente e macabro de liberticídio ou, logo depois, para a Argentina. A diáspora dos exilados desses países foi muito mais numerosa do que a nossa e ocupou a atenção das entidades progressistas mundo afora.

No segundo semestre de 1974, começou a se reunir em Paris uma frente de esquerda com representantes da ALN, VPR, PCBR, MR-8, POC, MEP, AP e PCB. O PCdoB não quis participar por não reconhecer o Partidão como interlocutor.

A representatividade destas organizações entre os exilados em Paris era pequena, devido ao grande abalo político provocado pela sucessão de quedas importantes de seus militantes e dirigentes no Brasil. Isto derivou em um distanciamento de muitos dos exilados de seus partidos de origem, muitos tornando-se o que se conhecia como “independentes”. Pelas mesmas razões e mais ainda por divergências crescentes na avaliação da luta armada que agonizava no Brasil, a legitimidade dos representantes das organizações em Paris era bem tênue.

O primeiro ato público da Frente de Esquerda foi a realização de uma série de debates sobre a conjuntura brasileira, centrados no processo eleitoral de outubro, já sob o governo do general Ernesto Geisel. Assistidos por uma centena de participantes, na maioria independentes, estes debates levaram ao enfrentamento de duas posições: as favoráveis e as contrárias à participação no processo eleitoral. Dado o distanciamento entre os representantes das organizações de esquerda de suas bases e dirigentes no país, nem as posições assumidas tinham relação com o que se discutia no Brasil, nem conseguiam ter qualquer reflexo no muito diminuído campo da esquerda no país.

Isto ficou claro quando a base da AP (eu e mais uns 10 outros na França e na Suíça) assumiu uma posição que divergia de posturas do partido no passado, apoiando a participação nas eleições e abandonando a consigna do voto nulo, mas não tínhamos ideia do que pensavam os sobreviventes da AP no Brasil. Levamos uma bela roda de porrada dos representantes de partidos no debate, mas apoiados pelo PCB e pela maioria dos independentes.

Particularmente virulenta foi a crítica dos representantes do MR-8, Franklin Martins e Carlos Alberto Munis, com direito a indicar-nos o nosso lugar no “lixo da história”. Os dois não sabiam ainda, mas os dirigentes do MR-8 no Brasil já tinham aprovado um redirecionamento tático, com o abandono da luta armada e a participação nas eleições. Na reunião seguinte, já informados, os dois “fizeram autocrítica” e endossaram a ampla maioria que apoiava esta posição. Já o nosso grupinho da AP foi confortado ao saber que o partido no Brasil tinha adotado a mesma linha.

Os debates sobre a conjuntura tiveram continuidade, com avaliações do surpreendente resultado das eleições, sobretudo com a vitória do MDB, elegendo 16 dos 22 senadores e fazendo maioria de votos nulos e brancos em dois estados onde só a ARENA tinha candidatos.

Em março ou abril de 1975 a Frente de Esquerda começou a discutir uma estratégia de ação política na França, tendo como objetivo “isolar a ditadura”. A denúncia da tortura e dos assassinatos dos presos políticos, ênfase do período anterior, foi mantida. Mas apresentaram-se ideias de campanhas mais propositivas como a defesa de uma Assembleia Constituinte, o Estado de Direito, o fim da censura e outras. Inspirado pela notícia da criação do Movimento Feminino pela Anistia, do qual a minha mãe era uma das fundadoras, propus que centrássemos as campanhas neste tema.

Depois de muitos debates acabamos por concordar que esta era a proposta com maior alcance em termos de adesão política e capaz de unificar o maior número de correntes dentro e fora do Brasil. A lógica, defendida brilhantemente pelo representante do POC, Celso Castro, era que não seria possível uma anistia sem que uma série de outras modificações do regime fossem implantadas. E a anistia como carro chefe de uma campanha pela democracia tinha muito apelo na sociedade brasileira. A Frente de Esquerda decidiu criar um Comitê Brasileiro pela Anistia, como instrumento de organização da ampla maioria dos independentes entre os exilados.

Nos primeiros tempos de existência do CBA o poder decisório continuou na Frente de Esquerda, mas logo isto foi sendo superado pela necessidade de democratizar o processo. Acabamos por criar uma estrutura organizacional baseada em uma assembleia de todos os militantes engajados, número que oscilou entre 40 e 60 pessoas, chegando a uma centena por ocasião de eventos públicos. Esta assembleia passou a eleger a coordenação (seis pessoas) e a decidir os rumos da campanha. A Frente de Esquerda continuou a existir por um tempo, mas atuando para fazer aprovar suas posições no colegiado amplo. Aos poucos o CBA passou a ser preponderante e subsumiu a Frente de Esquerda.

