Por EMMANUEL TODD*
O historiador francês revela como previu “retorno da Rússia” em 2002 baseado em queda da mortalidade infantil (1993-1999) e conhecimento da estrutura familiar comunitária que sobreviveu ao comunismo como “pano de fundo cultural estável”
Causa-me certa estranheza proferir a conferência de hoje. Profiro-as com frequência na França, na Itália, na Alemanha, no Japão, no mundo anglo-americano – no Ocidente, em suma. Falo, nestas ocasiões, desde o interior de meu próprio mundo; desde uma perspectiva crítica, é certo, mas do interior de meu mundo.
Aqui as coisas são diferentes: estou em Moscou, na capital do país que desafiou o Ocidente e que provavelmente vencerá este desafio. No plano psicológico, trata-se de um exercício completamente diferente.
Autorretrato anti-ideológico
Vou começar apresentando-me, não por narcisismo, mas antes porque, com muita frequência, as pessoas da Franca, ou de outros países, que falam da Rússia de modo compreensivo, ou mesmo com simpatia, têm um certo perfil ideológico. Frequentemente estas pessoas vêm da direita conservadora ou populista, e projetam sobre a Rússia uma imagem ideológica a priori. Esta simpatia ideológica é, na minha opinião, irrealista e fantasiosa. Eu definitivamente não pertenço a esta categoria.
Na França sou o que se diria um liberal de esquerda, fundamentalmente apegado à democracia liberal. O que me distingue das outras pessoas apegadas à democracia liberal é o fato de que, por ser antropólogo e por conhecer, por meio da análise dos sistemas familiares, a diversidade do mundo, tenho grande tolerância para com as culturas não-ocidentais e não parto do princípio de que o mundo inteiro tem de imitar o Ocidente. Esta atitude de catecista é particularmente comum em Paris. Penso, quanto a mim, que cada país tem sua história, sua cultura, sua trajetória.
Seja como for, devo confessar que há, em mim, uma dimensão emocional, uma verdadeira simpatia para com a Rússia, que pode explicar minha capacidade de escutar seus argumentos no confronto geopolítico em curso. Esta abertura não resulta do que a Rússia possa ser no plano ideológico, mas de um sentimento de reconhecimento por ela nos haver libertado no nazismo.
É o momento de dizê-lo, agora que nos aproximamos do dia 9 de maio, o dia da vitória. Os livros de história que eu li, quando tinha dezesseis anos, contavam a guerra travada pelo exército vermelho contra o nazismo. Tenho o sentimento de uma dívida que é imperioso honrar.
Tenho consciência de que a Rússia saiu do comunismo por si própria, por seus próprios esforços; e de que ela sofreu enormemente durante este período de transição. Penso que a guerra defensiva à qual a Rússia foi arrastada pelo Ocidente, após todo este sofrimento e justo quando tentava reerguer-se, é uma falta moral do Ocidente. Isto quanto à dimensão ideológica.
De resto, não sou ideólogo, não tenho um programa para a humanidade; sou historiador, sou antropólogo, considero-me um cientista e o que posso aportar à compreensão do mundo e, em particular, à geopolítica, advém essencialmente de minhas competências profissionais.
Antropologia e política
Formei-me em pesquisa histórica e antropologia na Universidade de Cambridge, na Inglaterra. Meu orientador foi Peter Laslett. Ele havia descoberto que a família inglesa do século XVII era simples, nuclear, individualista, cujos filhos se dispersavam cedo. Em seguida, tive como examinador a outro grande historiador inglês, ainda vivo, Alan Macfarlane. Ele compreendera a existência de uma relação entre o individualismo político e econômico dos ingleses e dos anglo-saxões em geral a essa família nuclear identificada por Peter Laslett no passado da Inglaterra.
Sou aluno destes dois grandes historiadores ingleses. O que fiz, no fundo, foi generalizar a hipótese de Alan Macfarlane. Percebi que o mapa do comunismo, em meados da década de 1970, lembrava muito aquela do sistema familiar que chamo “comunitário” (e que outros chamam família patriarcal, ou joint family), de certa forma o oposto conceitual do sistema familiar inglês.
Tomemos por exemplo a família camponesa russa. Não sou especialista em Rússia; o que conheço realmente da Rússia são os registros públicos do século XIX, que descreviam as famílias camponesas russas. Estas últimas não eram, como as famílias dos camponeses ingleses do século XVII, pequenas famílias nucleares (pai, mãe e filhos), mas famílias enormes compostas de um homem, sua mulher, seus filhos, as mulheres dos filhos e seus netos.
