Por SOFIA CAMPOS TEIXEIRA*
Os nossos direitos previstos pela constituição brasileira, só existem no papel e nas palavras demagógicas dos falsos líderes, que se arvoram em protetores dos negros em ocasiões oportunas
Transcorre hoje o 61.º aniversário da abolição da escravatura no Brasil, resultante das árduas lutas travadas por Patrocínio, Luiz Gama, Antônio Bento e outros.[i]
Mais que nenhuma, as lutas de 13 de maio, embora singelas, atualmente sem grandes atavios decorativos, nem luzidos e espetaculosos aparatos oficiais, tocara profundamente, hoje, não só no coração do elemento negro, mas do branco também.
E isto sucede porque o dia 13 de maio, se em 1888 foi considerado a data da libertação dos escravos, hoje representa a de todos os que trabalham, todos os que recebem salários para qualquer trabalho, quer negros ou brancos, notando-se assim uma escravidão moderna.
É sempre o que vemos a opressão dos fortes sobre os fracos, a exploração do homem pelo homem.
Se a natureza deve ser de todos; se o homem não deve ter direito de explorar o trabalho do seu semelhante – a terra e outros meios de produção devem ser propriedade social. Todos os seres humanos, brancos ou negros, devem gozar de igualdade de condição social, posto que não é justo que enquanto a fome e a miséria rondam os lares de uns, outros luxem e desperdicem à vontade.
Como é sabido, os negros constituem uma grande parte dos pobres famintos e, portanto, dos escravos modernos.[ii] O número de mulheres é considerável. Mas a escrava moderna, não mais representa a mulher negra, a mãe de 88, que vivia sob a proteção dos Senhores de engenho, e sim a mulher que se dispõe a lutar pela igualdade de condição social, cultural e econômica. O seu ideal é o de colaborar com os seus irmãos para o alevantamento cultural da raça negra no Brasil, pois, desde a propalada Abolição até os nossos dias, os negros sempre viveram à margem da sociedade.
Toda gente sabe que depois da 1ª guerra mundial a mentalidade da mulher branca ou negra mudou completamente.
Ela não se submeterá mais à simples condição de dona de casa ou à de Mãe Preta da senzala! Não, senhores: as mulheres que foram verdadeiras heroínas anônimas durantes as últimas guerras, que tudo fizeram pelas suas pátrias, desempenhando desde os mais altos cargos até os mais ínfimos, essas mulheres escreveram páginas de alto heroísmo cooperando decisivamente para o término das lutas.
Hoje, não só o nosso Brasil é diferente! O mundo todo sofre essa transformação. A mulher já tem sua liberdade profissional. Ela já não se dedica somente à espera do problemático casamento! Não! A situação evoluiu e com grande lucidez. E a mulher que lutou até os nossos dias, continuará lutando para que haja uma transformação em todas as camadas sociais, visto que a sua colaboração na vida atual é imprescindível.
Como socialista, creio que podemos levar esta luta a todos os cantos do país, em benefício da coletividade, porque é uma luta sincera e não artimanha para proveitos pessoais como as que vemos em vésperas de eleições.
Contemplando a nossa carta geográfica, verificamos no território nacional o triste espetáculo da vida do negro brasileiro. As velhas capitais do norte, como Salvador, Recife, Fortaleza e outros lugares de incumbem de nos apresentar constantemente o panorama social e econômico daqueles Estados, representado pelo drama das migrações nordestinas. Da capital da República, já conhecemos o problema dos morros e favelas. Aqui no Estado de S. Paulo, na capital e no interior, também a situação é calamitosa, e se salientando o elemento negro dentre os milhares de desajustados. É a miséria material e a miséria moral.
Os nossos direitos previstos pela constituição brasileira, só existem no papel e nas palavras demagógicas dos falsos líderes, que se arvoram em protetores dos negros em ocasiões oportunas. (…) [iii]
Julgando que, para a conquista social, política ou econômica de qualquer povo seja necessária uma luta vigorosa contra todos os adversários, conclamo à luta pelo soerguimento social, cultural e econômico, os negros principalmente, visto serem eles a maior parcela do proletariado brasileiro, cuja expressão de vida coletiva tem sido até hoje a ignorância, o pauperismo, a imoralidade que, incontestavelmente, são o caminho à tuberculose e às prisões, em prejuízo de todas as necessidades humanas e mesmo da própria nação.