Se bem me lembro, fui o único “representante” de partido (AP) a ser eleito para coordenador executivo, cargo sempre dividido com outro militante, no começo com o Bona Garcia, e depois com Liszt Vieira, ambos independentes e ex-militantes da VPR. Esta militância na AP, entretanto, não foi o que definiu a minha escolha para este posto, mas o trânsito que tinha entre partidos e independentes que confiavam em uma postura de conciliação entre as tendências.

O CBA tinha como objetivo mobilizar a opinião pública francesa para que se manifestasse sobre a necessidade da anistia no Brasil, mas também sobre uma ampla série de reivindicações democráticas, que eram enfatizadas de acordo com cada um dos setores específicos da sociedade com os quais trabalhávamos. Formaram-se comissões temáticas e setoriais com bastante autonomia para agilizar as campanhas. Se bem me lembro, tínhamos comissões de contato com os partidos políticos (parlamentares), com os movimentos sindicais, com o “setor cultural”, com universidades, com organizações de juristas e advogados, com as igrejas e com as organizações de direitos humanos e a imprensa.

Não foi preciso muito para interessar a diáspora em outros países e logo surgiram CBAs em toda a Europa, em alguns casos com mais de um grupo em cidades diferentes (Lausanne e Genebra; Estocolmo e Lund/Malmo; Berlim e Colônia). Cada um definiu suas prioridades e formas de organização, mas todos tiveram a marca de serem entidades que reuniam militantes e não frentes de partidos. Foi uma experiência exemplar de frente política que manteve uma grande unidade de atuação, com apenas um racha, localizado e limitado, já no final do exílio.

Não me lembro quando foram criados os CBAs no Brasil, creio que em fins de 1975 ou início de 1976, mas assim que surgiram estabelecemos relações com vários deles, mais frequentemente com os do Rio de Janeiro, São Paulo e Minas Gerais. O enlace com o MFPA se fez naturalmente, pela participação de mães de vários entre nós entre as militantes deste movimento.

O CBA realizou várias campanhas como as de solidariedade com os protestos contra o assassinato de Alexandre Vanucchi, de apoio à crescente ação da igreja católica contra o regime, de apoio às greves no ABC, de denúncia da prisão e tortura de Inês Etienne e da onda de prisões que se abateu sobre o MEP, em apoio à retomada do movimento estudantil universitário com a formação dos movimentos Caminhando e Refazendo e de denúncias dos massacres feitos pelas FFAA no Araguaia. Entre muitas outras.

Seria muito longo apresentar aqui todas ou mesmo parte de nossas atividades no CBA de Paris, mas posso dizer que tivemos vários sucessos na mobilização de partes da sociedade francesa, perturbando a paz da embaixada da ditadura, ocupada pelo ex-ministro Delfim Neto, também conhecido como “monsieur dix pour cent”, em função da taxa que cobrava por acordos de empresas francesas (como o Metrô de Paris) com o governo militar brasileiro. O embaixador ficou particularmente afetado com um abaixo assinado de centenas de grandes artistas franceses (de cinema, teatro, música, pintura, etc.) que cercaram a embaixada para entregá-lo.

Ou a defesa da anistia afirmada pelo Cardeal de Paris em uma homilia na Catedral de Notre Dame rezada em conjunto com o bispo de Olinda e Recife, dom Helder Câmara. Ou ainda a participação dos exilados brasileiros nas manifestações sindicais do primeiro de maio.

De todas as ações pela anistia e outras reivindicações democráticas organizadas pelo CBA, a mais importante foi a Conferência pela Anistia e Liberdades Democráticas, realizada em Roma em fins de Junho de 1979.

A proposta de conferência partiu da coordenação do CBA Paris, imediatamente apoiada por todos os outros, no segundo semestre de 1978.

O contexto político brasileiro era o da “distensão lenta, gradual e segura” promovida pelo governo Geisel. Visitantes vindos do Brasil e múltiplas informações recebidas por nós indicavam uma crescente mobilização da sociedade brasileira em várias frentes de luta enquanto os setores mais duros do regime amargavam derrotas. A chamada “tigrada” foi decapitada com a demissão do Ministro do Exército, general Silvio Frota, e o deslocamento para a reserva ou para postos sem comando de tropa de vários chefes do aparelho de repressão.

