Por ANNATERESA FABRIS*
Considerações sobre o filme de Michel Hazanavicius

1.
Como representar, mais uma vez, a indústria da morte instaurada em Auschwitz, sem incorrer no já dito e no já visto? Michel Hazanavicius escolheu o caminho da fábula animada em A mais preciosa das cargas (La plus précieuse des marchandises), projeto iniciado em 2019 e vindo a público no Festival de Cannes de 2024. Na entrevista concedida ao Centre National du Cinéma et de l’Image Animée (CNC), o diretor esclarece a gênese do filme, a começar pela intenção de Jean-Claude Grumberg – autor do conto epônimo no qual a obra se baseia – de ter o texto adaptado por Robert Guédiguian.
Este declina do convite, mas encaminha as provas do livro para o produtor Patrick Sobelman, seu sócio na ExNihilo. Por sugestão de Jean-Claude Grumberg, que era amigo dos pais de Michel Hazanavicius, Sobelman procura o diretor de O artista (The artist, 2011), o qual, depois de ler o texto, é tomado pela “sensação de ter um clássico entre as mãos”, o que o leva a rever a ideia de não querer fazer “um filme sobre a Shoah, sobre a representação dos campos”.
Numa declaração reportada por Valérie Guénot, Michel Hazanavicius afirma que o filme não conta “uma história sobre o horror, ou sobre os campos, ele transcende isso. É um movimento das trevas para a luz, é uma história luminosa que revela o que o homem – e, em primeiro lugar, a mulher – tem de melhor. É uma pulsão de vida, e se o filme evoca lembranças de algo ou de alguém, é dos justos.
Aqueles homens e aquelas mulheres que salvaram vidas pondo em risco sua própria vida”. A assertiva do diretor, que lembra que Jean-Claude Grumberg, coautor do roteiro, o alertava a todo momento que seu conto era, antes de tudo, “uma bela história” e não a evocação da Shoah, deve ser tomada com cautela, pois o filme não consegue escapar da representação repleta de páthos de Auschwitz e dos horrores praticados pelos nazistas.
Tal como no livro, o filme começa com o “era uma vez” e com a evocação irônica da história do Pequeno Polegar,[1] considerada ridícula por ter como mote o abandono dos filhos por pais que não podem alimentá-los. A partir daí, começa a história de uma corrente de solidariedade, da qual participam “uma pobre lenhadora”, “um pobre lenhador” e um “gueule cassée”[2] para salvar uma criança encontrada no bosque pela mulher.
Se ela se apaixona de imediato pela criaturinha, o mesmo não acontece com o marido, que a define “rebento da raça maldita”, “sem-coração”. Depois de desistir da ideia de devolver a menina à floresta, confina-a, junto com a esposa, no depósito de madeira até que um dia descobre que ela tinha um coração. Dessa sequência surge um dos momentos mais poéticos da animação: o lenhador sente o coração da criança bater na palma da mão, na floresta que garante seu parco sustento e no tronco das árvores. Finalmente rende-se a ela quando a pequena, para levantar do chão, se agarra num de seus joelhos.

O ex-soldado de voz rascante, que fugia do contato com outros seres humanos, demora um bocado para acertar um trato com a lenhadora; finalmente, é convencido a trocar, todos os dias, uma garrafinha do leite da cabra de sua propriedade pelo xale de oração que envolvia a menina quando foi encontrada na floresta e um feixe diário de lenha. Como em todas as fábulas, essa corrente de solidariedade é contrastada pela falta de empatia dos companheiros de trabalho do lenhador, que não disfarçam o próprio antissemitismo e que, tendo descoberto a existência da criança, resolvem entregá-la aos alemães.
Dessa ação resultam a morte do lenhador e a fuga da esposa com a menina, que encontram refúgio na cabana de troncos do homem da cabeça quebrada. Segue-se um período de felicidade para o quarteto constituído pela lenhadora, pela menina, pelo homem e pela cabra, apesar da aproximação da guerra do bosque. Um dia, dois soldados estrangeiros matam o homem que estava defendendo sua propriedade, o que leva a lenhadora a encaminhar-se para o Leste com a criança, a cabra e os utensílios para fabricar queijos.

