a terra é redonda

A personalidade autoritária

Por Anouch Kurkdjian*

Comentário sobre o novo título, décimo segundo volume da Coleção Theodor Adorno.

Em um clima social tão adverso, é de se comemorar que os
leitores brasileiros finalmente tenham acesso a uma edição em língua portuguesa
dos Estudos sobre a personalidade
autoritária
(Unesp), seleção de textos escritos por Theodor W. Adorno.
Trata-se do décimo segundo volume de Adorno publicado pela editora, que há
alguns anos empenha-se em preencher as lacunas da bibliografia do autor no
país. A atualidade tenebrosa que esses textos adquiriram para o contexto
brasileiro certamente contribuiu para que sua publicação ocorresse agora. O
leitor verá que é com um misto de espanto e reconhecimento (quem sabe, de
espanto por causa do reconhecimento) que o livro é lido.

Os textos que compõem o volume originalmente fazem parte de
uma pesquisa mais abrangente, de quase mil páginas, intitulada A Personalidade autoritária, realizada
por Adorno em conjunto com um grupo de psicólogos sociais da Universidade de
Berkeley – R. Nevitt Sanford, Daniel Levinson e Else Frenkel-Brunswik – e
publicada em 1950, nos Estados Unidos. A
personalidade autoritária
por sua vez foi uma das frentes de um amplo
esforço de pesquisa, os Estudos sobre o
preconceito
, iniciativa patrocinada pelo Comitê Judeu Americano (American
Jewish Committee – AJC) que deu origem a outros livros sobre o assunto [1].

A escolha do termo “preconceito” para o título do conjunto
de pesquisas (em detrimento da ideia inicial de “antissemitismo”) foi feita por
cautela, o que já dá mostras da situação na qual o Comitê Judeu atuava em solo
americano no período da Segunda Guerra Mundial. A propagação do antissemitismo,
mesmo em um país de governo democrático, corrobora uma das ideias de fundo da
pesquisa A personalidade autoritária:
a de que o autoritarismo mantém relações profundas com o “clima cultural geral”
das sociedades erigidas sob a forma capitalista de produção, de modo que sua
manifestação extrema no horror nazista na Alemanha não deveria ser considerada
um evento isolado, mas uma possibilidade latente em outras sociedades e em
outros contextos políticos.

Mobilizando um instrumental analítico da psicologia social e
da psicanálise, associado a um enquadramento sociológico mais amplo (a cargo de
Adorno), a pesquisa sobre a personalidade autoritária articulou de maneira
criativa métodos quantitativos, como questionários, e métodos qualitativos,
como entrevistas clínicas e testes projetivos, tendo em vista responder a
seguinte questão: que traços de personalidade tornam um indivíduo
particularmente suscetível a aceitar ideias e propaganda de cunho preconceituoso
e antidemocrático? Note-se que não se tratava de investigar indivíduos
declaradamente autoritários, mas de elaborar instrumentos para identificar
indivíduos potencialmente autoritários, ou seja, indivíduos psiquicamente
predispostos a aceitar ideias autoritárias, mesmo que de maneira inconsciente.

O instrumento metodológico mais importante para esse intuito
– e, de certo modo, o coração da pesquisa – foi a famosa Escala-F (de
fascismo). Elaborada a partir de uma série de questionários, a escala permitiu
identificar tendências fascistas nos indivíduos inquiridos, mesmo sem mencionar
diretamente assuntos relativos ao preconceito ou ao antissemitismo. Assim,
questões aparentemente neutras e inofensivas a respeito de temas como
impressões da infância e da vida escolar, relação com os pais, atitude perante
o sexo, sensibilidade emocional e interesse pela cultura, forneciam uma via de
acesso à estrutura de personalidade dos indivíduos, tornando possível
identificar tendências mais profundas que podiam ser remetidas a um tipo
autoritário.

Entre tais tendências, a pesquisa destaca: a adesão rígida a
valores dominantes; o convencionalismo; uma visão desdenhosa da humanidade; a
predisposição a acreditar que eventos incontroláveis e perigosos aconteciam no
mundo e que a sexualidade era exercida de maneira depravada por toda sociedade;
a tendência à submissão à autoridades de seu próprio grupo e à discriminação de
tudo que era diferente; a aversão à introversão, à autorreflexão, à
sensibilidade e à imaginação; a tendência a adotar uma visão supersticiosa e à
distorção estereotipada da realidade.

A seleção de textos para a edição brasileira, organizada
pela pesquisadora Virginia Helena Ferreira da Costa, autora de uma pesquisa de
doutorado sobre o livro A personalidade
autoritária
, segue a edição alemã das obras completas de Adorno, publicadas
pela editora Suhrkamp no volume 9 de sua coleção, os Escritos sociológicos II.
Fazem parte do conjunto o capítulo I e VII (assinados por todos os
pesquisadores) e os capítulos XVI, XVII, XVIII e XIX (escritos por Adorno).