Este sistema era patrilinear porque as famílias trocavam suas mulheres para assim obter esposas. Encontra-se este tipo de família comunitária na China, no Vietnam, na Sérvia, na Itália Central (região que sempre votou nos comunistas). Uma das particularidades da família comunitária russa é que ela reservava um estatuto elevado para as mulheres, já que sua aparição era recente.
A família comunitária russa apareceu entre os séculos XVI e XVIII. A família comunitária chinesa apareceu antes da era cristã. A família comunitária russa tinha alguns séculos de existência, a família comunitária chinesa tinha dois milênios.
Estes exemplos revelam minha percepção do mundo. Não percebo um mundo abstrato, mas um mundo no qual cada uma das grandes nações, e cada uma das pequenas nações, teve uma estrutura familiar camponesa distinta, estrutura que explica muito sobre seu comportamento atual.
Posso dar outros exemplos. O Japão e a Alemanha, que tanto se parecem no plano industrial e em suas concepções da hierarquia, têm também em comum uma estrutura familiar diferente dos tipos familiares nucleares e comunitários, a saber, a família-tronco, sobre a qual não poderei falar hoje.
Se observarmos a mídia hoje, veremos que tanto os jornalistas quanto os políticos falam de Donald Trump e de Vladimir Putin como se estes fossem os agentes fundamentais da história, ou mesmo pessoas com o poder de moldar a sociedade. Eu os vejo fundamentalmente como a expressão de culturas nacionais, que podem se encontrar, elas, em fase de expansão, estáveis ou decadentes.
Devo esclarecer algo que diz respeito à minha reputação. Embora 95% da minha vida de pesquisador tenha sido consagrada à análise das estruturas familiares, assunto sobre o qual escrevi livros de 500 ou 700 páginas cada, não sou tão conhecido por isso. Sou mais conhecido por três ensaios de geopolítica nos quais faço uso de meu conhecimento sobre este pano de fundo antropológico para compreender o que está acontecendo no mundo.
Em 1976, publiquei o livro La chute finale, Essai sur la décomposition de la sphère soviétique (A queda final. Ensaio sobre a decomposição da esfera soviética), no qual predizia o colapso do comunismo. A queda da taxa de fecundidade das mulheres russas mostrava que os russos eram pessoas como as outras, em processo de modernização, e que o comunismo não havia fabricado nenhum homo sovieticus.
Identifiquei, sobretudo, uma alta na mortalidade infantil entre 1970 e 1974, na Rússia e na Ucrânia. A alta na mortalidade das crianças de menos de um ano mostrava que o sistema começara a deteriorar-se. Escrevi este primeiro livro muito jovem, aos 25 anos, e tive de esperar outros 15 até que minha predição se verificasse.
Em 2002, escrevi um segundo livro de geopolítica, Après l’Empire (Após o Império), à época em ninguém falava de outra coisa que não fosse a hiperpotência americana. Explicavam-nos que a América dominaria o mundo por um período indefinido, num mundo unipolar. Eu dizia o contrário: o mundo é demasiado vasto, o tamanho relativo dos EUA está se reduzindo no plano econômico e eles não poderão controlar o mundo. O que acabou acontecendo.
Neste Après l’Empire há uma predição cuja verificação ainda me surpreende. Num capítulo que intitulei “Le retour de la Russie” (“O retorno da Rússia”), previ o retorno da Rússia como uma potência de primeira ordem, a partir de realmente muito poucos indícios. Tinha observado uma nova baixa na mortalidade infantil entre 1993 e 1999, após uma alta entre 1990 e 1993. Mas eu sabia, por instinto, que o pano de fundo cultural comunitário russo, que havia possibilitado o comunismo numa fase de transição, sobreviveria ao período de anarquia dos anos 1990, constituindo uma estrutura estável sobre a qual alguma coisa poderia reconstruir-se.
Há, no entanto, um erro enorme neste livro: previ um destino autônomo para a Europa ocidental. E há uma grande omissão: não digo nada sobre a China.
Chego, por fim, ao meu terceiro livro de geopolítica, que, penso, será o último: La Défaite de l’Occident (A derrota do Ocidente). É para falar deste livro que estou hoje em Moscou. O livro prediz que, em meio ao confronto geopolítico aberto com a entrada do exército russo na Ucrânia, o Ocidente será derrotado. Uma vez mais me coloco contra a opinião geral no meu país, ou no meu campo, já que sou eu próprio um ocidental.
Direi inicialmente por que razões me foi tão fácil escrever este livro, mas também tentarei dizer por que, agora que a derrota do Ocidente parece certa, se me tornou muito mais difícil explicar no curto prazo o processo de deslocamento do Ocidente, mesmo sendo capaz de predizer no longo prazo a continuação do declínio americano.