Companheiros, aqui está, em rápidas linhas, o meu pensamento, fruto da observação diuturna que tenho feito em torno do problema do negro. Concito, pois, às mulheres que aqui se encontram e aos homens que sabem do valor de suas esposas que se formem no sentido de elevar não só o elemento negro, mas o proletariado em geral ao lugar a que tem direito, e assim teremos resolvido o maior problema do Brasil – completa igualdade, social, jurídica e econômica de todos os brasileiros. Assim teremos um verdadeiro 13 de maio.
* Sofia Campos Teixeira foi professora da escola básica e do Instituto Paulista de Surdos-Mudos; militante do movimento negro, militante feminista e militante socialista junto à Esquerda Democrática e ao Partido Socialista Brasileiro.






Referências
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Notas
[i] Pesquisa, edição e notas de Diogo Valença de Azevedo Costa (UFRB) e Paulo Fernandes Silveira (FEUSP e GPDH-IEA).
[ii] Esse texto foi publicado na Folha Socialista, em 1949. Trata-se da transcrição da comunicação que Sofia Teixeira fez na sede do Partido Socialista Brasileiro (PSB), no evento que comemorou o 61º aniversário da libertação dos escravos no Brasil – o dia 13 de maio de 1988. Nesse evento, também falaram Febus Gikovate e Luiz Lobato.
Quatro militantes do movimento negro que participaram da pesquisa UNESCO, em São Paulo, também militavam no PSB: Sofia Teixeira, Luiz Lobato, Geraldo Campos de Oliveira e Francisco Lucrécio (CUTI, 2007).
Em seu livro sobre a esquerda democrática, Alexandre Hecker refere-se à Sofia Teixeira como: “mulher negra símbolo para a democracia socialista” (1998, p. 96).
Segundo Hecker, além de ser o principal órgão divulgador do PSB paulista, a Folha Socialista tornou-se “o elemento por excelência de arregimentação e unificação de suas fileiras díspares” (1998, p. 111). Um dos editores do jornal era Antonio Candido de Mello e Souza, professor da USP e amigo de Roger Bastide e Florestan Fernandes.
Nos anos de 1940 e 1950, Antonio Candido, Sofia Teixeira, Luiz Lobato, Geraldo Oliveira e Francisco Lucrécio concorreram às eleições legislativas pela Esquerda Democrática e pelo PSB (SOTERO, 2015).
Ao tomar a trabalhadora e o trabalhador negros como escravos modernos, Sofia Teixeira repercute uma ideia comum a outros militantes do PSB.
Um texto do Comitê Universitário Pró-candidatura de Geraldo Campos de Oliveira, publicado na Folha Socialista, sustenta que uma das razões para os estudantes apoiarem esse candidato negro é a união das forças contra o capitalismo escravizador: “a solução do problema do negro, da superação das relações de produção capitalistas e do aniquilamento da exploração do homem pelo homem” (1950, p. 2).
No artigo “Os substitutos dos escravos”, também publicado na Folha Socialista, o então vereador Cid Franco afirma que uma revolução socialista seria como uma segunda abolição: “No tempo da escravidão do negro, havia escravos que achavam impossível a sua liberdade. (…) Hoje, despolitizados, sem consciência de classe, há trabalhadores que também acham impossível esta segunda abolição, pregada pelos socialistas: a abolição da propriedade privada dos meios de produção e distribuição” (1950, p. 4).
Cid Franco reconhece que o título do seu artigo foi inspirado num discurso de campanha do líder abolicionista Joaquim Nabuco, proferido em praça pública: “artistas e operários, não sois mais que os substitutos dos escravos” (1885, p. 51).
Um mês antes de Cid Franco publicar este artigo, o jornal Quilombo fez uma reportagem intitulada “Prossegue a cruzada para a segunda abolição” (1950). A reportagem reproduz discursos de Franco e de outros políticos em defesa dos direitos das pessoas negras. O projeto de lei nº 562, que daria origem, em 1951, à Lei Afonso Arinos, é considerado pela reportagem como um triunfo na cruzada para a segunda abolição.
Ao que parece, Sofia Teixeira e outros militantes do PSB compreendiam a segunda abolição como inserida no horizonte das lutas para a criação do socialismo no Brasil.
O tema da segunda abolição foi levado pelo militante Nestor Borges (2024) às mesas redondas da pesquisa UNESCO.
[iii] As frases finais deste parágrafo foram omitidas, pois sua transcrição pela Folha Socialista possui equívocos que tornam essa passagem sem sentido.