O oposto da solidariedade infiltra-se na trama por meio de trens de carga que passam incessantemente pela borda da floresta soltando faíscas e expelindo grandes rolos de fumaça preta, que lhes conferem um aspecto cada vez mais monstruoso. O que eles transportavam é revelado por uma visão do lenhador, que penetra no interior de um vagão apinhado de gente, no qual um homem de óculos, depois de ter avistado a lenhadora na paisagem nevada, atira no bosque um de seus filhos envolto no xale de oração.
Em outra visão, o lenhador vê o trem no qual estava o homem chegar a um lugar cheio de soldados e de cães. Os homens válidos são separados das mulheres, das crianças e dos idosos, e o pai da menina perde de vista a esposa e o filho. A localização daquela estação é revelada por um passarinho que, depois de assistir à cerimônia fúnebre com a qual a lenhadora se despede do homem da cabra, voa para um lugar marcado por uma ordem geométrica sinistra, onde o pai da menina exercia o ofício de barbeiro.
Nesse momento, Michel Hazanavicius passa das imagens animadas para um conjunto de representações inanimadas, de caráter expressionista, para introduzir o espectador no reino dos mortos. Como ele próprio declara: “Esses desenhos parados simbolizam a morte com seres de rostos inertes como se estivessem cobertos por máscaras. Quis também colocar filtros – neve, fumaça – nessas cenas para chegar a uma forma de abstração”.
O desenho torna-se mais duro e, associado a um tom quase monocromático, gera uma multidão de rostos apavorados e apavorantes, na qual Cécile Mury detecta “uma proliferação assustadora do famoso Grito, de Edvard Munch, esse estilhaço de absoluto desespero”.
Depois da chegada do exército libertador, o pai da menina vagueia pelas instalações de Auschwitz-Birkenau, reconhecível pelos trilhos, que funcionou como campo de trabalhos forçados e de extermínio a partir de meados de 1943. Verdadeira larva humana e no limite de suas forças, abandona o campo e põe-se a caminhar, mas desmaia e perde a fotografia da esposa com as duas crianças.
Recolhido por um camponês, é levado a um vilarejo, onde estava a lenhadora vendendo queijos, acompanhada da menina e da cabra. Depois de reconhecer o xale sobre a mesinha na qual estava disposta a mercadoria, aproxima-se, mas assusta mãe e filha com sua aparência. Toma consciência de seu aspecto ao ver o próprio reflexo espectral na vitrine de um café e compreende o susto da menina, cujo olhar exprime a rejeição do horror estampado em seu rosto. Resolve não dar-se a conhecer e deixar viver sua nova vida à filha reencontrada e perdida para sempre.
Encerrado esse trecho profundamente dramático do filme, o espectador fica sabendo que o pai da menina voltou para seu país, onde retomou os estudos de medicina, tornando-se um pediatra famoso que cuidava dos filhos dos outros. Numa viagem ao Leste europeu, vê na banca da estação de trem na qual acabava de chegar uma revista que estampava na capa a foto da filha que se tinha tornado uma pioneira de elite.
Pede então à pessoa que fora buscá-lo a tradução dos dizeres da capa: a moça chamava-se Maria Tchekolova e era definida a pioneira de maior mérito por ser filha de uma lenhadora analfabeta que se tornara vendedora de queijos. Com essa informação conclui-se a saga da pequena mercadoria salva da morte por diversos gestos de amor e de renúncia. Se houvesse dúvidas sobre o que Michel Hazanavicius quis dizer quando afirmou que o filme representava “um movimento das trevas para a luz”, estas se dissipariam com a sequência final que mostra o pai feliz com o êxito da filha, a quem deu uma segunda vida com seu ato de desespero.
2.