Estamos numa encruzilhada: passamos da derrota ao deslocamento. O que me faz ser prudente é minha experiência passada do momento do colapso soviético. Embora havendo previsto aquele colapso, não fui capaz de prever a amplitude do deslocamento e o nível de sofrimento que tal deslocamento acarretaria para a Rússia.
Eu não havia compreendido que o comunismo não era apenas uma forma de organização econômica, mas que era também um sistema de crenças, uma quase-religião, que estruturava a vida social soviética e a vida social russa. O deslocamento da crença acarretaria uma desorganização psicológica para muito além da desorganização econômica. Estamos chegando a uma situação deste tipo no Ocidente hoje. O que estamos vivendo não é simplesmente uma derrota militar ou uma crise econômica, mas um deslocamento das crenças que organizavam a vida social ocidental desde há várias décadas.
Da derrota ao deslocamento
Lembro-me bem do contexto no qual escrevi A derrota do Ocidente. Eu estava em minha casa na Bretanha, no verão de 2023. Os jornalistas franceses e de outros países estavam excitados comentando os sucessos (imaginários) da contraofensiva ucraniana. Vejo-me como se fosse hoje escrevendo, com calma: “a derrota do Ocidente é certa”. Não tive nenhum problema com isso.
Hoje, ao contrário, quando falo sobre o deslocamento, prefiro adotar uma postura mais humilde ante os eventos. O comportamento de Donald Trump é um espetáculo da incerteza. O belicismo dos europeus, que perderam a guerra ao lado dos americanos e que falam agora em vencê-la sem eles, é algo desconcertante.
Isto é o presente. Os eventos de curto prazo são muito difíceis de prever. Em compensação, no médio e no longo prazo, a compreensão e a previsão quanto ao Ocidente, e particularmente quanto aos EUA, me parecem mais fáceis, mesmo que, evidentemente, não se possa ter nenhuma certeza. Eu tive muito cedo, desde 2002, uma visão de médio e longo prazo positiva com relação à Rússia. Mas hoje tenho uma visão de médio e longo prazo muito negativa para os Estados Unidos. O que hoje vivemos é apenas o começo da queda dos Estados Unidos e devemos preparar-nos para ver coisas muito mais dramáticas.
A derrota do Ocidente – uma predição fácil
Remeter-me-ei inicialmente ao modelo de A derrota do Ocidente. Qualquer um pode verificar o que aí está escrito. Direi por que razão foi-me relativamente fácil conceber esta derrota. Nos anos precedentes, eu já havia analisado o retorno da Rússia à estabilidade.
Nunca compartilhei do fantasma ocidental que imaginava um regime monstruoso, chefiado por Vladimir Putin, de um Putin diabólico e de um povo russo idiotizado e submisso, que era a visão dominante no Ocidente. Eu havia lido Russie, le retour de la puissance (Rússia, o retorno da potência), excelente livro de um francês pouco conhecido, David Teurtrie, publicado pouco antes da entrada das tropas russas na Ucrânia, no qual se descrevia a decolagem da economia russa, de sua agricultura, de suas exportações, de suas centrais nucleares. O autor explicava como a Rússia se havia preparado, desde 2014, para desconectar-se do sistema financeiro ocidental.
Além disso, eu dispunha dos meus indicadores habituais, antes relativos à estabilidade social que àquela econômica. Eu continuava acompanhando as taxas de mortalidade infantil, o indicador estatístico que mais utilizo. As crianças de menos de um ano são os seres mais frágeis numa sociedade e suas chances de sobrevivência são o indicador mais sensível da coesão e da eficácia social. Nos últimos 20 anos, a taxa de mortalidade infantil russa baixou a um ritmo acelerado, mesmo que a mortalidade global russa, particularmente entre os homens, seja ainda muito alta. Já há alguns anos, a taxa de mortalidade infantil russa voltou a ser mais baixa que a dos EUA.
A taxa de mortalidade infantil americana é um dos indicadores que nos permite ver que algo não vai bem nos EUA. E, infelizmente, também a taxa de mortalidade infantil da França, que voltou a crescer, está superando a da Rússia. Doí-me, a mim que sou francês, admiti-lo, mas, como historiador, devo ser capaz de analisar os fatos que me chocam. A história e seus eventos não existem para me alegrar, mas para que eu os estude.
