A serviço da repressão – Grupo Folha e violações de direitos na ditadura

Marcelo Guimarães Lima, Homem de pé em chamas, 2025
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Por MARIALVA CARLOS BARBOSA*

Apresentação do livro récem-lançado

1.

Ao começar rememorando o fato de a Folha de S. Paulo ter publicado, em 17 de fevereiro de 2009, um editorial cujo cerne era a crítica à eleição de Hugo Chávez na Venezuela, e neste texto ter se referido ao regime político ditatorial brasileiro inaugurado em abril de 1964, e que só terminaria 21 anos depois, como “ditabranda”, ou seja, uma ditadura “branda” (como se isso fosse possível), o livro mostra, desde a primeira linha, que alguns acontecimentos históricos são da ordem do incontornável, do inominável, daquilo que não se pode esquecer, sob pena de apagar nossa própria humanidade. O “dever de memória” se torna, portanto, inegociável, e deve-se lembrar sempre este passado obscuro que, se não fosse o trabalho de pesquisa, não seria revelado.

Este é o cerne do livro que procura mostrar, em quatro capítulos, como o Grupo Folha atuou na violação de direitos na ditadura se colocando a serviço da repressão como fator-chave e executor de processos da mais inominável qualificação.

Como mostram logo na introdução, o editorial publicado em 2009 pelo jornal engloba uma série de discursos, que se atualizam sem cessar, e baseia-se na premissa de que o regime instaurado com o golpe de 1964 “não teria sido tão violento”. Mais recentemente, vimos emergir os mesmos argumentos, com outros propósitos, não menos execráveis, em certa idolatria ao período ditatorial brasileiro levada a cabo por representantes políticos da extrema-direita no Brasil, capitaneada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro, que fez e faz apologia à ditadura civil-militar instaurada em 1964 e homenagens a torturadores do período nas inúmeras vezes que se referiu e se refere, por exemplo, ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi chefe do DOI-CODI.

Antes de tudo, o livro cumpre com o dever de memória de mostrar como o enquadramento que a Folha de S. Paulo produziu e levou o jornal a não ser identificado com a ditadura militar não corresponde, em nenhum momento, à sua ação efetiva de participação direta nas violações de direitos durante a ditadura. As profundas relações do jornal com o regime, como enfatizam os autores, não podem ser relativizadas nem muito menos esquecidas.

A questão principal que o livro procura mostrar é que além da sua atuação em posicionamentos políticos e editoriais, a Folha, como um corpo organizacional, colaborou diretamente com a repressão — “emprestando seus veículos para que o regime pudesse realizar, de forma mais eficiente, a captura e a perseguição de militantes políticos”, por exemplo. Além disso, o Grupo Folha cedeu suas instalações para que agentes da repressão ali atuassem. Com isso, mostram os pesquisadores, a empresa se beneficiou economicamente e de maneira contundente do contexto instaurado pela ditadura.

2.

O livro resulta de importante pesquisa que reuniu historiadores e estudiosos do jornalismo, e que foi vencedora de edital público do Centro de Antropologia de Arqueologia Forense (CAAF/Unifesp), com apoio do Ministério Público Federal (MPF). Este edital selecionou grupos de pesquisa para investigar dez empresas suspeitas de colaborar com o regime, às quais se juntaram, posteriormente, mais três empesas. A única do setor de comunicação foi a Folha de S. Paulo.

O livro é produto, portanto, do trabalho desta equipe, que durante dois anos buscou documentos inéditos e realizou, ao todo, 44 entre- vistas, com mais de 100 horas de gravação, procurando diálogos memoráveis com uma enorme diversidade de pessoas que pudessem esclarecer a colaboração do Grupo Folha com a repressão.

Foram entrevistados jornalistas e trabalhadores do grupo que foram perseguidos, alguns que foram monitorados e outros que foram presos em seus ambientes de trabalho. Diversos profissionais testemunharam sobre a estreita relação dos dirigentes do jornal com a repressão. Houve também os que narraram terem sido presos em operações que envolveram veículos do Grupo Folha.

As entrevistas incluíram agentes do DEOPS-SP e do DOI-CODI, aparatos centrais da repressão durante a ditadura, que confirmaram a colaboração do grupo com o regime e o modus operandi das ações que empreendiam na chamada “caça aos terroristas”.

O resultado não poderia deixar de ter a importância de que a obra se reveste: um livro que aciona a luta contra o esquecimento de momentos-chave da nossa história e coloca marcas indeléveis na sua projeção como expectativas de futuros possíveis, em que ações contra a democracia não podem ser silenciadas.

Do ponto de vista de uma história da imprensa, o livro tem, ainda, outros qualificativos, em que se destaca a perspectiva metodológica inovadora, na qual a memória se torna centro propulsor de ingresso num passado como abertura fundamental em direção a ele – e, mais do que isso, como certificação de que houve um passado.

Mesmo submetido aos enquadramentos e às ingerências do presente, o ato memorável como recurso testemunhal/documental revela as fímbrias narrativas de um tempo que permanece durando, em função do incontornável passado.