Como a seleção ateve-se aos capítulos dos quais Adorno
participou diretamente e como estes muitas vezes comentam dados de pesquisa
apresentados em capítulos escritos por outros autores, os editores brasileiros
optaram por incluir um resumo, capítulo por capítulo, da pesquisa completa,
tarefa a cargo da organizadora. É de sua autoria também a apresentação à edição
brasileira.  Deve-se ressaltar ainda a
tradução muito competente e atenta às nuances, tanto as da terminologia
freudiana, quanto as dos pressupostos teóricos da pesquisa, feita em conjunto
por Ferreira da Costa, Francisco López Toledo Corrêa e Carlos Henrique
Pissardo.

A solução de incluir um resumo da pesquisa original cumpre o
papel de fornecer o quadro mais geral da pesquisa, situando os textos de Adorno
nesse todo. As apresentações da organizadora recuperam ainda o conteúdo dos
dois prefácios à edição original de A
Personalidade autoritária: o
primeiro, de autoria de Max Horkheimer, diretor do Instituto de Pesquisas
Sociais à época, em conjunto com Samuel H. Flowerman, do Departamento de
Pesquisa Científica do Comitê Judeu Americano e o segundo, mais teórico,
escrito apenas por Horkheimer.

O texto de Horkheimer e Flowerman fornece informações a
respeito do contexto que ensejou o esforço de pesquisa dos Estudos sobre o preconceito, de pesquisas que antecederam sua
realização e dos objetivos práticos que o Comitê Judeu visava alcançar a partir
dos resultados obtidos pela investigação. Tais objetivos ajudam a entender
porque boa parte das pesquisas que fizeram parte dos Estudos sobre o preconceito, a exemplo de A personalidade autoritária,enfocou
o problema sobretudo a partir de seus aspectos psicológicos, e não sociais:
esperava-se que uma análise sociopsicológica sistemática do fenômeno do
fascismo pudesse fornecer elementos para a formulação de políticas educativas
democráticas que a longo prazo ajudassem a conter as manifestações do potencial
fascista na população americana.

A relação entre a dimensão social e a psicológica do
fascismo, aliás, é o centro da reflexão de Adorno em “Remarks on The Authoritarian Personality”, texto
que ele pretendia que constasse como introdução da edição original, mas que não
foi publicado e que infelizmente também não foi incluído na edição brasileira [2]. Se o estudo enfocou o preconceito
principalmente enquanto reação subjetiva à estímulos sociais, seu pressuposto
teórico era, entretanto, o de que o fenômeno fascista tem, em última instância,
uma origem socialmente determinada – frente de pesquisa que deveria ser
explorada futuramente e que por sinal permanece em aberto.

Não se tratava, portanto, de individualizar a
responsabilidade pelo preconceito, nem de moralizar a questão, pois o caráter autoritário
apontava para a tendência mais geral de um “novo tipo antropológico”, o sujeito
do capitalismo em sua fase pós-liberal. Essa hipótese da tendencial
generalização do fenômeno da personalidade fascista foi fortalecida pela
constatação de que os indivíduos que mais pontuavam nas escalas de preconceito
eram os que tinham alto grau de adequação aos valores dominantes da sociedade
americana, portando-se menos como indivíduos dotados de autonomia e de reflexão
própria, e mais como “centros reativos”, sempre em busca da coisa socialmente
correta a se fazer e da próxima tendência a seguir.

Vistas sob esse prisma, as manifestações fascistas aparecem
não tanto como um desvio patológico, mas como o extremo da normalidade quando
esta tem por referência uma ordem social repressora. Agressividade e
ressentimento, mecanismos de defesa associados ao preconceito, são os
resultados dessa integração social forçada, que exige duros sacrifícios e que
impõe uma existência insatisfatória a seus membros.

São esses os caminhos que Adorno indica para quem quiser
entender as raízes sociais do fascismo. Apontam, portanto, para o fato de que,
enquanto vivermos em uma ordem social coercitiva, as manifestações fascistas
estarão à espreita, prontas para vir à tona se o clima social for propício. Há
quase duzentos anos, um pensador e revolucionário alemão impôs-se a tarefa de
compreender e criticar o mundo, para transformá-lo inteiramente. A leitura de Estudos sobre a personalidade autoritária é
um bom começo para os que querem continuar essa tarefa hoje.

*Anouch Neves de Oliveira Kurkdjian é doutoranda em
sociologia na USP.

Notas

[1] Dentre
eles: Dynamics of Prejudice: a
Psychological and Sociological Study of Veterans
, de Bruno Bettelheim e
Morris Janowitz; Anti-Semitism and
Emotional Disorder: A Psychoanalytic Interpretation
, de Nathan W. Ackerman
e Marie Jahoda; Prophets of Deceit: A Study of the Techniques of the American
Agitator
, de Leo Löwenthal e Norbert Guterman; e Rehearsal for Destruction: A Study of Political Anti-Semitism in
Imperial Germany
, de Paul Massing

[2] O
texto, escrito em 1948, foi incluído na edição completa de The Authoritarian Personality publicada pela inglesa Verso, também
no ano passado.

A personalidade autoritária – 19/02/2020 – 1/1
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