Sérgio Alpendre parece não ter percebido esse movimento quando escreve que Hazanavicius deve ter encontrado na animação “um caminho mais seguro para cineastas como ele, um tanto incertos no trato de temas fortes, com pouco critério na hora de escolher o que mostrar e o que não mostrar, e com alguma falta de noção, que permanece na hora de terminar um filme tão melancólico com uma música alegre”.
Apesar dessa ressalva à canção animada que acompanha os créditos, Sérgio Alpendre encontra aspectos positivos na escolha do diretor pela animação. O cineasta, que “tem normalmente uma mão um tanto pesada, […] se beneficia do atenuamento inerente à animação. As atrocidades surgem como pinturas expressionistas. O demasiado visto é mostrado com alguma variante que o torna mais palatável, geralmente de maneira alegórica”.
De acordo com o crítico, a escolha traz ainda outra diferença. O conto de Grumberg poderia ter sido facilmente adaptado com atores e atrizes. Mas provavelmente “não teria esse tempo, que nos permite experienciar uma emoção extrema, sem nos sentirmos chantageados – a bela trilha de Alexandre Desplat contribui. É um lindo conto moral o que vemos em seus 80 minutos”.
Caio Coletti, ao contrário, não encontra motivos para a escolha da animação por parte de Michel Hazanavicius. A seu ver, este optou pela “‘saída mais fácil’” para contar uma história que tem algum significado para ele, mas não a ponto de investir nela, em termos de “dinheiro, fisicalidade, capital social”, o quanto investiu em seus outros longas-metragens.
O crítico propõe uma hipótese um tanto desabonadora para o realizador: “Ou talvez seja uma questão de apelar para o emocional mais básico do público, de desarmar o cinismo com o qual o rótulo “filme de Holocausto” é recebido na atualidade, considerando talvez que a animação (por ser entendida ainda como uma mídia infantil) é mais permissiva com as emoções primárias, o texto literal, a manipulação descarada em que o filme parece se engajar”.
Caio Coletti tem em mente a trilha sonora de Desplat, caracterizada por “orquestrações fáceis e estridentes, que evocam tragédia e elevação sem traço de graciosidade melódica”. A música criada por Desplat parece constituir, de fato, o ponto vulnerável do filme: ela é uma presença por vezes incômoda em momentos que requereriam silêncio ou se configura como um reforço dramatúrgico inútil em outros.
A opção pelo desenho animado envolve outras questões, além das abordadas pela crítica brasileira. Como o próprio cineasta reconhece, a animação funciona como um filtro, que permite estabelecer um distanciamento em relação à narrativa, ao operar por sugestão. Graças a ela, é possível mostrar o que aconteceu sem gerar um espetáculo “impossível de se ver, até mesmo obsceno”.
Isso fica evidente na sequência dos campos, na qual o diretor resolve ser mais “simbólico”, optando por imagens inanimadas e escapando, assim, do efeito demasiado sentimental inerente a um tratamento realista e frontal da questão.[4] Desse modo, ele consegue dizer o indizível, mostrar o horror absoluto pela evocação artística, propondo um caminho distinto em relação a outros filmes dedicados ao Holocausto.
Decidir-se pela animação para levar às telas a fábula de Grumberg significa entrar de vez no reino do faz-de-conta, próprio desse tipo de literatura, dando vida a uma narrativa perturbadora, na qual o amor por uma menina consegue pô-la a salvo da aniquilação que a esperava, caso chegasse até o campo de extermínio.
No epílogo do livro, Grumberg brinca com a ideia de “história verdadeira”, negando a existência de tudo o que foi contado, mas afirmando que “uma garotinha, que não existia, foi jogada da lucarna de um trem de carga, por amor e por desespero, […] foi jogada na neve aos pés de uma pobre lenhadora sem filhos para que ela a amasse, e que essa pobre lenhadora, que não existia, a apanhou, alimentou, acalentou, e amou mais que tudo. Mais que a própria vida. É isso”.
