A periferização da França

Imagem: Anastasia Shuraeva
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Por FREDERICO LYRA*

A França sobre uma transformação cultural e territorial drástica, com a marginalização da antiga classe média e o impacto da globalização na estrutura social do país

1.

Em notícia recente, o McDonald’s, famosa multinacional norte-americana de fast food, anunciou que, neste ano de 2025, estará abrindo cinquenta novas lanchonetes espalhadas por todo o território francês.[i] A empresa conta hoje com mil e quinhentos estabelecimentos espalhados pela França, trezentos dos quais inaugurados nos últimos dez anos, muitos deles em cidades ou vilarejos minúsculos e isolados, tais como Châtaigneraie e Saint-Geniès-de-Malgoirès, ambos com menos de três mil habitantes e situados, respectivamente, na Vendée e no Gard, dois dos departamentos mais pobres e menos populosos da França.

Como notou recentemente um antigo ministro: “Dois terços das comunas francesas não têm mais lojas. Sobretudo, logicamente, elas não têm nem um bistrô nem uma cafeteria.” Daí a importância do conglomerado norte-americano: “Em muitas pequenas cidades francesas, o McDonald’s agora é cobiçado pelas próprias autoridades locais e por supermercados de médio porte”. Agora é o McDonald’s que, às vezes, mantém um pouco da vida social. Não por acaso, a empresa internacional se engaja como pode em cumprir a promessa do slogan desta repartição nacional: “Cada francês tem direito ao seu McDonald’s a menos de vinte minutos da sua casa”.[ii]

O processo de periferização, tal qual é conceitualizado pelo geógrafo Christophe Guilluy, na interpretação que ele elabora da sociedade francesa, é a contraparte interna e necessária da maneira como o processo de globalização incide no país. O impulso dado pela deslocalização das indústrias e internacionalização das cadeias produtivas, isto é, pela nova divisão internacional do trabalho, resultou, entre várias outras coisas, na expansão de lanchonetes McDonald’s por todo o território francês. Embora tenha ares de anedota ou de analogia forçada, não custa lembrar que o primeiro desses fast foods foi inaugurado em 1979, no momento exato em que o processo de reestruturação produtiva dava os seus primeiros passos.

Muito além de uma análise economicista, Christophe Guilluy teoriza o longo processo de transformação da França em “uma sociedade ‘americana’ como as outras”.[iii] Não se trata, no entanto, de mais uma teoria antiamericana vulgar, mas de uma descrição objetiva de um processo que implicou na transformação sociocultural de um país cuja socialização de uma parcela cada vez maior da população ocorre por sua integração nas cadeias de consumo internacionais de produtos culturais cujos modelos não eram outros senão aqueles mais bem adaptados à nova maneira de funcionamento do capitalismo – não por acaso, de origem norte-americana.

2.

A transformação cultural, no entanto, é apenas um dos polos da equação elaborada por Christophe Guilluy. O fundo do problema é territorial, como, por sinal, a ocupação territorial do McDonald’s indica. O processo de periferização, de acordo com Christophe Guilluy, se dá de duas formas principais. Por um lado, refere-se ao deslocamento gradual das classes trabalhadoras que saem das grandes metrópoles em direção às periferias francesas.

Diante da globalização, os centros urbanos estão concentrando toda a riqueza e os empregos qualificados do país, tornando-se rapidamente lugares elitizados dos quais as classes médias e baixas têm sido, aos poucos, expulsas. A desindustrialização tornou impossível absorver toda a população na nova configuração social do país. “A questão social não está confinada ao outro lado do anel viário, mas ao outro lado das metrópoles, em áreas rurais, cidades pequenas, cidades de médio porte e certas áreas suburbanas onde 80% das classes trabalhadoras vivem atualmente”.[iv]

A globalização é acompanhada por um crescimento da desigualdade interna aos países, além de uma ideologia multicultural e novas distinções de classe. Um dos efeitos é tornar as classes populares dos antigos países centrais dispensáveis. Longo processo de desligamento dos territórios menos rentáveis à globalização, a periferização começou por uma reorganização territorial, à qual se seguiram os efeitos eleitorais, políticos e sociais.

Um exemplo é a transformação do mundo do trabalho metropolitano francês, que hoje é composto fundamentalmente por quadros dirigentes – muito embora nem todos, de fato, dirijam algo no interior das empresas. Boa parte ocupa cargos que reforçam uma distinção social hierárquica direcionada para o exterior da instituição, sem interferir no funcionamento interno das empresas ou do Estado, mas contribuindo para o agravamento do abismo entre as classes. Afinal, os cargos de quadros são comuns no mundo do trabalho metropolitano urbano e raros nas periferias.

