A soberania alienada

Imagem: Eugênio Barboza
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por JAIR PINHEIRO & JOHN KENNEDY FERREIRA*

O Brasil nunca foi um país independente

Segundo o jornal Valor Econômico, na edição do dia 27 de outubro de 2021, para o general Braga Neto “privatizações de Eletrobras e Petrobras em nada afetam a soberania”. Para quem alienou os interesses e, por conseguinte, o destino do Brasil ao imperialismo estadunidense, a afirmação é uma necessidade, quase uma autodefesa. A rigor, Braga Neto não é o primeiro general dessa lavra de entreguistas a manifestar surpreendente e alienante visão de soberania; antes dele outros já manifestaram, (e, provavelmente, outros ainda o farão) a opinião de que soberania é meramente de integridade territorial. Por isso, podem abrir mão dos instrumentos de planejamento econômico, como é o caso de uma empresa de energia.

A ideia básica de comunidade de destino, como conteúdo precípuo da de nação, simplesmente desaparece. Entretanto, esse desaparecimento não é um acaso fortuito, pois uma comunidade de destino é tudo que o Brasil não foi desde 1822.

Nossa construção hipertardia, destinou à oligarquia e burguesia uma exclusividade política sobre o Estado e uma práxis autocrática que se revela numa vigia permanente aos de baixo e impede, portanto, a  incorporação ativa (não subordinada, mero digitador da urna eletrônica) das classes populares ao sistema político e a capacidade do Estado decidir soberanamente os destinos dessa nação, sem subserviência vexatória ao Império do norte porque, supostamente, sempre estivemos ao lado deles. como afirmou o então comandante da Marinha, almirante Ilques Barbosa Junior, que nossos destinos estão alinhados com os EUA, bradando que “que o Brasil enfrentou ‘três guerras mundiais’ ao lado dos EUA (Isto É 09/01/2019). Aliás, é famosa a máxima do ex-secretário de Estado, John Foster Dulles, de que “os EUA não têm amigos, têm interesses”. Entretanto, nossos generais pensam serem amiguinhos deles.

Essa visão subordinada, está vinculada aos interesses ideológicos e aos lastros econômicos subalternos predominantes dentro da elite econômica e da burguesia brasileira.

Essa visão alienante de soberania é funcional não apenas para afastar as classes populares – os farialimers têm acesso livre a Brasília – do debate sobre as grandes questões nacionais, mas também para travar uma guerra (ora aberta, ora velada) aos direitos trabalhistas e sociais[i]. A guerra é aberta nos massacres aos povos originários, ataques armados a quilombolas, aos pobres das periferias, aos movimentos de sem teto e sem terra, aos ribeirinhos, assassinatos nunca suficientemente apurados de líderes sociais etc.; é velada nos discursos supostamente modernizadores que sustentam uma produção legislativa de destruição dos direitos trabalhistas e sociais, preconizada pela famosa Uma Ponte para o Futuro[ii], programa político do golpista Michel Temer, revogando de fato o título VIII da Constituição de 1988.

Como nenhuma guerra é improvisada, pelos menos da parte do atacante, já que o atacado pode ser surpreendido, esta também foi meticulosamente planejada, ainda que seja heterogêneo o conjunto dos atores que concertaram a conspirata antinacional e antipopular consubstanciada no golpe jurídico-midiático-parlamentar-militar. Na primeira fase do golpe, entre 2016 e 2018, o parlamento e a mídia representaram a face pública dos golpistas. 2019 e 2020 o Partido Militar, bem acomodado no governo, representou essa face pública e as manifestações dos seus próceres indicam que estiveram o tempo todo por trás dos acontecimentos.

Fracassado o governo, como era previsível por qualquer análise que não se prenda às vulgaridades rasas do chamado mercado, o Partido Militar[iii] emite sinais de abandono da figura nefasta que escolhera para consecução do seu projeto, sem abrir mão do projeto[iv]. Ou seja, continuam apostando nas vulgaridades rasas do mercado, embora não tenham nenhum exemplo histórico bem-sucedido para nele se apoiarem.

A pátria amada está refém dessas forças reacionárias, a República é historicamente tutelada pelas forças militares, desde a 1889. O desafio das forças populares é retomar a iniciativa política e resgatar a ideia de pátria como comunidade de destino com poder decisório soberano sobre tal destino, o que, evidentemente, exige a mais ampla democracia, conceito que vai muito além de digitar um número na urna eletrônica, requer ampla participação no debate sobre as grandes questões nacionais e mecanismos de controle efetivo sobre os governantes.

No ano em que se comemora o bicentenário da independência é hora de popularizar o tema da independência nacional. Um povo tutelado e miserável, não obstante as riquezas naturais do território que ocupa, não é independente. Um povo que tem medo do guarda da esquina, porque ele tem licença para matar, não é independente.

Um povo que não pode celebrar livremente a sua diversidade, porque calar a diferença é concebido como unidade, não é independente. É tudo isso que deve ser proclamado no bicentenário da independência; independência de fato, não uma mera separação jurídico-política da metrópole.

*Jair Pinheiro é professor de ciência política na UNESP-Marília.

*John Kennedy Ferreira é professor do Departamento de Sociologia e Antropologia da UFMA.