Para pôr em imagens essa fábula peculiar, Michel Hazanavicius pensa, de início, em adotar o estilo de desenho usado nas primeiras longas-metragens animadas dos Estúdios Disney – Branca de Neve e os sete anões (Snow White and the seven dwarfs, 1937), Pinóquio (Pinocchio, 1940) e Dumbo (Dumbo, 1941) – , mas chega à conclusão de que se tratava de um universo “demasiado redondo, demasiado infantil”.
Volta-se então para a pintura de Gustave Courbet, mas percebe que não conseguiria transpô-la para a linguagem da animação. Ao visitar uma exposição de gravuras japonesas, surpreende-se com suas grandes superfícies planas de cores e é aconselhado por Julien Grande, que será o diretor artístico do filme, a olhar para a obra do ilustrador Henri Rivière, um dos maiores expoentes do japonismo na França.
Outro ilustrador a chamar sua atenção é Gus Bofa, em quem encontra um motivo fundamental da animação: os grandes olhos, “a um só tempo cansados e alucinados”, que correspondem “ao que viram os deportados nos campos e que ninguém deveria ver jamais”. Além disso, olha para muitas fotografias e desenhos de deportados, viaja para Auschwitz, relê Primo Levi, formando todo um imaginário sobre o tema.
Desse conjunto de referências origina-se um desenho que evoca as ilustrações dos livros infantis das primeiras décadas do século XX: suave e de uma extraordinária expressividade no tratamento da natureza, que evoca as paisagens bretãs gravadas por Rivière na década de 1890; mais duro e próximo de certas soluções da xilogravura naquele dos personagens, cujos traços são acentuados por contornos pretos que remetem igualmente ao estilo de Rivière.
Gustave Courbet faz-se provavelmente presente na maneira de representar a paisagem nevada.[3] Considerado por Paul Cézanne o artista que “pintou a neve como ninguém”, criando diversos tipos de “paisagem branca, plana, […], sem nenhuma aspereza, toda acolchoada”, Courbet pode ter sugerido ao cineasta a paleta neutra e o tratamento amplo e quase tátil da superfície nevada do bosque, que serve de moldura expressiva ao relato do encontro da menina e à atividade principal da lenhadora, a coleta de raminhos de madeira.
Por fim, um expressionismo difuso caracteriza os desenhos dos mortos em Auschwitz-Birkenau. É importante lembrar que o cineasta, que desenhava desde os dez anos, é responsável pela criação gráfica do filme, mas teve dificuldade para mostrar esse aspecto do trabalho: “Tive a impressão de que me arrancavam um membro, pois é uma prática que era muito pessoal”.
3.
Por meio do desenho, Michel Hazanavicius pretende provocar no espectador a mesma sensação que teve ao ler o texto de Grumberg: a de ter descoberto um clássico. Nesse trabalho foi de fundamental importância o contato constante com os animadores, sem perder de vista “a ambição artística que eu tinha na cabeça para as personagens. Eu desejava que ela levasse a algo profundo, quase melancólico para dar a sensação de um filme que sempre existiu e que estava voltando à tona”.
A questão das personagens deve ter sido igualmente determinante na opção pelo desenho animado. Mais do que personagens esféricas, “organizadas com maior complexidade” e capazes de surpreender o leitor, Grumberg tinha criado tipos ou personagens planas, isto é, “construídas em torno de uma única ideia ou qualidade”. Elas poderiam ser também chamadas de personagens de costumes, apresentadas “por meio de traços distintivos fortemente escolhidos e marcados; por meio, em suma, de tudo aquilo que os distingue vistos de fora”.
O escritor, de fato, cria tipos anônimos, definidos pela profissão e pela condição social (“pobre lenhador”, “pobre lenhadora”), por uma característica física (homem da “cabeça deformada”), pelo papel parental (o pai da menina atirada do trem) ou pela simbologia de que é portador (“mercadoriazinha”; “sem-coração”).
