A ressurreição de Notre-Dame

Maximilien-Jules-Constant Luce, Notre-Dame, 1901
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Por WALNICE NOGUEIRA GALVÃO*

E esse tempo todo as pessoas estavam-se perguntando: “E a Marselhesa? E a Marselhesa”? Como não podia deixar de ser, foi entusiasticamente tocada e cantada no átrio exterior da igreja, encerrando as festividades

Ninguém diria, mas lá está Notre-Dame ressurreta qual fênix das próprias cinzas. Cintilando de nova, rebrilhando em todas as suas cores restauradas, já em funcionamento.

Para quem se lembra, foram cinco anos de trabalhos a toque de caixa. Recursos vieram em doações do mundo inteiro, em contribuições oficiais e privadas. Os nomes de todos estão lembrados num mural interno do templo. No total, a obra custou perto de 1 bilhão de dólares. Na França mesmo, abriu-se uma campanha solicitando a cada cidadão a oferta de 1 euro, pela qual recebia a garantia de uma moeda de 1 euro cunhada com a efígie de Notre-Dame (tenho uma).

A reinauguração constou de cerimônias religiosas e laicas, que se estenderam por dois dias.

Enquanto o segundo dia foi ocupado por duas missas solenes de ação de graças, o primeiro dia dedicou-se a cerimônias mistas, religiosas e laicas alternando-se. A combinação releva de um acordo de cavalheiros, pelo qual o presidente, que fazia questão de proferir um discurso, interveio no coração de uma missa no primeiro dia, obrigando-a a passar por ser apenas um “rito litúrgico”. Mas no fim deu tudo certo.

O coração do espectador já se apertava quando o báculo do arcebispo de Paris percutiu a gigantesca porta fechada por três vezes, exigindo entrada. Enquanto isso, o presidente, sua esposa e a prefeita de Paris, Anne Hidalgo, esperavam fora, perfilados sob o frio intenso.

Aberta a porta, procedeu-se à entrada das autoridades.

Logo se viu Donald Trump no lugar de honra, na primeira fila, à mão direita de Emmanuel Macron. Lógico, é ele quem manda… Havia 40 chefes de estado presentes, inclusive ex-presidentes franceses como Nicolas Sarkosy e François Hollande.

Entrou desfilando, sob aplausos ensurdecedores, o corpo de bombeiros do bairro, que varou noites para impedir que o incêndio se alastrasse pela catedral, para salvar o que ainda estava intacto. Enquanto isso, o travejamento de madeira do teto virava tocha e despencava, enquanto o revestimento de chumbo derretia e pingava em poças ardentes no chão. Era preciso ser ágil para não morrer prestando socorro. Em passo marcial e uniformes vermelhos, dois a dois, fizeram bonita vista na igreja.

Depois veio uma grande delegação dos trabalhadores do restauro. Não todos, porque foram 2.000, mas uma farta comissão de mulheres e homens, vestidos sobriamente. Eram – e EmmanuelM acron leu a lista dos ofícios – marmoristas, ebenistas, vidraceiros, vitralistas, serralheiros, até profissões mais corriqueiras como desenhistas, pintores, escultores, pedreiros, carpinteiros e marceneiros.

Receberam uma tempestade de aplausos. Todos os seus 2.000 nomes foram inscritos num pergaminho posto dentro de um estojo de aço, que foi colocado no alto da linda flecha gótica esculpida – flecha que adernou e tombou ante as lágrimas dos circunstantes quando o incêndio já ia adiantado. Foi restaurada e lá está de novo, adereço no céu de Paris.

Houve um número de música com os Irmãos Capuçon, ambos popularíssimo na Europa, um ao violoncelo e outro ao violino. Como foi o primeiro número, o público hesitou sem saber se podia ou não aplaudir num espaço sagrado. Mas nesse dia, podia… Tocaram a Passacaglia, de Haendel.

O segundo dia começou com duas missas solenes com Te Deum, uma de manhã e a outra à noitinha, mantendo uma fieira de apresentações nas horas a seguir. Foram as primeiras abertas ao público. À noite houve um concerto, sob a batuta de Gustavo Dudamel, o venezuelano. Apresentaram-se, entre muitos outros, o violoncelista Yo Yo Ma, o pianista Lang Lang e a soprano sul-africana Pretty Yende, que cantou Amazing Grace.

E tudo acompanhado ao órgão de cinco teclados e oito mil tubos que felizmente sobreviveu incólume, tocado por um de seus três organistas oficiais. Mas precisou ser submetido a uma limpeza interna de todos os tubos, contaminados pela fuligem do incêndio.

Foi lida mensagem do Papa Francisco que, adoentado, não pôde comparecer.

E esse tempo todo as pessoas estavam-se perguntando: “E a Marsclhesa? E a Marselhesa”? Como não podia deixar de ser, foi entusiasticamente tocada e cantada no átrio exterior da igreja, encerrando as festividades.

*Walnice Nogueira Galvão é professora Emérita da FFLCH da USP. Autora, entre outros livros, de Lendo e relendo (Sesc\Ouro sobre Azul). [amzn.to/3ZboOZj]


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