Por CELSO FREDERICO*
Sob Stalin, a literatura soviética passou por uma metamorfose, onde a criação artística foi direcionada para servir à construção do socialismo, resultando em uma produção literária marcada pela monotonia e pela propaganda política
A partir de 1927 uma nova conjuntura se abria na União Soviética. Mudanças profundas haviam ocorrido na economia com o fim da NEP (Nova Política Econômica) e o início, em 1928, do Primeiro Plano Quinquenal voltado para a industrialização acelerada. Nesse momento, realizou-se a coletivização forçada dos camponeses e pôs-se fim às liberdades econômicas que ainda persistiam.
Nas lutas partidárias Joseph Stalin derrota a “oposição de esquerda” (Trótski, Zinoviev, Kamenev). O projeto de construção do “socialismo num único país” levou à centralização do poder e ao total controle do Partido-Estado sobre a vida cotidiana. De um lado, repressão; de outro, o início do “culto à personalidade” do “guia genial dos povos”.
O projeto marxista da extinção gradual do Estado cedeu lugar à hipertrofia do aparelho estatal. Como Henri Lefebvre e outros autores observaram, o Estado erigido por Stalin guarda uma inesperada semelhança com aquele retratado na Filosofia do direito de Hegel, um Estado que expressa a máxima racionalidade atingida pela vida social, e que incluía e subordinava em suas instituições toda a sociedade civil. Tal Estado, superando os interesses privados que dilaceravam a sociedade, afirmava-se como expressão do interesse universal encarnado numa figura singular, o monarca.
A mobilização de toda a sociedade para se construir o “socialismo num só país” repercutiu no mundo da cultura. A necessidade de unir industrialização e literatura esteve nas origens da Associação dos Escritores Proletários (RAPP), que atuou de 1925 a 1932.
Aleksandr Fadeiev, escritor oriundo do Proletkult, assim definiu o novo método de criação literária que doravante deveria vigorar: “à diferença dos grandes realistas do passado, o artista do proletariado verá o processo de desenvolvimento da sociedade e as forças principais que movem esse processo e determinam seu desenvolvimento, ou seja, ele poderá figurar e figurará o nascimento do novo no velho. Mas isso significa que esse artista, mais do que qualquer artista do passado, não somente explicará o mundo, mas servirá conscientemente à causa da transformação do mundo”.[i]
Para servir à “transformação do mundo”, a lógica do trabalho industrial passará a orientar doravante a produção literária. De um lado, muitos escritores, como Sergei Trétiakov, deslocaram-se para as fábricas para inteirar-se in loco dos esforços da construção do socialismo. De outro, milhares de trabalhadores que atuavam como “correspondentes operários” foram incentivados a arriscarem-se na criação literária.
A adaptação da obra literária ao imperativo da industrialização forçada fez nascer, segundo observou Jean-Pierre A. Bernard, “o único período da história da literatura universal” em que a criação artística obedeceu a um “comando social”. Desse empenho coletivo surgiu uma infinidade de obras, tanto dos escritores integrados à produção como dos novos escritores oriundos da classe operária.
Analisando essas obras, o autor constatou a sua “impressionante unidade”: “Todas essas obras têm como tema o trabalho intensivo e a alegria que ele proporciona permitindo colaborar com a grandeza da União Soviética”. […]. A falta de variedade dessa literatura e o modo estranho de sua expressão contribuíram para cair no esquecimento rapidamente. Além disso a abundância e a monotonia dessa produção, regrada como uma máquina destinada a contabilizar os objetos manufaturados precipitaram a queda da Associação dos Escritores Proletários”. Enquanto milhares de operários escreviam, “milhões de leitores soviéticos se queixavam da má qualidade dessa literatura”.[ii]
A ação da Associação dos Escritores Proletários (RAPP) havia posto fim à neutralidade do Estado que anteriormente não conferia a nenhum grupo o monopólio de representação no campo literário. Passou então a vigorar uma estética normativa e o combate àqueles que dela divergiam. Os antigos “companheiros de viagem”, os escritores que não eram filiados ao Partido, mas eram simpáticos ao socialismo, foram alijados em nome da nova orientação baseada no slogan “aliados ou inimigos?”, lançado pelo crítico rappista B. Kor.