Essas áreas periféricas, onde a antiga classe média está situada, têm sido descoladas do funcionamento da nação. As pequenas cidades e as cidades de médio porte estão ficando cada vez mais pobres e desassistidas. Essas áreas vêm sendo relegadas e deixadas em segundo plano, deixando de participar da vida social e econômica do país. Entre outras coisas, elas têm perdido praticamente todos os serviços públicos que eram o alicerce do antigo Estado social – e até mesmo para além dele: escolas, hospitais, correios, bancos, bares, restaurantes etc. Não por acaso, é o McDonald’s que condensa a socialização de localidades nas quais a sociedade tem desaparecido.

Não se trata de uma oposição simples entre urbano e rural. Embora a França periférica inclua parte do mundo rural, ela compreende sobretudo as cidades médias e pequenas que estão fora do processo de concentração de capital. O geógrafo insiste continuamente que esse processo tem conduzido ao fim da classe média ocidental. A antiga faixa social que compunha a maioria da população se mantinha estável pela ausência de conflito social aparente.

Porém, sob o radar, a desigualdade crescente e os conflitos aumentavam no nível micro até explodirem em 2018 com os Gilets Jaunes. “Esta geografia revela a emergência de um mundo de periferias sobre as ruínas da antiga classe média. Pela primeira vez na história econômica ocidental, as categorias modestas não vivem mais onde se criam os empregos e a riqueza e, sobretudo, não poderão mais viver lá[v]”. Esses são os territórios nomeados por Christophe Guilluy como a “França periférica”.

Essas áreas abrigam a maior parte da população do país – essa mesma que se sente, e está efetivamente sendo, excluída da dinâmica econômica e cultural francesa. Essa divisão social, que se expressa territorialmente, está levando a um sentimento de abandono, declínio social e perda de pontos de referência comuns no interior da sociedade. A periferização revela uma nova geografia social, na qual as classes sociais habitam espaços físicos e culturais separados.

Christophe Guilluy propõe uma leitura contundente da transformação social e territorial da França contemporânea, centrada no desaparecimento progressivo da classe média ocidental – especialmente a francesa – como força estruturante do pacto social do pós-guerra. Para ele, o que está emergindo nas últimas décadas não é um fenômeno novo, mas a visibilidade tardia de um processo silencioso e contínuo de periferização: a marginalização geográfica, econômica e simbólica da França periférica. Essa França periférica representa cerca de 60% da população – composta por operários, camponeses, pequenos funcionários, aposentados e produtores independentes – e está espalhada pelo território nacional fora das metrópoles globalizadas.

Durante muito tempo, essa população constituiu a espinha dorsal da sociedade francesa: uma classe média modesta, integrada ao Estado social e reconhecida por seu papel na reprodução do tecido nacional. Hoje, deslocada, invisibilizada e desvalorizada, busca novas formas de expressão política. Essa separação social crescente alimenta a desconfiança em relação às elites e às instituições republicanas. Politicamente, isso se reflete no aumento do voto de protesto, que tem sido capturado, há mais de duas décadas, pela extrema direita.

A ascensão da extrema-direita – no caso, o Front National (FN) – não é, segundo Christophe Guilluy, resultado de manipulação ideológica por parte dos partidos, mas o inverso: é a expressão política do mal-estar ressentido por essa maioria silenciosa. Os partidos apenas acompanham e expressam eleitoralmente um movimento que vem de baixo. A verdadeira fratura não se encontraria mais entre a esquerda e a direita, mas entre uma elite urbana, cosmopolita e móvel, e uma população empobrecida, enraizada, fixada ao território, que carrega a memória da nação e da Revolução Francesa – como ficou evidente durante o movimento dos Gilets Jaunes, que retomaram parte dos símbolos e do imaginário revolucionário.

A globalização não apenas desestruturou a antiga classe operária tradicional, como também fragmentou essa pequena classe média – até então símbolo de equilíbrio e da identidade nacional. Enquanto os debates públicos e as políticas sociais se voltavam para as banlieues e os desafios da integração, esqueceu-se do “miolo” da sociedade francesa, que se viu escanteado e desprovido de representação. Mais do que uma crise econômica, o que está em jogo, segundo Christophe Guilluy, é uma crise de reconhecimento moral.

