a terra é redonda

A política de alianças da esquerda

Por Ricardo Gebrim*

A esquerda deve levar em conta a possibilidade de atrair frações burguesas, em especial a burguesia interna, por meio de um programa de conquista eleitoral do aparato administrativo nos moldes da anterior experiência neodesenvolvimentista?

Recebi
inúmeros comentários sobre o artigo anterior, no qual questionava se ainda é
possível construir uma aliança política entre as forças populares e uma das
frações da burguesia para retomar o neodesenvolvimentismo. Alguns sustentaram
que afirmar a impossibilidade de se reeditar o neodesenvolvimentismo é
precipitado. Afinal, como reconheci no próprio artigo, o Estado brasileiro é
forte e conta com muitas estruturas que não serão facilmente desconstruídas.

No
entanto, a luta política exige definições prévias. A resposta a essa questão
tem implicações táticas e até mesmo estratégicas. Em última instância, ela
define o caráter das alianças políticas que as forças populares buscam
construir e, consequentemente, o programa necessário. Portanto, não podemos
fugir da questão, sob o risco de que a própria inércia da repetição do passado
nos leve a retomar um processo para o qual já não existam possibilidades
históricas.

É
inquestionável que o programa político do bloco no poder, representado pelo
governo de Jair Bolsonaro (sem partido), investe suas energias em desmontar os
mecanismos econômicos como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico
(BNDES) e os demais bancos públicos, reforçar a blindagem orçamentária,
concluir a privatização de setores estratégicos e conferir autonomia ao Banco
Central. Trata-se de um processo ainda em curso e realmente não sabemos se
conseguirão concluí-lo.

O
mais relevante desmonte no aparato estatal que possibilitou o
neodesenvolvimentismo será a autonomia do Banco Central, cujo projeto avança no
Senado, mas ainda não foi aprovado. Em tese, tais mecanismos poderiam ser
revertidos havendo uma futura correlação de forças suficientemente favorável a
um projeto desejoso de reeditar o neodesenvolvimentismo.

Conforme
indaguei no artigo anterior, na hipótese, por ora bastante remota, das forças
populares contarem com condições políticas tão favoráveis, seu programa deveria
se limitar a retomar o neodesenvolvimentismo em aliança com frações burguesas? De
qualquer forma, admitamos, apenas como argumento, a possibilidade de que uma
vitória eleitoral pudesse reverter o desmonte dos mecanismos estatais,
retomando o cenário anterior.

Ainda
assim, não seria possível. Existem outros fatores estruturais, cuja complexa
reversão exige um tempo histórico bem mais expressivo. Dentre eles, a
desindustrialização é o principal. O conjunto de fatores que colaboraram para
essa tendência foi observado em toda a América Latina, mas o Brasil, por seu
tamanho e relevância, é o mais significativo caso de desmantelamento precoce da
indústria. Sem o impulso da substituição das importações e o restante das
medidas desenvolvimentistas que foram decisivas até o início dos anos 80, o
processo de desmonte industrial segue acelerado, mesmo com as medidas pontuais
de estímulo tentadas durante os governos petistas.

Os
esforços do neodesenvolvimentismo para reverter a desindustrialização
esbarraram num câmbio flutuante, taxa de juros escorchante, elevados juros da
dívida pública. Em outras palavras, foram limitados pela blindagem jurídica
construída ao longo da primeira ofensiva neoliberal (1994 – 2002).

Isso
gerou consequências profundas. Sabemos que tecnologia, eficiência e
produtividade não se obtêm a curto prazo.

A
capacidade industrial é a mais importante fonte de inovação tecnológica. Não
bastasse as consequências da abrupta desindustrialização, os ataques à
Petrobras, com a venda de seus ativos, destroem o único polo em que ainda
exercíamos um papel competitivo. Com isso, nosso progresso técnico encontra-se
cada vez mais restrito a agricultura, pecuária e mineração.

Por
sua vez, a tecnologia industrial para além de investimentos de longo prazo
exige uma política de educação adequada, serviços de engenharia compatíveis,
treinamento e capacitação da força de trabalho. Fatores que também vêm sendo
intensamente desmontados desde o golpe de 2016.

Não
bastasse tudo isso, lastimavelmente, os ataques do governo Bolsonaro também
afetam profundamente a pesquisa, inviabilizando importantes polos da
universidade pública. O resultado é que nosso país acaba destinado a ser uma
mera plataforma de valorização financeira, exportação de minérios e produtos
derivados do agronegócio. Uma configuração que por si só, torna impotente o
papel da grande burguesia interna e fortalece a hegemonia da burguesia
associada ao capital financeiro internacional.

A
conclusão é que mesmo detendo o controle da máquina administrativa com a vitória
em eleições presidenciais, ainda que se admita a hipótese de conquistar uma
maioria parlamentar, as forças populares enfrentariam desafios de natureza
estrutural que inviabilizam a reedição da experiência neodesenvolvimentista por
meio de uma aliança com uma fração burguesa.

Diante
disso, cabe perguntar quais as reais possibilidades de prosseguir com um
programa que tente atrair setores burgueses que já não poderão ser atraídos
para uma aliança política? Evidente que não se trata de desprezar as contradições
no seio das frações burguesas. Elas seguem existindo e podem se ampliar ante o
agravamento econômico internacional. Ter a capacidade de incidir nelas é parte
da habilidade política necessária para um Projeto Popular.

Estamos
diante de fenômenos políticos de natureza muito diferente. Uma coisa é saber
incidir nas contradições no interior da burguesia, romper sua unidade, afastar
a abalada burguesia interna do controle hegemônico da fração burguesa
diretamente associada. Outra, bem distinta é apresentar a proposta de
constituir um governo de aliança com frações burguesas como foi corretamente
feito em 2002 e já não poderá ser reproduzido.

Tampouco
se trata de uma concepção apriorística de negação de alianças com frações
burguesas. A luta revolucionária no século XX é prodiga em exemplos que
demonstram a importância de tais alianças, não só para a conquista do poder do
Estado como para avançar na experiência de construção socialista.

O
debate aqui suscitado é sobre a possibilidade de atrair frações burguesas, em
especial a burguesia interna, por meio da conquista eleitoral do aparato
administrativo nos moldes da experiência neodesenvolvimentista. Tal questão é
decisiva. Terá que ser respondida pelas forças de esquerda, mesmo sem ter
necessariamente pesquisas que comprovem as hipóteses que estamos debatendo.

Enfrentamos
uma derrota de natureza estratégica. Novos erros custarão muito para as forças
de esquerda. A busca de adesão de massa a qualquer proposta política implica
clareza de objetivos e de meios.

*Ricardo Gebrim é Advogado e
membro da Direção Nacional da Consulta Popular.

Artigo
publicado originalmente no site Brasil de
Fato.

A política de alianças da esquerda – 05/03/2020 – 1/1
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