Herman Ermolaev, em seu detalhado estudo dos vários grupos que agiam no interior da Associação dos Escritores Proletários, asseverou que naquele período a intransigência daquela associação de escritores ia muito além do próprio partido. Cita, a propósito, a conferência do romancista Alexandr Fedeev em 1930 em que ele afirmava: primeiro, “o escritor proletário deve ser um materialista dialético”; segundo, “nós necessitamos uma arte que irá assegurar a máxima cognição da realidade objetiva em seu movimento e desenvolvimento com a finalidade de transformar isso no interesse do proletariado”; terceiro, “todos os gêneros devem estar dentro do estilo único do materialismo dialético”.[iii]
Tais preceitos, segundo Ermolaev, estão longe de acenar para uma estética marxista. Restritos às orientações normativas, as ideias defendidas pelos militantes da RAPP nutriram-se de fontes bem diversas. De Hegel, retiraram a definição da arte como “pensamento por imagem”; de Marx e Engels, recorreram à avaliação por eles feita da peça de Ferdinand Lassalle, Franz von Sickingen, para através dela identificar materialismo com realismo e, paralelamente, identificar o romantismo com a filosofia idealista; de Lênin retiraram, à revelia, a subordinação autoritária da literatura à política; de Stanislavski, a defesa do realismo; de Plekhánov, a ideia segundo a qual a personagem literária singular reflete a psicologia de toda a sua classe social.
O pretendido “método materialista-dialético” para a literatura opunha-se à prudente observação de Leon Trótski segundo a qual “o método do marxismo não é o método da arte”. A junção método-literatura acabou curiosamente resvalando para um realismo psicológico, graças sobretudo a influência de Plekhánov. O objetivo da literatura, segundo se acreditava, seria a formação de um novo tipo social: o “homem harmonioso”, capaz de manter o equilíbrio entre “o psicológico e o ideológico, entre instinto e consciência, entre a consciência e o subconsciente. Ideias adquiridas através do esforço consciente irão penetrar e unificar o subconsciente e o instinto. Depois de atingir esse estágio de desenvolvimento, um homem poderá manifestar sua ideologia espontaneamente através de um reflexo incondicionado”.[iv]
A reeducação ideológica, pensada de modo assemelhado ao behaviorismo, atrelava a literatura à política. Paralelamente, desenvolveu-se um forte movimento de massas mobilizando milhares de pessoas.
Da literatura proletária ao realismo socialista
Em 1932, ocorre uma mudança radical de rumos: o Partido publica a “Resolução sobre a refundação das organizações literárias e artísticas”. O documento afirmava que, no novo momento histórico, as associações literárias existentes, como a Associação dos Escritores Proletários, tornaram-se “muito estreitas e freiam o impulso da criação artística. Essa circunstância ameaça transformar essas organizações, de meio de mobilizar ao máximo os escritores e artistas proletários em torno da construção socialista, em instrumentos de cultivo das panelinhas, de se afastar das tarefas políticas da atualidade e de romper com grupos importantes de artistas e escritores simpatizantes com a construção socialista”.[v]
Das decisões tomadas, a primeira foi “liquidar a associação de escritores proletários (V.O.A.P.P. e a RAAP)” e convocar a todos para a criação de uma organização literária única, o que foi esperançosamente entendida por muitos como sinal de abertura e liberdade para as várias tendências artísticas.
O que de fato ocorria, entretanto, era a consolidação do stalinismo que se fez acompanhar de profundas modificações no campo cultural. A própria história da Rússia e do partido foram então reescritas; na filosofia, acirraram-se os ataques ao filósofo Abram Deborin, acusado de “idealismo menchevique”, e também a Plekhánov, relegado ao esquecimento. A suprema autoridade, agora, era o “herdeiro” de Lênin, Stalin, a quem todos recorriam, inclusive para se fazer crítica literária e até mesmo criação literária. O culto à personalidade do “guia genial dos povos”, levou escritores a declararem que se inspiravam em seu modo de utilizar a linguagem.
