Por DANIEL BRAZIL*
Posfácio do livro recém-lançado de Chico Lopes
Chico Lopes é um autor de trajetória coerente e consolidada na literatura brasileira. Nascido em Novo Horizonte, pequena cidade do interior paulista, e tendo vivido lá até os quarenta anos, toda a sua formação estética se deu através de muita leitura e um grande amor pelo cinema. Isso resultou numa mescla de temáticas universais e um grande apuro na criação de imagens literárias, que frequentemente dialogam com a poesia. Esta vocação imagética naturalmente também o conduziu para a pintura, onde desenvolveu um estilo muito pessoal.
Não se trata de mera blague afirmar que sua prosa tem muito de poético, e seus versos sempre carregam temáticas reflexivas, que tem um fundo de prosa. Chico Lopes não se contenta com o brilho superficial, o jogo de palavras, os formalismos ocos. Busca sempre a profundidade, os labirintos da alma, o desconforto existencial, em toda a sua obra.
A escolha do cenário onde se desenrolam suas tramas – as pequenas cidades do interior que conhece tão bem – pode induzir algum incauto a considerá-lo um escritor regionalista. Nada mais errado. Chico quase não toca na questão agrária, nas desgraças climáticas, na vida de agricultor, vaqueiro ou jagunço, características da chamada literatura regionalista. Seus personagens são homens e mulheres urbanos, ou no máximo suburbanos, que carregam conflitos, frustrações e desejos detectáveis em qualquer cidade do planeta.
O desconforto do mundo, a sensação de estar sempre fora do lugar – e que lugar seria esse, afinal? – a busca por coisas intangíveis, as perversões e desvios do ser humano são os combustíveis de sua ficção. Os personagens muitas vezes são anônimos, assim como as cidades onde transitam, e não raro vocalizam em primeira pessoa sua perplexidade.
Não é possível chamar esta coletânea de “contos de maturidade”, uma vez que o autor já estreou maduro e dominando as sutilezas da escrita. É notável sua coerência temática e estilística desde os primeiros contos, publicados em 2000 (Nó de sombras).
Tomemos a narrativa que abre esta coletânea, Episódio de Caça. É um tema caro ao autor, o do vulto no escuro, o assediador misterioso que nunca se revela. Da mesma forma que os artistas plásticos retornam metodicamente a certos motivos, sempre buscando aprofundá-los ou descobrir nuances, Chico Lopes em vários momentos redesenha estes personagens sombrios e misteriosos, sempre acrescentando novos ângulos. Esta permanente investigação inclusive resultou na novela O estranho no corredor, prêmio Jabuti em 2012.
O Assobio, segundo conto deste volume, mostra outra face da escrita de Chico Lopes: a naturalidade com que escreve em voz feminina. Aqui em formato mais lírico, mas também às vezes de forma mais dramática, como em O Nome no Ar e Perdendo Heitor, Chico coloca as mulheres em pé de igualdade com os personagens masculinos: carentes, inseguras e torturadas pelos seus fantasmas.
Outro personagem caro, o pai ausente, às vezes um sulamericano de língua hispânica, ressurge em O legado e Um gesto no escuro. Contos que são afluentes do romance A ponte no nevoeiro, publicado em 2021, onde a pequena cidade ganha nome (Verdor), e o cenário é muito próximo de seu livro de memórias A herança e a procura, de 2012.
Alguns contos comprovam a habilidade do autor em pintar a realidade em tons mais crus, até cruéis, como o marcante White Christmas ou o excelente A Lâmpada. Outros elegem como mote o estranhamento psicológico, o desequilíbrio social causado por um fator externo, como a chegada de uma estrangeira na pequena cidade, em Estrela de Junho. Um tema universal, já abordado no cinema e na literatura, ganha neste conto tonalidades brasileiras bem características, decantadas pelo estilo pessoal do autor.
O caso dos pés é exemplar do que José Paulo Paes definiu como “o pobre-diabo na literatura brasileira”, ao estudar a relevância deste perfil em vários autores clássicos. A pesquisadora Lohanna Machado, que incluiu a literatura de Chico Lopes em sua dissertação de mestrado, retomou e atualizou o conceito de Paes ao abordar a ficção contemporânea do país. Também A lâmpada e hóspedes do vento podem ser considerados emblemáticos desta vertente, que abrange os vagabundos, os zés-ninguéns, os funcionários de baixa extração, os deserdados e os velhos solitários. Estão todos aqui, na paisagem humana configurada nestes contos.
A narrativa que fecha o volume, Certo pássaro noturno, retoma a linguagem mais poética e a obsessão pelo inatingível. O pássaro misterioso, tantas vezes presente na obra pictórica de Chico Lopes, ganha presença simbólica neste conto. É como se os homens fantasmagóricos que surgem em vários momentos de sua literatura se corporificassem num pássaro, talvez mítico, para que o personagem enfim se encontre com a causa de suas angústias e finalmente “um sim paire em sua boca”.
Convido todos a uma releitura destes contos. Certamente encontrarão muito mais do que eu pude entrever nestas linhas, e não sairão decepcionados. Pelo contrário, consolidarão a certeza de que Chico Lopes é um autor singular na literatura brasileira contemporânea.
*Daniel Brazil é escritor, autor do romance Terno de Reis (Penalux), roteirista e diretor de TV, crítico musical e literário.
Referência
Chico Lopes. A noite mais vasta. São Paulo, Editora Lavra, 2024.
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