O anonimato só é rompido pelo ato de nomeação das duas crianças que viajavam no trem, Henri (Hershele) e Rose (Rouhrele) e da mãe delas, Dinah/Diane, e pela identidade final da jovem pioneira, Maria Tchekolova, em cuja fotografia o pai reencontra a filha a quem tinha renunciado no passado. O diretor respeita esse anonimato e só revela a nova identidade da criança sem nome no final da película.
Michel Hazanavicius afirma ter introduzido duas mudanças em relação ao conto. Neste, a história do casal que acolhe a “mercadoriazinha” e a do pai que abandona a criança correm em planos paralelos até se encontrarem nos capítulos finais, correspondentes à chegada do ex-prisioneiro num campo de agrupamento e à saída da lenhadora e da menina do bosque, ao encontro dos três no vilarejo e ao episódio da capa da revista.
Essa estrutura é substituída por um movimento que parte “do lado ‘era uma vez’” do conto, deixando que, aos poucos, “a realidade se imiscua na história através dos olhos das personagens”. A segunda mudança diz respeito ao encontro final entre pai e filha. Se, no livro, eles trocam sorrisos, o diretor sentiu necessidade de “mostrar a rejeição da menina” e a percepção do pai, graças ao olhar da filha, de que ele tinha se tornado “um ser totalmente desumanizado. Essa cena obriga-o a escolher a refazer o mesmo sacrifício do começo do filme”.
Essa transformação não é tão simples como aparenta ser nas palavras de Michel Hazanavicius. No conto passa-se certo tempo entre a libertação dos prisioneiros pelos soldados soviéticos e a saída do pai do campo de agrupamento. “Ex-vivo transformado em sombra”, resolve deixar o campo com algum dinheiro no bolso fornecido pela direção e parte em busca “da estrada de ferro, do bosque, das curvas, da velha ajoelhada na neve”.
Encontra uma estrada de ferro abandonada, atravessa bosques, caminha por cidades e povoados “como um espectro, testemunha das libações, do júbilo, das saudações, dos juramentos: aquilo nunca mais, nunca mais”. Num povoado vê queijos “minúsculos […] espalhados sobre uma toalha esquisita” que não combinava com eles. Põe a mão sobre a toalha com algumas moedas e, de repente, compreende. Levanta os olhos para a mulher e para a criança que estava em seu colo; elas lhe sorriem, parecendo encorajá-lo a escolher um queijo.
A menina lhe faz um sinal com os olhos e as mãos, gabando a qualidade do produto. Se o homem não entende a língua falada por ela, entende, porém, que era sua filha. Apanha um queijo, encarando a menina que sorria. Ele mesmo esboça um sorriso, estica a mão trêmula para o rosto da garotinha e acaricia “aquela face tentadora”. A menina agarra sua mão e a leva aos lábios “antes de dar uma risada”.
Constrangido, ele retira a mão e se afasta. Olha fixamente para a mulher e a menina, “como se quisesse gravar nas pupilas, no coração, na alma, a imagem delas de felicidade partilhada”. Pergunta-se se não deveria identificar-se, mas se retira “à custa de um esforço sobre-humano carregado de um misto de alegria e tristeza”. Afasta-se a passos rápidos, pensando que “vencera a morte, salvara a filha com aquele gesto insensato, derrotara a monstruosa indústria da morte. Tivera a coragem de dar um último olhar para sua filhinha reencontrada e reperdida para sempre”.
Essa descrição do encontro está eivada de elementos emotivos, mas é evidente que o pai, apesar do aspecto emaciado, não é a larva humana concebida pelo cineasta, que prefere buscar uma representação mais dramática e patética a fim de sublinhar a desgraça de um sobrevivente do Holocausto e sua escolha irreversível. Não identificar-se por se ver “desumanizado” implica acrescentar doses de drama a uma realidade por si só insuportável.