Depois de várias medidas arbitrárias utilizando atos institucionais (cassações de mandatos parlamentares, criação de senadores “biônicos”, e outras) Geisel se sentiu confiante na sua estratégia de seguir controlando o país em um arremedo de Estado de Direito, fazendo algumas concessões do tipo restabelecimento do habeas corpus, levantamento da censura direta à imprensa, recuo da participação direta das Forças Armadas na repressão, com a dissolução dos DOI-CODIs (mas mantendo os serviços de inteligência militares como Ciex, Cenimar, Cisa e SNI).

Ernesto Geisel estava seguro da sua sucessão, controlando o colégio eleitoral para ungir seu assecla general Figueiredo, oriundo do SNI, como futuro presidente da República, com a missão de preparar a saída dos militares no mandato seguinte e, dizia-se nos bastidores, promover uma anistia política.

As manobras de Ernesto Geisel deram certo e o ano de 1979 se inicia com a posse de João Figueiredo que logo abre a discussão no Congresso sobre a anistia. Iramaia Benjamim, mãe de um banido e de um exilado e ativista do CBA do Rio de Janeiro, passou por Paris anunciando que “estávamos com o pé no estribo para voltar ao país”.

O projeto dos militares para a anistia estava muito longe da consigna da oposição dentro e fora do Brasil, de uma anistia “ampla, geral e irrestrita” e provocou o início de uma série de manifestações em várias frentes pressionando o Congresso para ampliar o escopo do projeto.

Estariam excluídos da anistia os condenados por ações armadas (guerrilhas, assaltos a bancos, sequestros, atentados contra as Forças Armadas ou as polícias militares). A suspensão do banimento de 130 militantes fazia parte o pacote, mas uma boa parte destes ficaria excluída da anistia pelos outros critérios.

Segundo meus advogados a minha situação era duvidosa. Eu não tinha pegado em armas, mas tinha uma condenação por queimar um jipe do exército em uma manifestação estudantil no Rio de Janeiro em 1968 e isto poderia ser classificado como “ato terrorista”. Por outro lado, os meus queridos e combativos causídicos tinham informações de que as minhas atividades de denúncia da ditadura no exterior tinham criado resistências nas Forças Armadas para a minha inclusão entre os anistiados.

Foi neste momento que apareceu a proposta de se conceder o que se chamou de “anistia recíproca”. O governo militar nunca adotou esta linguagem, assumida pelo general Pery Bevilaqua. Ele defendeu publicamente que todos os que participaram de atos ilegais no período da ditadura deveriam ser anistiados, fossem eles contra ou a favor do regime. Isto “passaria o pano” nas responsabilidades dos oficiais e soldados que praticaram atos de tortura e assassinato de presos políticos. A cúpula das FFAA viu nesta démarche a oportunidade de criar um paredão institucional de defesa a qualquer tentativa de se levar às barras dos tribunais todos os responsáveis por violações de direitos humanos e até os responsáveis pela própria quebra da ordem jurídica do país no golpe de 1964.

A proposta de aumentar a pressão pela anistia ampla geral e irrestrita para os perseguidos pelo regime e pela retirada dos torturadores e outros militares implicados no golpe do projeto de anistia em discussão virou a meta da nossa última campanha no exterior. Entretanto, a coordenação do CBA em Paris resolveu levar ao conselho organizador da Conferência Internacional outras reivindicações que nos pareciam essenciais.

Com uma anistia sendo discutida no Brasil, nos pareceu que reivindicar apenas a ampliação da proposta era como buscar arrombar uma porta meio aberta. A proposta que levamos à primeira reunião do conselho, com a participação de todos os CBAs do exterior, foi a de estender o escopo da conferência para incluir o que se definiu, de forma geral, como “liberdades democráticas”.

Esta proposta foi unânime em Paris e não esperávamos divergências na primeira reunião preparatória de Roma, cidade escolhida para a realização da conferência, mas o representante do CBA de Bruxelas, Atos Pereira, não concordou, defendendo a manutenção do objetivo mais restrito de centrar apenas na anistia. Tivemos que realizar mais duas reuniões para tentar manter a exemplar unidade da diáspora brasileira ao longo de quatro anos e trazer o pequeno grupo de Bruxelas para a nossa proposta.