[iv] Essa é uma das páginas da comunicação “Sobre as domésticas”, que Sofia Teixeira apresentou na Primeira Convenção Feminina Estadual, realizada em São Paulo, em fevereiro de 1949 (MORENTE, 2015). Esse documento encontra-se no v. 4 do Prontuário 108021, da Federação das Mulheres do Estado de São Paulo, no Arquivo Público do Estado de São Paulo (APESP).
Em 15 de março de 1951, a polícia de São Paulo fechou a Federação das Mulheres de São Paulo e apreendeu todos os documentos que estavam em sua sede, “sob a alegação de exercer atividades antinacionais, visto que suas integrantes teriam ligação com o comunismo” (MORENTE, 2015, p. 30).
Desde a sua criação, em 1948, até junho de 1949 (TEIXEIRA, 1949c), Sofia Teixeira foi presidente da Federação das Mulheres de São Paulo. Foi substituída por Helena Maria Nioac, esposa de Caio Prado Júnior (SOTERO, 2015). Assim como outras militantes da Federação, Teixeira foi vigiada pelo DOPS nesse período (SOFIA CAMPOS TEIXEIRA, 1950).
Em 1945, Sofia Teixeira passou a dirigir o Departamento Feminino do Diretório de São Paulo da Convenção Nacional do Negro Brasileiro (SOTERO, 2015).
Publicou na imprensa alguns artigos sobre os direitos das mulheres trabalhadoras (TEIXEIRA, 1946; TEIXEIRA, 1947; TEIXEIRA, 1949a). No artigo “28 de setembro”, data em que foi promulgada a Lei do Ventre Livre (1871), Teixeira refere-se à Mãe Preta, um dos primeiros símbolos do feminismo no Brasil (BISPO, 2023).
No fim do artigo, Sofia Teixeira critica a exploração dos trabalhadores e trabalhadoras brancas e negras na sociedade de classes:
“Libertados os escravos, foi instituído o trabalho livre e remunerado, crescendo rapidamente as atividades produtoras. Empenharam-se então os senhores feudais em organizar novos métodos econômicos, construindo um novo tipo de escravo no Brasil – o assalariado. Nesta nova classe estavam e estão até os nossos dias, lutando por um melhor padrão de vida, homens e mulheres, brancos e negros” (1947, p. 2).
Com o apoio do Teatro Experimental do Negro (TEN), Sofia Teixeira colaborou na criação da Associação das Empregadas Domésticas (SOTERO, 2015). Fundada em 10 de maio de 1950, suas primeiras diretoras foram Elza de Souza e Arinda Serafim (OLIVEIRA, 2018).
Na comunicação “Sobre as domésticas”, Sofia Teixeira defende uns alguns direitos básicos para as empregadas domésticas:
“a) férias pagas anual ou semestralmente; b) descanso semanal, mediante acordo entre os patrões e empregados; c) horário diário de trabalho; d) aviso prévio de ambas as partes; e) estabilidade; f) aposentadoria; g) amparo aos filhos das empregadas, pois elas nem sempre terão patrões que aceitam seus filhos juntos; h) serviço médico, que poderá ser atendido imediatamente em qualquer um dos Institutos de Aposentadoria, ao invés do ‘Serviço Médico Legal’” (1949b, p. 4-5).
[v] Essa imagem é do comício que ocorreu no 1º de maio de 1949, onde 3000 pessoas concentraram-se no Largo 7 de Setembro (ALCANÇOU, 1949). Sofia Teixeira foi uma das oradoras do PSB. No século XIX, havia nessa região um pelourinho (MORAIS, s/d), por ali também ficava a Igreja dos Remédios, que abrigou o movimento abolicionista dos Caifazes, liderado por Antônio Bento.
Nos jornais dos anos 1940 e 1950, aparecem referências das atividades de Sofia Teixeira, especialmente, suas participações como oradora nos comícios organizados pelo PSB. Em 1947, Teixeira foi candidata a deputada estadual pela Esquerda Democrática (NOVOS CANDIDATOS, 1947). Em 1950, ela foi candidata a deputado federal pelo PSB (SOFIA CAMPOS TEIXEIRA, 1950).
Uma reportagem publicada em 1942 registra a aprovação de Sofia Teixeira nos exames de habilitação ao magistério particular (ESCOLAS E CURSOS, 1942). Em 1953, Teixeira consta entre as alunas aprovadas para a segunda série do Curso Normal de Formação de Professoras na didática especial dos Surdos-Mudos (INSTITUTO NACIONAL, 1953). Em outubro de 1954, uma nota do Instituto Paulista de Surdos-Mudos noticia a inauguração de um retrato de Teixeira pela passagem do 1º ano de sua morte (INSTITUTO PAULISTA, 1954).