A classe dominante – inclusive setores da esquerda – trata os habitantes da periferia como retrógrados, xenófobos, ignorantes, “atrasados”, numa postura que remete ao desprezo das elites globalizadas por aqueles que ficaram “para trás” no curso do mundo. No entanto, seriam eles os verdadeiros portadores da continuidade histórica e social do país. Para Christophe Guilluy, a desconexão entre o topo e a base da sociedade é o sinal mais evidente da dissolução do projeto republicano.

3.

É sempre bom lembrar que o que conhecemos como periferia no Brasil não é o mesmo que na França. O equivalente francês das periferias brasileiras – isto é, as áreas periurbanas precárias – são as banlieues. As banlieues são tratadas cotidianamente pela mídia como territórios delinquentes e perdidos para a nação. Elas são o resultado dos efeitos da globalização sobre as camadas subalternas urbanas. A emergência das banlieues como problema social coincide com o início do processo de periferização. São para essas localidades que o olhar dos programas sociais e da polícia está voltado.

A literatura comum exclui os moradores da France périphérique de suas análises. Ela se concentra na relação dual entre o centro das metrópoles e suas banlieues. Na interpretação de Christophe Guilluy, essa estrutura representa apenas parte do problema. A relação seria, de fato, dual – mas os polos seriam outros. Na estrutura por ele apresentada, o centro e as banlieues estariam unificados, compondo um polo, enquanto a França periférica formaria o outro. A desigualdade estrutural se daria, então, em dois níveis distintos: uma relação entre centro e banlieue, interna às metrópoles, e outra, entre as metrópoles e as periferias.

Haveria, portanto, uma desigualdade inclusiva – funcionando relativamente bem do ponto de vista do capital – da qual participam todos aqueles que estão dentro da estrutura metropolitana. Isso incluiria inclusive a parcela dos imigrantes que conseguem trabalho, legal ou ilegal. Já a relação de desigualdade puramente exclusiva se daria entre as metrópoles e as periferias. Com esse esquema, Christophe Guilluy se distancia dos discursos mais habituais, que acentuam unicamente os problemas da segregação urbana e racial de que são vítimas os moradores das banlieues.

Para Christophe Guilluy, o foco midiático e sociológico nas banlieues seria, em larga medida, efeito da integração crescente de um determinado prisma teórico de origem norte-americana, aplicado para pensar uma sociedade diferente do modelo original. Isso promove uma virada na questão social, que deixa de ser um problema de igualdade para se tornar uma questão fundamentalmente ética. Nas esquerdas, “a atenção crescente pelas banlieues e minorias irá de par com uma indiferença crescente pela classe operária em particular e, mais massivamente ainda, pelas camadas populares dos espaços periurbanos e rurais[vi]”. Importa-se o modelo do gueto para pensar uma estrutura urbana diversa[vii].

Com a mudança de perspectiva operada por Christophe Guilluy, a cultura da metrópole, na qual, entre outras coisas, o rap[viii] ocupa um lugar determinante, é destituída do seu status de marginal. Se dá o exato oposto. O rap e toda a cadeia de produção e consumo que se estrutura em torno dele estão no centro do novo modo de vida global, em sua particularidade francesa. Há tempos, a chamada cultura periférica urbana se transformou na expressão máxima da cultura dominante.

Embora seja um problema evidentemente real, a centralidade das banlieues no debate público e acadêmico teria mascarado o antagonismo principal que estrutura hoje a sociedade francesa. Isso operou um deslocamento do conflito de classe para o conflito cultural, o que acaba por orientar a autorreflexão da sociedade para algo que ela é apenas em parte. Esse enfoque deixa de fora das análises toda uma parcela do território e da população que não se encaixa nesse esquema. O modo de vida tradicional das camadas populares da França periférica passa a ser tratado como arcaico, desprezível, e torna-se efetivamente marginal.

Isso aprofundou a fratura social a um nível talvez irreparável. Em uma reversão, o que antes não era cultural passa a ser, e, dessa maneira, torna-se o eixo do conflito — ainda que em termos não previstos de antemão. Haveria, então, um ocultamento da crise que atravessa as classes médias. Estas seriam o complemento precário e real da parte ainda pujante da economia francesa.

Christophe Guilluy sinaliza, assim, que, apesar de toda a precariedade, as banlieues e seus moradores se encontram nas cercanias dos centros das grandes cidades. Uma banlieue parisiense, por exemplo, situa-se, em média, a trinta ou quarenta minutos do centro da capital, onde estão concentrados os serviços e os empregos. Isto é, embora representem o lado mais precário da estrutura social urbana, encontram-se em vantagem comparativa em relação aos periféricos, precisamente por estarem inseridos na dinâmica cultural e no mercado de trabalho das metrópoles.