Os textos burocráticos e secos dos informes partidários de Stalin, para eles, possuíam uma até então insuspeitada “concisão, clareza e a cristal pureza da linguagem”. O escritor Valentin Kataev afirmou ter se inspirado na linguagem “precisa, clara e excepcionalmente rica em ritmos” de Stalin, para organizar “a estrutura sintática de seu romance Vremya, uspered”.[vi]
Todo o empenho de Stalin, naquele momento, voltava-se para construir uma sociedade sem classes, e nela a literatura proletária perdia sua razão de ser. Em seu lugar despontava o projeto do realismo socialista – uma literatura “nacional na forma, socialista no conteúdo”. Com isso, o herói proletário cedia lugar ao herói socialista empenhado na construção do novo mundo. E a literatura, obviamente, confundia-se com a propaganda política.
A expressão “realismo socialista” entrou em cena em 1932 no Plenum do Comitê Organizacional da União dos Escritores através da intervenção de Ivan Gronsky. Em 1933, foram publicados aproximadamente 250 artigos sobre o tema e mais 140 entre janeiro e agosto de 1934,[vii] ano da instalação da União dos Escritores Soviéticos, numa conjuntura marcada pelo início do Segundo Plano Quinquenal (1933-1937).
Havia naquele momento uma promessa de distensão, tendo em vista a promulgação da Constituição de 1936 que anunciava a passagem da ditadura do proletariado para a “democracia socialista”. A “luta de classes na frente literária” perdia sua razão de ser naquele momento de pacificação, logo mais interrompido pelos grandes expurgos.
A sociedade soviética passava então por profundas mudanças. O enorme afluxo da população rural para as cidades trouxe, como consequência, uma transformação drástica no ambiente cultural. Evgeny Dobrenko assinalou que depois dos tumultuados anos de coletivização forçada, mobilização e trabalho forçado do Primeiro Plano Quinquenal, a sociedade desenvolveu uma necessidade de “normalização”, de retorno às tradições interrompidas pela década revolucionária”.[viii]
O realismo voltava triunfal à cena, mas acompanhado do adjetivo “socialista” para, com ele, dar conta do novo momento histórico: a construção de uma sociedade sem classes, onde a literatura proletária perdeu sua razão de existir. A “desproletarização” cedeu lugar à glorificação do socialismo e o “método materialista-dialético” passou a exigir o realismo socialista. As teses da Associação dos Escritores Proletários (RAPP) foram então duramente contestadas.
O eixo da crítica feita pelos teóricos do realismo socialista girava em torno da rejeição do psicologismo. A imagem sensível produzida pela arte, para a Associação dos Escritores Proletários, expressava a ideologia do escritor. Ela era, portanto, um produto do ativismo da consciência. Os defensores do realismo socialista, contrariamente, entendiam a imagem como um reflexo da realidade. A partir dessa inflexão materialista, as fontes teóricas da Associação dos Escritores Proletários – Deborin, Plekhánov, Bukhárin etc. – foram atacadas e os seus defensores perseguidos e presos.
As duas concepções em confronto tinham como ponto em comum a defesa do realismo e a recusa das teorias literárias que se apoiavam na alegoria, metáfora, paródia etc. O realismo socialista, contudo, acrescentou o romantismo revolucionário como parte integrante da literatura. Não o velho romantismo que, como acreditavam, embelezava a realidade e, assim fazendo, a desfigurava. O novo romantismo era chamado para ser um instrumento de transformação revolucionária da realidade. E o escritor, segundo Stalin, tornava-se “o engenheiro das almas”.
A imposição do cinzento realismo socialista como modelo único costuma ser contrastado com o espírito libertário e pretensamente democrático das vanguardas.
Mas, as coisas não são tão simples assim. Boris Groys afirmou, contrariamente, que o realismo socialista, a seu modo, apenas “realizou o sonho da vanguarda que queria que a arte passasse para o controle direto do Partido afim de inventar uma vida nova e de “construir o socialismo num só país”, verdadeira obra de arte coletiva e perfeita, mesmo que os autores desse programa não tivessem sido nem Maiakóvski e nem Rodchenko, mas Stalin”[ix].