Tomei nota, também, da queda rápida da taxa de suicídios e de homicídios na Rússia entre 2000 e 2020. Eu dispunha de todos estes indicadores e ainda de meu conhecimento da estrutura familiar comunitária russa, de origem camponesa, que não existe mais de forma visível, mas continua agindo. Está claro que a família camponesa do século XIX não existe mais, mas os seus valores sobrevivem ainda hoje nas interações entre os indivíduos. Existem ainda hoje na Rússia valores reguladores de autoridade, igualdade e comunidade, que garantem uma particular coesão social.
Esta é uma hipótese talvez difícil de ser aceita por homens e mulheres modernos, inseridos na vida urbana atual. Acabo de chegar a Moscou, que redescubro transformada desde minha última visita, em 1993. Moscou é uma cidade imensa e moderna. Como se poderia imaginar, neste contexto material e social, a persistência de valores comunitários do século XIX?
Experimento aqui o que experimento em outros lugares. É o que experimento, por exemplo, no Japão. Tóquio é uma cidade imensa; na verdade, com seus 40 milhões de habitantes, é duas vezes maior que Moscou. Mas é fácil ver e aceitar a ideia de que um sistema de valores japoneses, herdado de uma estrutura familiar antiga, ali se perpetua. Penso da mesma forma na Rússia, com a diferença de que a família comunitária russa, autoritária, mas igualitária, não era igual à família-tronco japonesa, autoritária e desigual.
Economia, demografia, antropologia da família: em 2022, eu não tinha nenhuma dúvida sobre a solidez da Rússia. E pude observar, portanto, desde o início da guerra na Ucrânia, com um misto de tristeza e divertimento, como os jornalistas, políticos e politólogos franceses lançavam hipóteses sobre a fragilidade da Rússia e a inevitabilidade do colapso de sua economia, de seu regime político etc.
Autodestruição dos Estados Unidos
Constrange-me dizê-lo aqui em Moscou, mas devo reconhecer que para mim a Rússia nunca foi um tema importante. Isto não quer dizer que a Rússia não me interessa, mas que nunca esteve no centro de minha reflexão. O cerne da minha reflexão está descrito no título de meu livro, A derrota do Ocidente. Não é a vitória da Rússia, mas a derrota do Ocidente o objeto do meu estudo. Penso que o Ocidente se está destruindo a si próprio.
Para propor e demonstrar esta hipótese, eu também dispunha de um certo número de indicadores. Vou contentar-me aqui com falar dos Estados Unidos. Há bastante tempo eu trabalhava sobre a evolução dos EUA.
Eu tinha presente a destruição da base industrial norte-americana, particularmente desde a entrada da China na Organização Mundial do Comércio, em 2001, e também a dificuldade que os EUA teriam em produzir armamento suficiente para alimentar a guerra.
Eu havia comparado o número de engenheiros – de pessoas consagradas à produção de coisas reais – nos EUA e na Rússia. E havia observado que a Rússia, com uma população equivalente a 40% daquela dos EUA, conseguia formar mais engenheiros. Simplesmente porque na Rússia 25% dos alunos estudam engenharia, contra apenas 7% nos EUA. É claro que o número de engenheiros deve ser visto como uma chave, que evoca, mais profundamente, o número de técnicos e de operários qualificados e a capacidade industrial em geral.
Eu dispunha de outros indicadores de longa duração sobre os Estados Unidos, havendo examinado a queda do nível de educação e o refluxo da educação superior, em qualidade e quantidade, refluxo iniciado ainda em 1965. A baixa do potencial intelectual americano é algo que remonta a muito antes. Esta baixa, no entanto, não devemos esquecer, sobreveio após um ascenso que se estendeu por dois séculos e meio.
Os Estados Unidos foram um imenso sucesso histórico antes de afundar no descalabro atual, um sucesso que constituiu o exemplo mais forte do êxito histórico do mundo protestante. A religião protestante foi o coração da cultura americana. Bem como da cultura inglesa, das culturas escandinavas e da cultura alemã, já que a Alemanha é composta de dois terços de protestantes.
O protestantismo exigia o acesso de todos os fiéis às sagradas escrituras: que todos soubessem ler. Por toda parte, o protestantismo foi, portanto, muito favorável à educação. Em torno de 1900, o mapa dos países nos quais todos sabiam ler coincidia com o mapa do protestantismo. Além disso, a educação secundária decolou nos EUA desde o período de entreguerras, o que não foi o caso dos países protestantes europeus.
O colapso educacional dos Estados Unidos tem uma evidente relação com o colapso religioso. Sei que hoje se fala muito nesses evangélicos exaltados que rodeiam Donald Trump. Em todo caso, não se trata do verdadeiro protestantismo. O Deus dos evangélicos é um sujeito simpático, que distribui presentes e dinheiro, não é mais o severo Deus calvinista, que exigia um alto nível de moralidade, encorajava uma forte ética do trabalho e favorecia a disciplina social.