[vi] Essa é uma anotação dos cadernos de pesquisa de Florestan Fernandes sobre o primeiro encontro com mulheres militantes do movimento negro. A pesquisa UNESCO sobre o preconceito racial em São Paulo, coordenada por Roger Bastide e Florestan, promoveu mesas redondas com homens e mulheres militantes, e encontros, apenas, com as mulheres militantes, na Associação José do Patrocínio (CAMPOS, 2014). O diretor da José do Patrocínio naquele momento era Jorge Teixeira, que foi Secretário da Comissão para o Estudo das Relações Raciais da pesquisa UNESCO (TEIXEIRA, 2024). Sofia Teixeira também exercia um papel importante na José do Patrocínio (CAMPOS, 2014).
[vii] No início de 1964, pouco antes do golpe militar, Florestan Fernandes defendeu sua tese de cátedra A integração do negro na sociedade de classes. Em nota explicativa, Florestan afirma que o texto “teve de ser elaborado um tanto às pressas, entre janeiro de 1963 e abril de 1964” (2014a, p. 21). Foi nesse clima político que a tese foi redigida. Em setembro de 1964, Florestan foi preso pelos militares (MOVIMENTO ESTUDANTIL 1º DE MAIO, 2024).
Na tese, Florestan retoma as transcrições das mesas redondas de que participou com a militância do movimento negro no desenvolvimento da pesquisa UNESCO sobre o preconceito racial (BASTIDE; FERNANDES, 1955). O depoimento de Sofia Teixeira sobre a incidência do alcoolismo na comunidade negra paulistana no período posterior à abolição foi analisado por Florestan (2008a) no capítulo intitulado: pauperização e anomia social.
Nos anos 1950, o alcoolismo, a mendicidade, a vadiagem, a prostituição e a desordem eram considerados crimes. Um ano antes de começar a pesquisa UNESCO, representando a comitiva de professoras e professores da USP, Roger Bastide (1982) apresentou no I Congresso do Negro Brasileiro uma tese contra o estereótipo preconceituoso de que as pessoas negras teriam uma propensão racial para a criminalidade.
O alcoolismo na comunidade negra também foi abordado nos textos da pesquisa UNESCO, especialmente, na pesquisa desenvolvida por Virgínia Bicudo (1955). Em seus textos para pesquisa UNESCO, Florestan também analisou o pauperismo e a vadiagem posterior à abolição. O conceito de anomia aparece nas passagens em que Florestan tratou da desorganização social das pessoas negras, escravizadas e libertas, durante o regime servil.
Na tese A integração do negro na sociedade de classes, o conceito de anomia surge atrelado aos depoimentos de Sofia Teixeira e de outros militantes socialistas do movimento negro que questionam não apenas o alcoolismo e a vadiagem, mas a apatia de parte da comunidade negra frente às injustiças sociais a que está submetida na sociedade classes. Esses depoimentos parecem indicar a frustração por uma revolução que tardava a acontecer.
Uma das referências de Florestan no emprego dos conceitos de anomia e apatia é a sociologia funcionalista de Robert Merton. Para esse autor, a anomia traduz a inadaptação de um grupo social aos valores de uma determinada sociedade. O retraimento e a apatia seriam manifestações da anomia social: “abandono substancial tanto das metas culturais anteriormente estimadas, quanto das práticas institucionalizadas dirigidas a tais metas” (MERTON, 1968, p. 263).
Podem figurar na categoria das pessoas que não compartilham da escala comum de valores: “psicóticos, artistas, párias, proscritos, errantes, mendigos, bêbados crônicos e viciados em drogas” (MERTON, 1968, 227). As análises sociológicas de Robert Merton partem de pesquisas empíricas rigorosas. Ele procura identificar as variáveis envolvidas em cada fenômeno social, evitando generalizações equivocadas.
Essa pode ser uma estratégia para desconstruir estereótipos. Foi o que Robert Merton fez em seu estudo sobre a pobreza e a criminalidade: “A ‘pobreza’ não é uma variável isolada, é apenas uma dentro de um complexo de variáveis sociais e culturais, identificáveis e interdependentes. A pobreza em si e a consequente limitação de oportunidades não bastam para produzir uma proporção alta e conspícua de comportamento criminoso” (1968, p. 220).