Não por acaso, a mobilidade social nas “zonas urbanas sensíveis” das banlieues – habitadas, em sua maioria, por imigrantes racializados – era, em 2005, de 61%, o que as destacava no quesito mobilidade em relação ao restante da França. De maneira geral, sugere Guilluy, é mais fácil um imigrante árabe encontrar um novo emprego do que um francês branco periférico, que simplesmente não tem mais acesso àquilo que foi extinto nos arredores de onde vive. É daí que Christophe Guilluy extrai sua tese polêmica: os verdadeiros invisibilizados e injustiçados do processo de globalização seriam os membros da antiga classe média branca, habitantes das periferias, que estão sendo continuamente empurrados para as margens da sociedade.

Como nota Éric Charmes em uma resenha crítica de La France périphérique: “Para encontrar um emprego, você precisa percorrer um raio muito mais amplo, muitas vezes amplo demais. Muito amplo porque viajar é caro, especialmente se você tiver que fazer isso de carro. Ainda há a opção de se mudar, mas não é simples. Com base no trabalho de Jean-Noël Retière e outros, Christophe Guilluy mostra como a sociabilidade local é importante para as classes trabalhadoras. Para elas, mudar de cidade geralmente significa perder o apoio da família, dos amigos e das associações. Se você quer trabalhar, precisa cuidar de seus filhos e, quando ganha pouco, a proximidade dos avós é essencial. Além disso, quando se mora em uma área atingida pela crise e pela desindustrialização, é difícil vender sua casa para comprar outra em uma área melhor, onde os preços dos imóveis são certamente mais altos”.[ix].

4.

A prefeita de Paris, Anne Hidalgo, tem conduzido uma série de mudanças na cidade de Paris, com aumento dos transportes públicos, a ampliação de áreas verdes, o incentivo ao uso da bicicleta e ao deslocamento de pedestres. Outras metrópoles, como Lille, Toulouse e Lyon, também têm realizado fortes investimentos em transportes públicos. Na França periférica, encontramos o exato oposto. O deslocamento nas regiões periféricas da França tem um custo muito alto, quase não há transporte público. O deslocamento pesa mais no bolso da França periférica do que nos centros urbanos.

Vale lembrar que o estopim do movimento dos Gilets Jaunes, fundamentalmente periférico, foi um aumento súbito no preço dos combustíveis. Devido à falta de meios de transporte público, a demanda por automóveis é crescente, estes se tornam, de fato, uma necessidade. O processo de periferização do país foi acompanhado, entre outras coisas, pelo desmantelamento de boa parte da malha ferroviária. Se, por um lado, as malhas de trens de alta velocidade (TGV) continuam a se expandir por todo o país, por outro lado, as linhas que antes conectavam as cidades menores e as regiões mais pobres têm sido extintas ao longo dos anos.[x]

Ao contrário do que se pensa vulgarmente, não é o trem-bala que aponta para o socialismo do século XXI. Ou seja, ao invés de privilegiar a velocidade de deslocamento entre grandes metrópoles, o foco deveria ser no investimento em uma vasta malha de trilhos cobrindo o território, de modo a permitir, entre outras coisas, a abolição do automóvel em nível nacional (ou, ao menos, a possibilidade de escolha para uma parte considerável da população para quem esse problema não pode ser ignorado; embora, convenhamos, saibamos hoje que, no socialismo, não haveria automóveis individuais).

Os habitantes da França periférica sofrem de sedentarismo e enraizamento forçado. No lado oposto, as camadas mais altas da sociedade nunca foram tão móveis. A relação dos franceses com as férias é interessante de observar sob este ponto de vista. Trata-se de um fato social de tal magnitude que não se pode deixar de sair de férias. Deve-se mostrar o bronzeado após as férias de verão e o machucado depois de uma suposta férias de inverno nas pistas de esqui. Essa coerção social vale para todas as classes. A ideologia e o elogio da mobilidade se transformam em desejo de consumo e modo de vida que atravessa toda a sociedade.

Sem esquecer que a mobilidade não tem uma única via, mas também abarca aqueles que vêm de fora. Há uma clara distinção entre o estrangeiro que pode ou não se mover. O imigrante e o turista não são a mesma coisa. E, mesmo no que tange à imigração, há uma divisão clara. Uma coisa são os imigrantes pertencentes às camadas superiores e médias, plenamente integrados ao modo de vida metropolitano[xi]. Outra coisa muito diferente são aqueles que atravessam o Mediterrâneo em barcos frágeis, sempre na sombra da Frontex.