No conto, a questão é mais nuançada, pois a decisão de não revelar quem era é determinada pelo amor existente entre a mulher e a menina, que o leva a interrogar-se: “Por que romper o equilíbrio? O que tinha a oferecer à própria filha?”. Ao responder “Nada, rigorosamente nada”, o pai assume sua solidão e a tarefa de “carregar o luto da humanidade, o luto de todos os massacrados”, além do luto pessoal e familiar.
O diretor realiza outra mudança significativa quando convida o espectador a adentrar a cidade dos mortos e a encarar o horror estampado naqueles rostos desesperados. No conto, a referência a esse aspecto perturbador do filme resume-se a três linhas: “Quando voltou a si, sentiu-se bem dentro daquela barraca, entre os corpos amontoados. Encontrou o lugar propício para esperar a morte, a libertação enfim”.
Esse trecho é antecedido pela descrição do campo de extermínio depois que os trens pararam de chegar e os poucos sobreviventes eram obrigados a cavar fossas direto na neve para queimar “o excesso de cadáveres amontoados ao pé dos crematórios”. Do mesmo modo, deveriam destruir “os cabelos embalados, já prontos para o uso” e a “montanha de óculos, apertados entre montes de roupas, cavalheiros, damas e crianças”.
Era necessário aguentar até a chegada dos “vermelhos”, mas o pai da menina delirava e se perguntava porque tinha feito “aquele gesto fatal, insensato”, se não teria sido melhor cumprir, junto com a esposa e os filhos, “a finalidade da viagem” para que os quatro se erguessem aos céus “em volutas de fumaça, de fumaça espessa e escura”.
Apesar do tom pacato, quase neutro adotado por Grumberg, essa descrição é arrepiante e permite imaginar o caos que deveria reinar no campo ante o avanço dos soviéticos e a necessidade sentida pelos “caveiras” de “eliminar, junto às últimas testemunhas, os vestígios de seu crime imenso”.
Recriada em imagens, essa cena teria sido impactante, mas Michel Hazanavicius preferiu concentrar-se no resultado final da operação a fim de tornar mais dramático o contraste entre a vida tranquila da menina, apesar das privações advindas da miséria e da guerra, e o destino atroz que a aguardava, caso o pai não a tivesse arrancado dos braços da mãe e jogado na neve.
Na realidade, o filme trabalha com dois registros: um mais poético, caracterizado por um desenho mais suave, mas nem por isso menos expressivo, particularmente na representação das personagens; outro mais rude e carregado, que atinge o apogeu no encontro entre pai e filha junto à mesinha dos queijos. Nesse momento, os dois registros se fundem, mas não se confundem para que o tom mais pacato volte a se impor na sequência da estação ferroviária, quando o pai tem certeza de que seu sacrifício não foi em vão.
Em favor das escolhas do diretor podem ser lembrados dois elementos: a maneira concisa com que representa a separação do casal na chegada a Auschwitz, resumida no olhar trocado pelos dois; e a ausência de palavras depois da canção dolorida que acompanha a sequência do reino dos mortos para que as imagens falem por si.
Outro elemento positivo é a escolha de Jean-Louis Trintignant como narrador. Sua voz embargada pela idade, carregada de “uma humanidade incrível”, nos dizeres de Hazanavicius, confere um tom delicado à narrativa, sublinhando discretamente as imagens que passam diante dos olhos dos espectadores.
Trata-se de um filme manipulador como escreve Caio Coletti? Apesar de o registro gráfico do campo de extermínio e do pai sobrevivente tender para o trágico e o patético, o filme não pode ser inscrito no campo da manipulação, pois o horror estampado naqueles rostos e naquele corpo é o mesmo que se vê nas imagens fotográficas[5] e em dois documentários[6] feitos logo depois da libertação dos campos, que demonstram que o “inimaginável” tinha acontecido.
Por serem muito impactantes, essas imagens se impõem com força, colocando uma cunha nas assertivas de Michel Hazanavicius sobre o objetivo do filme. Se ele é “animado pelas forças da vida”, se pretende reconhecer o papel dos Justos, é igualmente um filme sobre a guerra e o horror dos massacres, como, aliás, é o conto de Grumberg.