O ponto em comum era a unidade do projeto político-estético, e não “saber se esta unidade se faria pela estetização da política ou pela politização da estética. E, mais ainda, é possível afirmar que a estetização da política era, para a direção do partido, uma reação à politização da estética pela vanguarda”. Durante um longo período o partido “conservou certa neutralidade nas lutas entre os diversos grupos artísticos que, de tanto se acusarem de ser oponentes políticos, obrigaram o partido a se intrometer e a tomar decisões”.[x]
Quanto ao Proletkult, ele desde sempre defendeu o princípio de “partidarismo” aplicado à literatura pelo RAPP e depois pela União dos Escritores Soviéticos. Entre os dirigentes da União estarão vários membros da RAPP que se adaptaram sem maiores problemas à orientação stalinista como, por exemplo, o escritor Fadeiev.
Na mesma linha de raciocínio György Lukács, que esteve exilado em Moscou nos anos 1930, comentou assim a “conversão” ao stalinismo dos escritores até então filiados à cultura proletária: “o grupo da antiga direção da RAPP que tinha uma orientação sectária nas questões literárias, mas politicamente era fiel a Stalin (Fadeiev, Ermilov etc.) esse grupo conquistou postos decisivos na nova organização. Era claro, pois, que se tratava de realizar a antiga linha da RAPP – ou seja, criar uma literatura que, mediante meios por eles definidos como literários, difundisse as últimas resoluções do partido – no âmbito da nova organização unitária de todos os escritores. Bastava, para isso, batizar como grande arte do socialismo essa ação de propaganda”.[xi]
O mesmo caminho foi seguido pelos “companheiros de viagem”: “Também os velhos “companheiros de viagem” sofreram o destino de todos os “companheiros de viagem”: acompanhar os “hegemônicos” até uma meta e ajudá-los nesse caminho e, depois, adaptarem-se totalmente a trabalhar para eles, nesse novo espaço de chegada, ou ser eliminados”.[xii]
Assim, além da disputa no interior do “campo artístico” (como diria Pierre Bourdieu), havia uma confluência de objetivo: o stalinismo pôs em prática a proposta vanguardista que ansiava passar da “representação da vida” para sua transformação a partir de um projeto que unisse estética e política. O momento decisivo dessa união foi o Primeiro Congresso dos Escritores Soviéticos, realizado em 1934.
*Celso Frederico é professor titular aposentado da ECA-USP. Autor, entre outros livros, de Ensaios sobre marxismo e cultura (Mórula). [https://amzn.to/3rR8n82]
Notas
[i] Citado por STRADA, Vitorio. “Do “realismo socialista” ao “Zdhanovismo””, in HOBSBAWN, Eric. História do marxismo Vol. 9 (Rio de Janeiro: Edição Civilização Brasileira, 1987), p. 188.
[ii] BERNARD, Jean-Pierre A. Le Parti Communiste Français et la question littéraire (1921-1934). (Grenoble: Presses Universitaires de Grenoble, 1972), p. 48.
[iii] ERMOLAEV, Herman. Soviet Literary Theories. 1917-1934. (University of California Press, 1963), p. 72.
[iv] Idem, PP. 61-62.
[v] “Résolution sur la refonte des organizations littéraires et artistiques”, in PÉRUS, Jean. Introduction a la littérature soviétique (Paris: Éditions Sociales, 1949), pp. 102-3.
[vi] ERMOLAEV, Herman. Soviet Literary Theories. 1917-1934. The Genesis of Socialist Realism (University of California Press, 1963), p. 163.
[vii] Idem., p. 6.
[viii] Cf. DOBRENKO, Evgeny. “A cultura soviética entre a revolução e o stalinismo”, in Revista Estudos Avançados, Vol. 31, número 9, 2017,
[ix] GROYS, Boris. Staline oeuvre d´art totale (Nimes: Éditions Jacqueline Chambon, 1990), p. 50.
[x] Idem, p. 52.
[xi] LUKÁCS, György. Arte e sociedade. Escritos estéticos 1932-1967 (Rio de Janeiro: UFRJ, 2009, 2009), p. 29.
[xii] STRADA, Vittorio. “Do “realismo socialista” ao zdhanovismo”, in HOBSBAWN, Eric. História do marxismo, Vol. 9, cit., p. 142 e p. 72.
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