5.

Christophe Guilluy insiste constantemente que o apagamento do modelo republicano de coesão social tem dado lugar a uma assimilação do modo de vida anglo-saxão, que ele descreve como liberal, desigual e comunitário. Isso cria um paradoxo, pois a sociedade ainda tem apego à ideia de ser republicana, muito embora esta se encontre em uma crise aguda. A ideia de um comum republicano deixa de ser uma referência, perdendo espaço para uma lógica de minorias que o excedem ou que se veem em excesso em relação a essa norma representativa.

A França emerge como uma sociedade múltipla e fragmentada, mas com uma fratura principal, onde “a miscigenação e o multiculturalismo são apresentados como os objetivos principais de uma sociedade onde o povo seria intrinsecamente racista. Neste contexto, o real conta pouco, notadamente o fato de as categorias populares continuarem visceralmente atreladas ao princípio de igualdade”.[xii]

Ao contrário do que imaginam os deleuzianos, “ninguém deseja ser e muito menos se tornar minoritário”[xiii]. A insegurança e a paranoia cultural fazem com que pessoas de diferentes origens, classes e religiões passem a se evitar. Esse fenômeno é chamado de evitamento. As diferentes categorias sociais vivem separadas, especialmente, mas não apenas, os imigrantes. Não é raro que até mesmo comunistas ou anarquistas escolham mudar de bairro ou de cidade, se necessário, para evitar a classe operária, ou o que restou dela.

Quando transposto para os periféricos, o evitamento faz com que muitos prefiram continuar nas suas condições precárias e sedentárias a se aventurarem nas metrópoles, por não quererem se ver obrigados a conviver com uma imensa massa de estranhos. Isso, forçosamente, os deslocaria para as margens da metrópole. Tal fenômeno tende a se aproximar do que tem sido chamado midiaticamente de comunitarismo, uma categoria “mutante”[xiv] que ainda carece de investigação profunda para além do discurso vulgar da direita e das mídias, a fim de conhecer a verdadeira amplitude de um problema vivido por todos.

Christophe Guilluy defende, no entanto, de maneira bastante polêmica, que uma certa dose de separatismo seria necessária ou, ao menos, compreensível, e que o processo de mistura multicultural incentivado pelas elites resultaria em algo muito pior. Um processo multicultural conduzido de qualquer maneira por cima das camadas populares, insiste o geógrafo, criaria as condições para uma crescente tensão social. Diz ele: “Ao contrário do que se pensa, a separação é justamente para evitar a guerra”.[xv]

6.

Um momento fundamental para o desdobramento do processo de periferização da França foi a implementação do Tratado de Maastricht, assinado em 1992, que estabeleceu as bases para o Euro, a futura moeda comum. Na sequência, vieram os Tratados de Nice, Amsterdam e Lisboa. A implementação deste último, no caso da França, constituiu um golpe de estado constitucional, pois a população francesa havia rejeitado o Tratado de Roma em um referendo acachapante. Obviamente, a opinião soberana popular, que rejeitava a Constituição Europeia, foi ignorada e contornada em seguida pelo Tratado de Lisboa.

Afinal, o processo de globalização e a consequente periferização do país deveriam continuar a todo vapor. Christophe Guilluy aponta que esse desencontro entre as elites dirigentes globalizadas e a população francesa marca o ponto de clivagem e a emergência efetiva da França periférica. Vale lembrar que, durante a década de 1990, as esquerdas mundiais, em contraponto ao declarado fim da história, conseguiram aglutinar fortes movimentos internacionais em torno da pauta da anti-globalização, com destaque especial para Bolonha, Seattle e Porto Alegre. Já no início do novo milênio, elas se rendem e aderem de modo integral à ordem global e multicultural nascente.

Por essas e outras razões, Christophe Guilluy insiste que o problema da soberania deveria ser colocado novamente na mesa pelas esquerdas. Na França contemporânea, Jean-Luc Mélenchon é o último herdeiro à esquerda de uma longa tradição republicana que ainda mantém alguma força e insiste nesse ponto, embora seja atacado ferozmente pelo establishment e por uma parte considerável da esquerda, que, bem integrada às cadeias culturais internacionais, o vê com muita desconfiança, quando não com ojeriza.