No apêndice, o escritor homenageia o avô Naphtali e o pai Zacharie, que partiram de Drancy7 nos comboio 45 (11 de novembro de 1942) e 49 (2 de março de 1943), respectivamente, e ainda Silvia Menkès, sacrificada na câmara de gás no dia de seu primeiro aniversário (4 de março de 1943) e as gêmeas Fernande e Jeannine Wizenfeld, deportadas aos vinte e oito dias (7 de dezembro de 1943).
Fábulas do Holocausto, as duas narrativas entremeiam uma história de amor e solidariedade com outra que reconta o horror da aniquilação de milhões de seres humanos, tendo como resultado imagens poéticas e terríveis, que convidam a um mergulho no que há de melhor e pior no ser humano.
*Annateresa Fabris é professora aposentada do Departamento de Artes Plásticas da ECA-USP. É autora, entre outros livros, de Realidade e ficção na fotografia latino-americana (Editora da UFRGS).
Referência
A mais preciosa das cargas (La plus précieuse des marchandises).
França,Bélgica. Desenho animado, 81 minutos.
Direção: Michel Hazanavicius
Roteiro: Michel Hazanavicius & Jean-Claude Grumberg
Bibliografia
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ANTONIO CANDIDO. “A personagem do romance”. In: ANTONIO CANDIDO et al. A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2014.
CNC. “Michel Hazanavicius: ‘Je m’étais toujours dit que je ne ferai jamais un film sur la Shoah’” (19 nov. 2024). Disponível em: <cnc.fr/cinema/actualites/michel-hazanavicius-je-metais-toujours-dit-que-je-ne-ferai-jamais-un-film-sur-la-shoah>
COLETTI, Caio. “A mais preciosa das cargas é drama de Holocausto manipulador – menos na poesia” (17 abr. 2025). Disponível em: <omelete.com.br/filmes/critica/a-mais-preciosa-das-cargas-animacao>
GASQUET, Joachim. “Ce qu’il m’a dit…”. In: DORAN, Michael (org.). Conversas com Cézanne; trad. Julia Vidile. São Paulo: Editora 34, 2021.
GRUMBERG, Jean-Claude. A mercadoria mais preciosa: uma fábula; trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Todavia, 2019.
GUÉNOT, Valérie. “La plus précieuse des marchandises, un film de Michel Hazanavicius, sortie en salles le 29 novembre 2024” (31 out. 2024). Disponível em: <radiofrance.fr/franceinter/la-plus-precieuse-des-marchandises-un-film-de-michel-hazanavicius-sortie-en-salles-le-20-novembre-2024-8894330>
MURY, Cécile. “Cannes: ‘La plus précieuse des marchandises’, puissant chef-d’oeuvre au coeur du pire” (24 maio 2024). Disponível em: <telerama.fr/cinema/la-plus-precieuse-des-marchandises-puissant-chef-d-uvre-au-c-ur-du-pire-7020606.php>.
“NAZI Concentration Camps (film)”. Disponível em: <en.wikipedia.org/wiki/Nazi_Concentrstion_Camps_(film)>.
PAVAN, Benoît. “La plus précieuse des marchandises, le conte animé de Michel Hazanavicis” (24 maio 2024). Disponível em: <festival-cannes.com/2024/la-plus-precieuse-des-marchandises-le-conte-anime-de-michel-hazanavicius>.
PERRAULT, Charles. “O Pequeno Polegar”. In: Contos de fadas: de Perrault, Grimm, Andersen & outros; trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2010.
PULTZ, John; MONDENARD, Annie de. Le corps photographié. Paris: Flammarion, 1995.
SACKS, Sheila. “Digitalização dissemina imagens que o mundo não viu”. Observatório da Imprensa, n. 871, 6 out. 2015. Disponível em: <observatoriodaimprensa.com.br/memoria-do-holocausto/digitalizacao-dissemina-imagens-que-o-mundo-nao-viu>.