O depoimento de Sofia Teixeira sobre o conformismo de uma parte da comunidade negra é bastante duro: “Muito embora tivessem aceitado anteriormente todas as formas de opressão de que foram vítimas, após a abolição, libertos, uma vez senhores de si, de sua própria vontade, muitos dos que não sabiam para onde iam, nem o que queriam, perderam a vontade dirigente, a iniciativa, a autodireção. E, então, postados à margem da sociedade, vendo-lhe muitas vezes barradas todas as entradas, passaram a palmilhar o caminho do vício, do declínio, relaxaram-se, entregaram-se a um conformismo fatal e pernicioso” (QUARTA MESA, 1951, p. 369).
Em sua tese, Florestan questiona a amplitude da incidência do alcoolismo na comunidade negra paulistana: “O alcoolismo constitui outro problema social, cuja ocorrência no ‘meio negro’ tem sido exagerada e mal compreendida. (…) Em termos quantitativos, parece que o número de alcoólatras propriamente dito era pequeno, seja em si mesmo, seja em confronto com elevado número de frequentadores habituais de bares e botequins” (2008a, p. 195).
Num dos textos elaborados para a pesquisa UNESCO, Florestan elenca diversas estratégias de resistência e de rebelião das pessoas negras escravizadas: “A documentação demonstra que tais eclosões de desajustamentos e conflitos sociais, inerentes ao próprio regime servil brasileiro, ocorreram abundantemente em São Paulo” (1955, p. 89).
Após a abolição, brotaram, espontaneamente, diversos movimentos de conscientização e de repulsa à opressão impingida à comunidade negra. Todavia, segundo Florestan, “a rebelião que se ensaiava não possuía o caráter de uma revolução contra a ordem estabelecida” (2008b, p. 9). No período entre guerras, a organização do protesto negro ganhou força e conseguiu “abalar a apatia do ‘meio negro’” (FERNANDES, 2008b, p. 12).
De certo modo, nesses trabalhos, Florestan incorpora a questão formulada por Caio Prado Júnior em sua interpretação marxista da realidade brasileira: “onde encontrar o sujeito histórico da mudança social depois do estudo dessa realidade?” (SECCO, 2010, p. 16).
As pesquisas de Florestan sobre a pauperização e a anomia social visam compreender porque as rebeliões da comunidade negra não geraram uma revolução contra a ordem estabelecida.
Num congresso com outros pesquisadores marxistas, realizado em 1971, no México, Florestan utiliza o conceito de anomia para analisar o que impediria as massas despossuídas de assumirem o lugar de sujeitos da revolução: “A ausência de certas dimensões estruturais e de certos dinamismos faz com que as contradições de classe sejam amortecidas, anuladas e em regra pouco dramatizadas como e enquanto tais (graças à opressão sistemática, à omissão generalizada e à anomia das massas despossuídas)” (1975, p. 35-36).
Em meados dos anos 1970, Florestan mudou sua interpretação quando conheceu os trabalhos de Frantz Fanon (1968) e dos Panteras Negras (SILVEIRA, 2022). Contra o marxismo ortodoxo, Fanon e os Panteras Negras defendem a possibilidade de formar as massas despossuídas para se transformarem em sujeitos da revolução: “organizar o irmão que está cafetão, o irmão que está se prostituindo, o desempregado, o oprimido, o irmão que está roubando bancos, todo aquele que não é politicamente consciente” (SEALE, 2020, p. 45).
No livro Sobre a violência, Hannah Arendt ironiza as teses de Fanon e dos Panteras Negras sobre o poder revolucionário do lumpemproletariado. No mesmo período, Arendt sustentou no The New York Times que “a anomia (lawlessness) é inerente em todas as pessoas desenraizadas” (2010, p. 195). Essa aparente aporofobia nas posições de Arendt, se nos é lícito empregar, nesse caso, o conceito de Adela Cortina (2018), também se dirigia às comunidades judaicas pobres (BUTLER, 2017), principal origem do conceito marxista de lumpemproletariado.
Curiosamente, a teoria de Merton sobre a anomia não impede que as massas despossuídas possam se tornar sujeitos da revolução: “O resultado da anomia pode ser apenas um prelúdio para a formulação de novas normas, e é esta a reação que temos descrito como ‘rebelião’ na tipologia da adaptação. (…) Quando a rebelião se torna endêmica numa parte substancial da sociedade, proporciona um potencial para a revolução, a qual reformula tanto a estrutura normativa quanto a social” (1968, p. 267).
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