Um exemplo anedótico desse desencontro cultural apontado por Christophe Guilluy ocorreu durante a pré-campanha presidencial de 2022. Em uma entrevista para uma emissora de televisão, o candidato do Partido Comunista Francês, Fabien Roussel – que, apesar de suas limitações, às vezes (raramente) acerta – ousou afirmar que bons vinhos, queijos e uma boa carne vermelha são as marcas tradicionais do melhor da gastronomia francesa. Ele disse ainda que um programa comunista fiel à tradição do país teria como um de seus horizontes universalizar o acesso a esses produtos de excelência – vale lembrar que os melhores produtos, na realidade, são inacessíveis ao orçamento médio.

Fabien Roussel chegou até mesmo a elogiar mmanuel Macron, que havia defendido o vinho, e afirmou em seguida que um bom presidente francês defende necessariamente o vinho. Pois, parte considerável da esquerda liberal, multicultural e anti-povo, considerou essa posição democrática, elitista e politicamente incorreta.[xvi]

7.

Por volta de 2017, Christophe Guilluy ousou afirmar que “Trump e Macron são, de fato, as duas faces de um mesmo modelo; ambos integraram perfeitamente o choque que provocou o fim da classe média ocidental. Dependendo das circunstâncias, a balança favorece o candidato ‘populista’ ou o ‘globalista’”[xvii]. Havia uma brecha a ser ocupada pela esquerda francesa, americana e até mundial, caso tivessem compreendido que essa aparente polaridade escondia uma convergência de fundo.

Contestado por todos os especialistas acadêmicos que tentam decifrar a sociedade com o objetivo de governá-las na direção que desejam, Christophe Guilluy reintroduz um programa em defesa de um novo pacto republicano nacional. Talvez não seja o ideal, certamente não é uma Revolução, muito menos a continuação ou conclusão da Revolução de 1789, mas é, sem dúvida, algo contra o fluxo para o qual a sociedade francesa vem sendo conduzida desde 1981.

Diante do declínio do Ocidente e da crise da globalização, ele defende um tipo de pragmatismo popular, calcado em um instinto de sobrevivência próprio das camadas populares despossuídas[xviii]. “Nem movimento de massa, nem revolução, sem uma aliança de classe. Em um contexto econômico e político diferente, o relativo fracasso dos partidos gregos e espanhóis, como o Syriza e o Podemos, pode ser explicado, antes de tudo, pela impossibilidade de uma burguesia esclarecida apoiar as aspirações populares”[xix]. Não se faz sociedade sem os mais modestos, sem aqueles que têm sido os perdedores, excluídos do processo de globalização e periferização.

Não é por acaso que intelectuais mais ou menos independentes, que, como ele, tentam levar em conta de maneira séria o diagnóstico objetivo das classes populares, são boicotados pelo establishment. Para além das divisões oficiais, Christophe Guilluy aposta na implosão do sistema político atual e na reestruturação institucional. Um “afrontamento pela emergência de uma contra-sociedade que possa assegurar a reintegração econômica, política e cultural das camadas populares”[xx]. A hegemonia e o poder social das classes populares vêm aumentando à medida que a sociedade se fratura, como mostrou o movimento dos Gilets Jaunes e a “contra-sociedade”[xxi] que, através deles, emergiu temporariamente[xxii]. O que virá depois do fim da globalização, que foi o processo motor da periferização francesa[xxiii]?

8.

O diagnóstico da periferização, formulado no início dos anos 2000,[xxiv] se mantém e é atualizado a cada novo livro de Christophe Guilluy. Embora seus textos possam parecer repetitivos, eles são interessantes por permitir acompanhar a evolução da pesquisa e, paralelamente, da sociedade francesa. O geógrafo passou um bom tempo falando solitariamente sobre as fraturas constitutivas da sociedade e as tendências que vinham de baixo, até que elas se tornaram inegáveis em novembro de 2018, com o movimento dos Gilets Jaunes.

Embora seja um autêntico descendente da longa linhagem do republicanismo de esquerda francês, o curso do mundo e da sociedade parece tê-lo capturado. O tom ensaístico de seus textos, sempre bem escritos e polêmicos, tem mudado sensivelmente, e com ele a posição implícita do autor[xxv]. À medida que Christophe Guilluy foi corretamente observando que a hegemonia liberal no campo das esquerdas é fundamental para a manutenção e agravamento do problema social por ele identificado, sua posição foi se tornando progressivamente mais conservadora.

Não se pode esquecer que, desde cedo, Christophe Guilluy, um intelectual independente fora dos círculos acadêmicos, tinha como público-alvo imaginário as elites intelectuais e políticas. Ele foi criticado, quando não ignorado, pelos primeiros, mas conseguiu, inicialmente, obter certa circulação nas altas esferas do mundo político. O auge dessa circulação aconteceu durante a campanha de 2012.