Notas
[1] Conto de fadas popular transcrito e transformado por Charles Perrault, que o publica no livro Mamãe Gansa (Les contes de ma mère, l’Oye, 1697). Um casal de lenhadores abandona seus sete filhos na floresta por não ter como alimentá-los. O caçula, Pequeno Polegar, consegue roubar de um ogro um par de botas encantadas, amealha uma boa fortuna no ofício de mensageiro e volta para casa, onde é recebido com muita alegria.
[2[ Termo cunhado pelo coronel Yves Picot para designar os sobreviventes da Primeira Guerra Mundial que tinham sido feridos em combate e traziam graves sequelas físicas sobretudo no rosto.
[3] Courbet introduz praticamente o tema da paisagem nevada na pintura francesa e dedica a ele oitenta obras a partir de 1856-1857.
[4] O tratamento dado aos mortos tem certa assonância com o Memorial Internacional (1968) de Dachau, no qual se veem corpos esqueléticos, presos em arame farpado, com os braços estendidos em poses agônicas. Seu autor é o artista iugoslavo Nandor Glid, um sobrevivente do Holocausto.
[5] Alguns profissionais destacam-se nessa tarefa: Lee Miller, que fotografa Dachau e Buchenwald para a revista Vogue, certa de que suas imagens estavam aquém do que tinha visto; Margaret Bourke-White, autora de tomadas perturbadoras de Buchenwald e Leipzig-Mochau; George Rodger, correspondente de Life, que pensa em abandonar a profissão ao perceber que estava preocupado em conseguir o melhor enquadramento para os amontoados de corpos descarnados de Bergen-Belsen. Miller acompanha o envio de suas fotografias com o seguinte comentário “Suplico-lhes acreditar que isso é verdadeiro”.
[6] Trata-se de German Concentration Camps Factual Survey (Inspeção local dos campos de concentração alemães) e de Nazi Concentration and Prison Camps (Campos de concentração e de detenção nazistas), ambos rodados no calor da hora. Dirigido por Sidney Bernstein, que contou com a colaboração de Richard Crossman e Alfred Hitchcock, o primeiro começa a ser realizado em abril de 1945, mas sua produção é suspensa no mês de setembro. Dedicado à libertação de onze campos, dentre os quais Auschwitz-Birkenau, o documentário mostrava “cadáveres sem roupa [que] se misturam aos doentes e moribundos que agonizam sob a indiferença daqueles que reúnem forças para disputar algum resto de comida. Um cenário macabro em que proliferam a imundície, as epidemias e a fome”. Sheila Sacks, autora dessa descrição, lembra que a presença de Hitchcock foi determinante em dois aspectos: na ênfase dada à proximidade de aldeias e cidades das fábricas da morte e na opção por planos longos e sem cortes para dar maior credibilidade ao documentário. Esquecido durante longos anos, o filme foi apresentado em estado bruto na televisão norte-americana em 1985 e em versão digitalizada em 2015. A segunda realização, dirigida por George Stevens, lança mão de imagens paradas e em movimento, para registrar a libertação de doze campos na Áustria, Bélgica e Alemanha. Será usada como evidência nos processos de Nuremberg (1945-1946) e no de Adolf Eichmann (1961).
[7] Criado em agosto de 1941, durante o governo de Vichy, o campo de internação de Drancy transforma-se em campo de trânsito em março de 1942, sendo apelidado de “antecâmara da morte”. Até 1º de julho de 1943 é controlado pela polícia francesa; depois dessa data, sua administração é exercida pelos alemães. Sua libertação pelas tropas aliadas ocorre em 17 de agosto de 1944. Mais de sessenta comboios dirigidos a Auschwitz partiram das estações de Bourget (1942-1943) e de Bobigny (1943-1944), transportando cerca de 67.000 judeus, dos quais 6.000 eram crianças. Outros internos do campo, situado a nordeste de Paris, foram enviados para Sobibor, construído em 1942. Só houve 2.000 sobreviventes entre os judeus deportados de Drancy.
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