A disciplina social nos EUA sempre deveu muito à disciplina moral protestante, mesmo no século XX, quando não eram mais um país protestante homogêneo, graças aos imigrantes católicos, judeus e, posteriormente, asiáticos. Até pelo menos 1970, o núcleo dirigente do país e da cultura permaneceu protestante. Faziam-se então piadas sobre os WASP, White Anglo-Saxon Protestants, que tinham certamente seus defeitos, mas que representavam uma cultura central e controlavam o sistema americano.
Estágios ativo, zumbi e zero da religião
Uma conceptualização particular permite-me analisar o declínio religioso, não somente neste livro, mas em todos os meus livros recentes. Trata-se de uma análise em três etapas do colapso da religião:
Distingo inicialmente um estágio ativo da religião, no qual as pessoas são crentes e praticantes. Identifico em seguida um estágio a que chamo estágio zumbi da religião, no qual as pessoas não são mais crentes nem praticantes, mas mantêm, em seus hábitos sociais, valores e condutas do precedente estado ativo da religião. Mencionarei, como exemplo, o republicanismo francês, que sucedeu à igreja católica como uma religião civil zumbi.
Por fim advém o terceiro estágio, que vivemos atualmente no Ocidente, a que chamo estágio zero da religião, no qual até os hábitos sociais herdados da religião desapareceram.
Identifico um indicador temporal da chegada deste estágio zero, que, no entanto, não deve ser entendido desde uma perspectiva moralista. Trata-se apenas de um instrumento técnico, que me permite datar o fenômeno por volta de 2013-2015.
Utilizo para datar o início do estágio zero as leis que instituíram o casamento entre indivíduos do mesmo sexo. Trata-se de um indicador do fato de que nada mais resta dos hábitos religiosos do passado. O casamento para todos é pós-religioso. Gostaria de repetir que não há nada de mal nisso. Minha função não é a de pregar nenhuma moral. Digo apenas que é um indicador que nos permite considerar que chegamos a um estágio zero da religião.
Associar o declínio industrial ao declínio educacional e em seguida ao declínio religioso, para lograr enfim diagnosticar um estágio zero da religião, permite-nos afirmar que a queda dos Estados Unidos não é um fenômeno reversível e de curto prazo. Ela não será reversível, em todo caso, durante os anos em que durar a guerra na Ucrânia.
Uma derrota americana
Esta guerra ainda em curso é um confronto entre a Rússia e os Estados Unidos, mesmo que o exército que representa o Ocidente seja aquele ucraniano. Ela nunca teria ocorrido sem o material americano, sem os serviços de observação e inteligência americanos. E por isto é absolutamente normal que a negociação final se dê entre a Rússia e os EUA.
Não deixo de estranhar a surpresa dos europeus ao se verem excluídos das negociações. A surpresa da Europa é para mim uma surpresa. Desde o início do conflito os europeus se comportaram como vassalos dos EUA. Participaram das sanções, forneceram armas e equipamentos, mas nunca dirigiram a guerra. Eis a razão pela qual os europeus não podem ter uma visão correta, realista, da guerra.
Até aqui chegamos. Um Ocidente derrotado industrialmente e economicamente. Pessoalmente, intelectualmente, não tive grande dificuldade em prever esta derrota.
Retorno ao que mais me interessa, àquilo que é o mais difícil para quem trabalha elaborando prospectivas: à análise e à compreensão dos eventos em curso. Dou conferências com bastante regularidade. Em Paris, na Alemanha, na Itália, recentemente em Budapeste. O que me espanta é que, a cada nova conferência, mesmo contra o pano de fundo de uma base estável, comum a todas elas, há sempre novos elementos a integrar. Nunca sabemos a posição real de Trump. Não sabemos se sua vontade de sair desta guerra é sincera.
Há surpresas extraordinárias, como a sua rinha com seus próprios aliados (ou deveríamos dizer vassalos?): ouvir o presidente dos EUA designar a europeus e ucranianos como responsáveis pela guerra e pela derrota é algo sem precedentes. Devo confessar minha admiração ante o autocontrole e a calma do governo russo, cujo dever é (aparentemente) levar Donald Trump a sério, e que deve aceitar sua visão da guerra porque, a final de contas, negociar é preciso.