Os candidatos Nicolas Sarkozy e François Hollande, à época o presidente em exercício e o futuro presidente, se mostraram sensíveis ao diagnóstico apresentado em Fractures françaises, publicado dois anos antes. Outros políticos leram e se referiram ao geógrafo ao longo dos anos. Desde a primeira década do século XXI, ele também atua como intelectual público e midiático, sendo uma figura recorrente nos debates televisivos franceses[xxvi].

A impressão que fica, no entanto, é que, embora diga escrever para a esquerda, é a direita, especialmente a extrema direita, quem melhor entende o diagnóstico de Christophe Guilluy. É bem possível que as classes médias populares periféricas, de fato, desejem uma desamericanização da França nos moldes imaginados pelo geógrafo, embora, ao seguir essa direção, o resultado possa ser oposto ao que ele previu, com tons mais sombrios.

No fundo, como mencionado anteriormente, o projeto de Christophe Guilluy passa pela elaboração de um novo pacto social republicano, nos moldes do antigo estado social, desmontado pelo neoliberalismo por razões políticas e, sobretudo, pela falta de substância material decorrente da crise estrutural que o capitalismo entrou desde meados dos anos 1970. Contudo, como não se sente devidamente escutado nem reconhecido pelas elites, para quem, no fundo, escreve, pouco a pouco Christophe Guilluy foi se ressentindo e, talvez sem perceber, começou a se inclinar para a direita. Ou, no mínimo, para aquilo que Amaury Giraud, em seu livro, chama de “conservadorismo de esquerda”.[xxvii]

Não é por acaso que, para além do diagnóstico objetivo em parte também negativamente correto, Hillbilly Elegy,[xxviii], de J. D. Vance, é uma das principais referências positivas no livro No Society de 2017. É possível que a única coisa que impeça viradas políticas desse tipo seja manter sempre aberto o horizonte socialista, e sobretudo comunista.

*Frederico Lyra é professor nos departamentos de arte e de filosofia da Universidade de Picardie Jules Verne (França).

Notas


[i]Esse artigo se insere em um projeto realizado em conjunto com o Instituto Alameda com o objetivo de investigar as transformações recentes da sociedade francesa.

[ii]“Un McDonald’s à 20 minutes” de chaque Français : le géant du fast-food annonce 50 nouveaux restos en 2025”, Actu, 24 março 2025. Disponível em: https://actu.fr/economie/un-mcdonald-s-a-20-minutes-de-chaque-francais-le-geant-du-fast-food-annonce-50-nouveaux-restos-en-2025_62412942.html

[iii]Guilluy, Christophe, Le crépuscule de la France d’en haut, Paris, Flammarion, 2014, p. 85.

[iv]Guilluy, Christophe, La France périphérique, Paris, Flammarion, 2014, p. 11

[v]Guilluy, Christophe, No Society, Paris, Flammarion, 2018, p. 28.

[vi]Guilluy, Christophe, Fractures françaises, Paris, Flammarion, 2014, p. 34.

[vii]Ibid, p. 15-29.

[viii]Cf: Maïzi, Mehdi, Le rap a gagné. À quel prix ?, Paris, La Fabrique, 2025.

[ix]Charmes, Éric, “Une France contre l’autre ? À propos de : Christophe Guilluy, La France périphérique. Comment on a sacrifié les classes populaires”, La Vie des idées, 5 novembro 2014. Disponível em: https://laviedesidees.fr/Une-France-contre-l-autre É interessante notar que as principais críticas endereçadas a Guilluy por Charmes concerne a ambiguidade das proposições políticas do geógrafo e o fato deste misturar, em muitos momentos, uma abordagem científica com a de um ensaísta engajado.

[x]Notemos que a luta contra a expansão dos TGV’s, inclusive com sabotagens e bloqueio das obras, é uma das pautas principais do movimento ecológico radical extremamente interessante Soulèvement de la terre.

[xi]Guilluy sinaliza inclusive a existência de um fenomêno considerável de emigração de mão de obra qualificada francesa para outros países.

[xii]Guilluy, Christophe, Fractures françaises, op. cit, p. 12

[xiii]Guilluy, Christophe,  La France périphérique, op. cit, p. 149.

[xiv]Dhume, Fabrice, « Communautarisme, une catégorie mutante », La Vie des idées , 25 septembre 2018. ISSN : 2105-3030. URL : https://laviedesidees.fr/Communautarisme-une-categorie-mutante

[xv]Guilluy, Christophe, La France périphérique, op. cit, p. 151.