Tentamos mudar a linguagem, trocando liberdades democráticas por “democracia” ou por “liberdade”, mas foi tudo em vão e acabamos decidindo manter a nossa proposta original, lamentando a não participação do CBA de Bruxelas. Cheguei a programar uma visita ao grupo para tentar convencê-los diretamente, sobretudo pela importância da participação de Vladimir Palmeira, a maior liderança do movimento estudantil de 1968, e que era membro do grupo. Zé Duarte, meu companheiro de cela na Ilha das Flores, outro membro do grupo de Bruxelas, me convenceu da inutilidade da tentativa — a posição contrária era majoritária no grupo e bastante consolidada.

Buscamos trazer para o evento em Roma o maior número possível de convidados de cada país, escolhidos por sua importância política e/ou cultural, além dos militantes mais importantes dos CBAs e tivemos um sucesso acima das expectativas.

Entre as personalidades do exílio tivemos algumas dificuldades. Não conseguimos convencer Brizola, Arraes e Prestes a participar da Conferência, embora todos tenham mandado mensagens de apoio. Mas figuras históricas importantes como Gregório Bezerra PCB), Diógenes de Arruda Câmara (PCdoB), Apolônio de Carvalho (PCBR), Manuel da Conceição (liderança camponesa do Maranhão, AP) e José Barbosa Monteiro (ex-presidente do sindicato de metalúrgicos de São Bernardo, AP) prestigiaram o evento. Ao todo uns cem exilados e uns 50 estrangeiros passaram três dias discutindo a anistia e as liberdades democráticas a serem conquistadas no Brasil.

Apesar de algumas dificuldades na elaboração da mensagem inaugural do conselho coordenador e da resolução final da Conferência, chegamos a consensos importantes, dada a diversidade política dos participantes. Dois meses depois o Congresso votou o projeto mandado pelo executivo com algumas ampliações, mas mantendo a exclusão dos que pegaram em armas e a inclusão dos torturadores, assassinos e golpistas.

Antes de concluir quero lembrar os nomes de duas mulheres, escolhidas para ler a mensagem de abertura e a resolução da conferência: Carmela Pezutti e Ruth Escobar. A escolha da primeira, assim como o texto que ela leu, foram objeto de discussões intensas no conselho e aprovados por unanimidade, mas o texto da resolução e a escolha da Ruth foram decisões tomadas por poucos de nós no afogadilho da última noite antes da conclusão.

Parece incrível, mas o fato é que um evento planejado nos mínimos detalhes com amplas consultas aos muitos organizadores espalhados em vários países chegou ao seu final sem que estivesse definido um processo de elaboração coletiva do seu mais importante documento: a resolução política. Me dei conta disto na noite do penúltimo dia, depois que os relatores de todas as comissões de debate trouxeram seus relatórios para a secretaria do evento e se dispersaram na noite romana. Precisávamos de um documento para a plenária final do dia seguinte e não havia como encontrar os vários membros da comissão organizadora.

O texto final foi elaborado por mim e pelo Luíz Travassos, que dividia um apartamento comigo. Na manhã seguinte consegui consultar o Liszt Vieira e o Luiz Eduardo Greenhalg, que fizeram pequenas observações, rapidamente incluídas no texto e o entregamos para os tradutores.

Felizmente ninguém levantou objeções em plenário e tudo foi aprovado por aclamação, sinal de que havíamos conseguido o milagre de contentar os gregos e troianos da diáspora.

Foi um sinal dos tempos de mudança o fato de que representantes dos CBAs do Brasil participaram da conferência, sem medo de represálias na sua volta ao país. Luiz Eduardo Greenhalg ( CBA, São Paulo), Manuel de Carvalho (dirigente do CBA da Bahia e direção do PCdoB) e Ruy Cesar (baiano candidato à presidência da UNE em reorganização) e um deputado federal eleito pelo Rio de Janeiro tiveram participação ativa na conferência.

Deixo estas lembranças como um breve registro de uma luta que merece ser objeto de teses de mestrado ou doutorado, em benefício da memória do povo brasileiro. E aproveito para anunciar que está sendo concluído um documentário sobre a Conferência de Roma, utilizando as filmagens realizadas no evento.

*Jean Marc von der Weid é ex-presidente da UNE (1969-71). Fundador da organização não governamental Agricultura Familiar e Agroecologia (ASTA).


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