Noto, apesar de tudo, um elemento positivo em Donald Trump, que se mantém estável desde o início: ele tem falado com o governo russo, afastando-se da atitude europeia de demonização da Rússia. Trata-se de um retorno ao realismo e, em si mesmo, de algo positivo, mesmo que as negociações não resultem em nada concreto.
A revolução de Donald Trump
Gostaria de tentar entender as causas imediatas da revolução de Donald Trump. Cada revolução tem causas, antes de mais nada, endógenas, resultando da dinâmica e das contradições internas de cada sociedade considerada. No entanto, resulta evidente do estudo histórico a frequência com que as revoluções são desencadeadas por derrotas militares.
A revolução russa de 1905 foi precedida pela derrota militar ante o Japão. A de 1917, pela derrota ante a Alemanha. A revolução alemã de 1918 foi precedida pela derrota ante a França e a Inglaterra.
Mesmo a revolução francesa, aparentemente mais vinculada a causas endógenas, foi precedida pela derrota que pôs fim, em 1763, à guerra dos sete anos, derrota pesadíssima que acarretou, para o Antigo Regime, a perda de todas as suas colônias. O colapso do sistema soviético, por seu turno, foi desencadeado por um duplo fiasco: a derrota na corrida armamentista com os EUA e a retirada das tropas soviéticas do Afeganistão.
Creio necessário partir desta noção de uma derrota que leva a uma revolução para entender a revolução de Donald Trump. A experiencia em curso nos EUA, mesmo que não saibamos aonde nos terminará levando, é uma revolução. Trata-se de uma revolução no sentido estrito? Ou de uma contrarrevolução? Trata-se em todo caso de um fenômeno de uma violência extraordinária, uma violência que se volta por um lado contra os aliados/vassalos, europeus e ucranianos, mas que se dirige por outro lado ao próprio interior da sociedade americana, contra as universidades, as teorias de gênero, a cultura científica, as políticas de inclusão racial, o livre-comércio e a imigração.
Esta violência revolucionária está, na minha opinião, ligada à derrota. Várias pessoas me relataram conversas entre os integrantes da equipe de Donald Trump, nas quais comparece de forma escancarada a sua consciência da derrota. Pessoas como J. D. Vance, o vice-presidente, entre várias outras, compreenderam há muito que a América já perdeu esta guerra.
Trata-se de uma derrota fundamentalmente econômica. A política de sanções desfez a fantasia da pretendida onipotência financeira do Ocidente. Os americanos confrontaram-se com a revelação da fragilidade de sua indústria militar. O Pentágono sabe muito bem que um dos limites à sua ação é a capacidade limitada do complexo militar-industrial americano.
Uma tal consciência da derrota contrasta com a não-consciência dos europeus. A Europa não organizou a guerra. Como não a organizaram, os europeus não podem ter uma plena consciência da derrota. Para atingi-la, seria necessário que tivessem acesso à reflexão realizada pelo Pentágono, de que não dispõem. Por isso a Europa se situa, mentalmente, num tempo anterior à derrota, enquanto a atual administração norte-americana se situa mentalmente num tempo a ela posterior.
Minha experiência com o estudo da queda do comunismo soviético me ensinou que o colapso de um sistema é um fenômeno tanto econômico quanto mental. O que entrou em colapso no Ocidente atual, e em primeiro lugar nos EUA, não foi apenas a dominação econômica, mas também o sistema de crenças que, superpondo-se-lhe, a animava. As crenças que acompanhavam o triunfalismo ocidental estão em pleno colapso. Mas, como em todo processo revolucionário, não podemos ainda saber que nova crença será mais importante, que nova crença sairá vitoriosa deste processo de decomposição.
O que há de razoável no governo Trump
Faço questão de precisar que, inicialmente, não nutria nenhuma hostilidade contra Donald Trump. Quando de sua primeira eleição, em 2016, eu era um dos que sustentavam que a América estava doente: que seu coração industrial e operário havia muito estava sendo destruído, que os americanos comuns estavam sofrendo com a política geral do Império, e que abundavam as razões para que boa parte do eleitorado votasse em Donald Trump.
Há muita coisa bastante razoável nas intuições de Donald Trump. O protecionismo, a ideia de que é necessário proteger a indústria americana para reconstrui-la, resulta de uma intuição bastante razoável. Eu próprio sou um protecionista e já escrevi bastante sobre o assunto. Também considero razoável a ideia de que haja um controle da imigração, mesmo reconhecendo que o estilo adotado pelo governo Trump na gestão da imigração é de uma violência indefensável.