Assim, como um acontecimento incontornável, o regime ditatorial brasileiro produziu muitas marcas, enfeixadas pelo antidemocrático, que não podem e não devem permitir o esquecimento. Dessa forma, é um passado que não pode ser submetido a novos contornos. E é isso que o livro mostra, construindo, pela pesquisa, uma espécie de mapa das ações de violação contra os direitos humanos produzidas pela Folha de S. Paulo, entre outras empresas, como um aconteci- mento que assim se qualifica como sendo o incontornável do passado.

Além das entrevistas, os autores se debruçaram numa infinidade de documentos consultados em acervos públicos que guardam essa documentação dos órgãos da repressão, como o arquivo do Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo, nos quais também identificaram abusos em relação aos direitos dos trabalhadores, descritos igualmente no livro. Completa o corpus de análise uma minuciosa pesquisa dos jornais do Grupo Folha, como o leitor poderá verificar ao folhear as páginas que se seguem.

3.

O livro se estrutura em quatro capítulos que seguem as frentes abertas pela investigação sobre formas e conteúdos das violações de direitos humanos durante a ditadura perpetradas em diversas ações pelo Grupo Folha, agrupados em três grandes eixos de análise (que também foram norteadores do projeto): os benefícios econômicos; o apoio e a cooperação com ações de repressão; e os danos causados aos trabalhadores.

Assim, o primeiro capítulo, ao mesmo tempo que apresenta um histórico do Grupo Folha, mostra o contexto político que beneficiou diretamente os empresários à frente do grupo, de forma a constituí-lo como um dos maiores conglomerados de mídia do país.

Na sequência, o segundo capítulo destaca os elementos de apoio editorial e de colaboração ao regime militar, mostrando como o Grupo Folha participou ativamente das conspirações e articulações que antecederam o golpe de 1964 e, sobretudo, o suporte dado pelo grupo ao regime autoritário que se estendeu muito além do apoio editorial, frequentemente lembrado em outras análises.

Segue-se o terceiro capítulo, em que o foco são os trabalha- dores e outras vítimas das violações praticadas, de maneira direta ou indireta, pela empresa. E, por fim, no último capítulo, o quarto, os autores tecem considerações finais sobre os benefícios econômicos, as violações de direitos e a responsabilidade empresarial do Grupo Folha, abrindo uma brecha reflexiva e efetiva sobre formas possíveis de reparação.

Entremeiam cada um dos capítulos muitas falas dos entrevistados. São testemunhos de ações inconcebíveis quando se preza a liberdade democrática e o direito de expressar opiniões e divergências. Em tempos ditatoriais isso não é possível. São cenas de mortes ocorridas no interior dos organismos de repressão, como o DOI-CODI, mas que nas páginas da Folha de S. Paulo apareciam escamoteadas por outros pretensos fatos jornalísticos, como um tiroteio não existente – “Vocês morrem e nós damos a versão que queremos para a morte”.

A frase do torturador ecoada pela memória da depoente mostra o envolvimento atávico do grupo com a repressão desde a produção de fatos noticiosos eivados de mentiras (diríamos hoje fake news) até ações mais diretas, que se resumem à violação de direitos durante todo o período ditatorial brasileiro.

4.

Muitas outras violações de direitos aparecem descritas no livro, como a atuação de agentes da repressão que se transformavam em funcionários do grupo. Também há referência ao empréstimo dos carros da Folha para os órgãos de repressão – muito mencionado, segundo os autores, mas pouco investigado. Vozes que ecoam no livro descrevem, em várias passagens, detalhes de cenas dos carros estacionados dentro do DOI-CODI.

São vozes, portanto, privilegiadas pela escuta atenta dos autores, que, mais do que contar histórias, exercem um trabalho duradouro de memória, fazendo ecoar o passado no presente, para através do papel de testemunha dizerem (e uso aqui expressões de Paul Ricoeur) “eu estava lá”, “por favor acreditem em mim” e, caso não acreditem, “perguntem a outras pessoas” que também estiveram lá.

São incontáveis os que estiveram lá, e em várias situações, atestando a existência de um passado que apresenta cenas que, muitos gostariam, pelos mais variados motivos, verem varridas de suas memórias. Uns pela dor que a memória traumática produz; outros, pela certeza de que, se ninguém falar, há não apenas a possibilidade de apagar o passado, mas sobretudo de dar outra interpretação a ele: como aquela de uma ditadura que teria sido tão branda que foi chamada de “ditabranda”, como remarca os autores do livro nas primeiras linhas do seu texto.

Por tudo isso, este livro torna-se também testemunha de uma pesquisa desenvolvida com seriedade, para que o período ditatorial brasileiro e suas ações de violação de direitos não sejam nunca esquecidos. E é em função desta luta contra o esquecimento, que também pode ser “comandado”, que a pesquisa foi feita e é agora entregue ao leitor, que, ao ler cada um dos capítulos, ingressará numa cadeia de eventos e significações em favor da liberdade e da justiça.

*Marialva Carlos Barbosa é professora titular de Jornalismo na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Autora, entre outros livros, de História da comunicação no Brasil (Vozes).

Referência


Armanda Romanelli et alli. A serviço da repressão: Grupo Folha e violações de direitos na ditadura. Rio de Janeiro, Mórula Editorial, 2024, 258 págs. [https://amzn.to/4lDNR1F]


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