[xvi]Les Dépossédés, Paris, Flammarion, 2023, p. 132-136.

[xvii]No Society, Paris, Flammarion, 2018, p. 43.

[xviii]Guilluy, Christophe, Les Dépossédés, Paris, Flammarion, 2023, p. 175-191.

[xix]Guilluy, Christophe, No Society, Paris, Flammarion, 2018, p. 165.

[xx]Guilluy, Christophe, La France périphérique, Paris, Flammarion, 2014, p. 176.

[xxi]Guilluy, Christophe, La France périphérique, Paris, Flammarion, 2014, p. 15.

[xxii]Podemos incluir a derrota de Macron nas eleições parlamentares no meio de 2024 pois, muito embora tenha virado a mesa, ele foi de fato eleitoralmente e moralmente derrotado. Cf: Lyra, Frederico, “Eleições na França — uma vitória que não houve”, A Terra é redonda, 14 setembro, 2024. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/eleicoes-na-franca-uma-vitoria-que-nao-houve/

[xxiii]Cf: Milanovic, Branko, “What Comes After Globalization?”, Jacobin, 24 março 2025. Diponível em: https://jacobin.com/2025/03/what-comes-after-globalization

[xxiv]Guilluy, Christophe, Atlas des fractures françaises (Paris, L’Harmattan, 2000); Atlas des nouvelles fractures sociales en France (Paris, Autrement, 2004).

[xxv]Guilluy, Christophe, Métropolia et Périphéria : Un voyage extraordinaire, Paris, Flammarion, 2025.

[xxvi]Não trataremos em detalhes, mas um ponto fundamental das análises que percorrem os livros de Guilluy é o tratamento midiático dado àos territórios e populações periféricas, especialmente o desprezo que a classe dos jornalistas exprimem para com os perdedores da globalização.

[xxvii]Cf: Giraud, Amaury, Penser le conservatisme à gauche, Bordeaux, Le Bord de l’eau, 2024, p. 303-311.

[xxviii]Cf: Vance, J. D., Hillbilly Elegy: A Memoir of a Family and Culture in Crisis, Harper, 2016.


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A corrosão da cultura acadêmica
Por MARCIO LUIZ MIOTTO: A universidade brasileira está sendo afetada pela ausência, cada vez mais notável, de uma cultura leitora e acadêmica
O Papa na obra de Machado de Assis
Por FILIPE DE FREITAS GONÇALVES: A Igreja está em crise há séculos, mas insiste em ditar moral. Machado de Assis zombava disso no XIX; hoje, o legado de Francisco revela: o problema não é o papa, mas o papado
Um papa urbanista?
Por LÚCIA LEITÃO: Sixto V, papa entre os anos 1585 a 1590, entrou na história da arquitetura, de modo surpreendente, como o primeiro urbanista da Era Moderna
Dialética da marginalidade
Por RODRIGO MENDES: Considerações sobre o conceito de João Cesar de Castro Rocha
Para que servem os economistas?
Por MANFRED BACK & LUIZ GONZAGA BELLUZZO: Ao longo do século XIX a economia tomou como paradigma a imponente construção da mecânica clássica e como paradigma moral o utilitarismo da filosofia radical do final do século XVIII
Ode a Leão XIII, o Papa dos Papas
Por HECTOR BENOIT: Leão XIII salvou Deus, e Deus deu no que deu: a igreja universal e todas essas igrejas novas que andam pelo mundo em crise econômica, ecológica, epidemiológica total
O banqueiro keynesiano
Por LINCOLN SECCO: Em 1930, sem querer, um banqueiro liberal salvou o Brasil do fundamentalismo de mercado. Hoje, com Haddad e Galípolo, ideologias morrem, mas o interesse nacional deveria sobreviver
A PUC-São Paulo e a liberdade acadêmica
Por MARIA RITA LOUREIRO & BERNARDO RICUPERO: Ao atacar Reginaldo Nasser e Bruno Huberman, a universidade que resistiu à ditadura agora capitula ao autoritarismo sionista, e golpeia a liberdade acadêmica no Brasil
Refúgios para bilionários
Por NAOMI KLEIN & ASTRA TAYLOR: Steve Bannon: o mundo está indo para o inferno, os infiéis estão rompendo as barricadas e uma batalha final está chegando
A situação atual da Guerra na Ucrânia
Por ALEX VERSHININ: Desgaste, drones e desespero. A Ucrânia perde a guerra de números e a Rússia prepara o xeque-mate geopolítico
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