Outro elemento razoável, que parece chocar muitos ocidentais, é a insistência de Trump em que só existem dois sexos, homens e mulheres. Não vejo nisso nenhuma aproximação com a Rússia de Putin, mas um retorno à concepção do senso comum sobre a humanidade desde o surgimento do homo sapiens, uma evidência biológica sobre a qual, aliás, a igreja e a ciência estão de acordo.
Ou seja, há elementos razoáveis na revolução de Donald Trump.
O niilismo na revolução de Trump
Tenho agora de dizer por que razões sou pessimista, apesar da presença destes elementos, tudo somado, razoáveis; e por que razões penso que o experimento de Trump fracassará. Relembrarei aqui por que razões fui otimista com relação à Rússia desde 2002 e explicarei por que razões sou pessimista com relação aos EUA em 2025.
Há no comportamento da administração de Donald Trump um déficit de pensamento, um comportamento impulsivo, não-refletido, que evoca o conceito central da Derrota do Ocidente: o niilismo. Expliquei, na Derrota do Ocidente, que o vazio religioso, o estágio zero da religião, leva antes à angústia que a um estado de liberdade e de bem-estar. O estágio zero da religião nos remete ao problema fundamental. O que é um homem? Qual é o sentido das coisas? Uma das respostas clássicas a tais interrogações, em tempos de colapso religioso, é o niilismo. Passa-se da angústia ante o vazio à deificação do vazio, uma deificação do vazio que pode levar à vontade de destruição das coisas, dos homens e, em última instância, da própria realidade.
A ideologia transgênero não representa em si mesma nada de errado no plano moral, mas é fundamental no plano intelectual, porque, ao dizer que um homem pode tornar-se uma mulher e que uma mulher pode tornar-se um homem, ela evidencia uma vontade de destruição da própria realidade. Associada à cancel culture (cultura do cancelamento) e à preferência pela guerra, ela era um elemento do niilismo predominante na administração de Joe Biden. Donald Trump a rejeita.
No entanto, o que choca hoje é a emergência de outras formas de niilismo: uma vontade de destruição da ciência, da universidade, das classes médias negras; uma violência desordenada na aplicação de medidas protecionistas. Quando, sem refletir, Trump fala em impor tarifas às exportações canadenses, sem considerar que toda a região dos Grandes Lagos constituí um único sistema industrial, vejo em ação um desejo tanto de destruição quanto de proteção.
Quando decide impor, sem aviso, tarifas protecionistas contra a China, esquecendo que a maioria dos smartphones americanos são ali produzidos, penso que não se trata apenas de burrice, mas também de niilismo. E, para situar-nos num registro moral mais elevado, a fantasia de transformar a Faixa de Gaza, uma vez expulsa a sua população, num resort turístico não seria um projeto niilista de alta intensidade?
Eu procuraria a contradição fundamental da política de Donald Trump na questão do protecionismo. A teoria do protecionismo afirma que as medidas de proteção não podem funcionar sem que o país que as adota tenha uma população qualificada, que permita delas tirar partido. Uma política protecionista não será eficaz na ausência de engenheiros, cientistas e técnicos qualificados, de que os EUA não dispõem em número suficiente. No entanto, fala-se agora em expulsar os estudantes chineses e de outros países, os mesmos que permitiriam compensar o déficit de engenheiros e de cientistas. É absurdo.
A teoria do protecionismo diz também que as medidas de proteção só podem lançar, ou relançar, a produção industrial se o Estado participar da construção de novas indústrias. No entanto, vemos Donald Trump atacar o Estado, que deveria fomentar a pesquisa científica e o progresso científico. E o que é pior: se buscarmos identificar a motivação do combate ao Estado por parte de Elon Musk e outros, veremos que ela nem sequer é de ordem econômica.
Aqueles que tem alguma familiaridade com a história americana sabem qual foi o papel fundamental do Estado federal na emancipação dos negros. O ódio ao Estado federal é no mais das vezes derivado de um ressentimento contra os negros. Quando se combate o Estado federal, combatem-se as administrações centrais que emanciparam e protegeram os negros. Uma proporção elevada das classes médias negras deve seus empregos ao Estado federal. Os ataques contra o Estado federal não podem, portanto, integrar uma concepção geral razoável da reconstrução econômica e nacional.
Se penso nas ações múltiplas e contraditórias da administração de Donald Trump, a palavra que me vem ao espírito é a de “deslocamento”. Um deslocamento que ninguém pode saber aonde levará.
Família nuclear absoluta + estágio zero da religião = atomização
Sou bastante pessimista com relação aos Estados Unidos. Retornarei, para concluir este exercício de exploração, aos meus conceitos fundamentais de historiador e antropologia. Disse no início desta conferência que a razão fundamental pela qual pude crer muito cedo, ainda em 2002, num retorno da Rússia à estabilidade foi a consciência da existência de um pano de fundo antropológico comunitário na Rússia.
Ao contrário de muitos, não preciso de hipóteses sobre o retorno da religiosidade na Rússia para compreender a sua estabilidade. Eu vejo uma cultura familiar, comunitária, com seus valores de autoridade e de igualdade, que permitem também compreender o que significa a nação no espírito dos russos, a relação entre a forma da família e a ideia que se tem da nação, a correspondência entre a família comunitária e uma ideia forte, compacta, da nação e do povo. Como é o caso da Rússia.
No caso dos Estados Unidos, como no da Inglaterra, vemos uma figura inversa, um modelo de família nuclear, individualista, carente de regras precisas de sucessão, onde a liberdade de testamento é soberana. Este modelo de família resulta muito pouco estruturante para a nação. Sua vantagem é a maleabilidade. As gerações se sucedem separando-se. A rapidez da adaptação nos EUA e na Inglaterra, bem como a plasticidade das estruturas sociais (que permitiram a revolução industrial e a decolagem americana), têm origem fundamentalmente nessa estrutura familiar nuclear absoluta.
Mas ao lado, ou por baixo, desta estrutura familiar individualista, havia nos EUA e na Inglaterra a disciplina da religião protestante, com sua força socialmente coesiva. A religião, fator estruturante capital para o mundo anglo-americano, desapareceu. O estágio zero da religião, combinado a valores familiares pouco estruturantes, não me parece uma fórmula antropológica e histórica tendente à estabilidade.
É para uma atomização cada vez maior que se encaminha o mundo anglo-americano, atomização que não pode levar senão a uma acentuação, sem limite visível, da decadência americana. Espero estar enganado, espero ter esquecido algum fator positivo importante.
Infelizmente não consigo encontrar, agora, senão um fator negativo suplementar, que descobri lendo um livro de Amy Chua, professora de Yale e um dos mentores de J. D. Vance. No livro, intitulado Political Tribes. Group Instinct and the Fate of Nations (2018), a autora destaca o caráter excepcional da nação americana: uma nação “cívica”, fundada sobre a adesão de todos os grupos imigrantes sucessivos a valores políticos situados acima e além da etnicidade. Sem dúvida. Também sabemos que esta foi desde sempre a teoria oficial. Mas sempre houve um grupo protestante branco dominante, oriundo de uma história bastante longa e, no fundo, perfeitamente “étnico”.
Esta nação americana tornou-se, desde a pulverização do grupo protestante, realmente pôs-étnica, uma nação puramente “cívica”, em teoria unida por seu apego à Constituição e aos seus valores. O medo de Amy Chua é o de uma reversão dos EUA ao que ela chama de “tribalismo”. Uma pulverização regressiva.
Cada uma das nações europeias é, no fundo, qualquer que seja sua estrutura familiar, sua tradição religiosa, sua visão dela própria, uma nação étnica, no sentido de um grupo vinculado a uma terra, com sua língua e sua cultura, de um povo arraigado na história.
Cada uma delas tem um pano de fundo estável. Os russos o têm, os alemães o têm, os franceses o têm, mesmo que hoje façam muita confusão sobre estes conceitos. Os EUA não o têm mais. Uma nação “cívica”? Para além do conceito, a realidade de uma nação americana “cívica”, mas destituída de moral, em tempos de estágio zero da religião, não parece pressagiar nada de bom. Chega mesmo a dar-me calafrios.
Meu medo pessoal é o de que não nos encontremos, absolutamente, próximos do fim, mas apenas no começo do colapso dos Estados Unidos, que nos revelará coisas que nem mesmo podemos imaginar. Mais que num Império americano, seja triunfante, enfraquecido ou destruído, a ameaça reside aí: em ir ao encontro de coisas que nem podemos imaginar.
Estou hoje em Moscou e, portanto, vou concluir falando sobre a situação futura da Rússia. Vou dizer duas coisas, uma agradável, a outra inquietante. A Rússia certamente vencerá esta guerra. Mas ela terá, no contexto da decomposição americana, enormes responsabilidades num mundo em busca de equilíbrio.
*Emmanuel Todd é historiador e antropólogo. Pesquisador do Instituto Nacional de Estudos Demográficos francês. Autor, entre outros livros, de Após o império: ensaio sobre a decomposição do sitema americano (Edições 70). [https://amzn.to/4jUbJfs]
Conferência proferida na Academia de Ciências da Rússia, em 25 de abril de 2025.
Tradução: José Eduardo Fernandes Giraudo.
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