 

Notas


[i] Jair Pinheiro. “O golpe e a guerra às classes trabalhadoras”. In: Lutas Sociais, São Paulo, vol. 23, n.º 42, p. 109-123, jan/jun. 2019.

[ii] Fundação Ulysses Guimarães, 29 de outubro de 2015. Disponível em: <file:///C:/Users/Usuario/AppData/Local/Temp/UMA-PONTE-PARA-O-FUTURO.pdf>

[iii] Marcelo Pimentel Jorge de Souza, “A palavra convence e o exemplo arrasta”. In: João Roberto Martins Filho (org.). Os Militares e a Crise Brasileira. São Paulo: Alameda, 2021.

[iv] Além do famoso twit do general Vilas Bôas, então comandante do Exército, de 07/04/18, de ameaça ao STF, cito alguns exemplos de engajamento do Partido Militar na construção da tragédia que se abate entre nós. O inusual lançamento de uma candidatura presidencial na AMAN: Bolsonaro é recepcionado por aspirantes da AMAN (NOV/2014) https://www.youtube.com/watch?v=MW8ME9S87SI

General Santos Cruz em campanha: “Bolsonaro representa democracia, representa a liberdade; o Haddad representa a ditadura, representa o fascismo, representa nazismo, representa racismo, divisão do país em cores, regiões etc., então é a hora da opção o gigante acordou…” https://twitter.com/JJaimeBr/status/1457102189877415937  e, em tom de advertência, como se tivesse fundamento o que dizia, General de divisão Ajax Porto Pinheiro fala sobre o que está por vir ao Brasil !!!; 14 de out. de 2018 https://www.youtube.com/watch?v=bAFhQT21vBo

Por fim, uma matéria jornalística que estranhamente não repercutiu no Brasil: Bolsonaro presidente, el proyecto secreto de la cúpula militar, disponível em: https://www.letrap.com.ar/nota/2018-10-5-20-42-0-bolsonaro-presidente-el-proyecto-secreto-de-la-cupula-militar

 

Outros artigos de

AUTORES

TEMAS

MAIS AUTORES

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
João Paulo Ayub Fonseca Chico Alencar Dênis de Moraes Leda Maria Paulani Tales Ab'Sáber Ricardo Musse Caio Bugiato Samuel Kilsztajn Carla Teixeira José Luís Fiori Flávio R. Kothe Fernão Pessoa Ramos José Micaelson Lacerda Morais Everaldo de Oliveira Andrade Renato Dagnino André Singer Marcelo Guimarães Lima José Machado Moita Neto Salem Nasser Thomas Piketty Marilena Chauí Kátia Gerab Baggio Paulo Nogueira Batista Jr João Carlos Salles Gilberto Maringoni Osvaldo Coggiola Liszt Vieira Alexandre Aragão de Albuquerque Bernardo Ricupero Eleonora Albano Airton Paschoa Leonardo Sacramento Remy José Fontana Alysson Leandro Mascaro João Sette Whitaker Ferreira João Feres Júnior Roberto Noritomi Ronald Rocha Henry Burnett Maria Rita Kehl Heraldo Campos Elias Jabbour Eugênio Trivinho Valerio Arcary Luiz Roberto Alves Dennis Oliveira João Carlos Loebens Jorge Luiz Souto Maior Luiz Werneck Vianna Denilson Cordeiro Andrew Korybko Antônio Sales Rios Neto Michael Roberts Lucas Fiaschetti Estevez José Costa Júnior Daniel Brazil Fábio Konder Comparato Leonardo Boff Alexandre de Lima Castro Tranjan Leonardo Avritzer Vinício Carrilho Martinez Fernando Nogueira da Costa Sandra Bitencourt Anselm Jappe Boaventura de Sousa Santos Tarso Genro Flávio Aguiar Chico Whitaker Gerson Almeida Plínio de Arruda Sampaio Jr. Rubens Pinto Lyra Atilio A. Boron José Raimundo Trindade Vanderlei Tenório Érico Andrade Rodrigo de Faria Antonino Infranca Luiz Eduardo Soares Paulo Martins Francisco Fernandes Ladeira Paulo Sérgio Pinheiro Jean Marc Von Der Weid Francisco de Oliveira Barros Júnior Luciano Nascimento Gabriel Cohn Paulo Capel Narvai Rafael R. Ioris Ricardo Abramovay Bento Prado Jr. Walnice Nogueira Galvão Julian Rodrigues Luiz Renato Martins Celso Frederico Vladimir Safatle Paulo Fernandes Silveira Marcus Ianoni Annateresa Fabris José Geraldo Couto Daniel Costa Matheus Silveira de Souza Celso Favaretto Jorge Branco Lorenzo Vitral Slavoj Žižek Claudio Katz Anderson Alves Esteves Ricardo Fabbrini José Dirceu Manuel Domingos Neto Manchetômetro Otaviano Helene Luiz Marques Ronaldo Tadeu de Souza Milton Pinheiro Bruno Machado João Lanari Bo Eliziário Andrade Gilberto Lopes Berenice Bento Marcelo Módolo Afrânio Catani Antonio Martins Marcos Aurélio da Silva Mariarosaria Fabris João Adolfo Hansen Eugênio Bucci Eleutério F. S. Prado Marcos Silva Bruno Fabricio Alcebino da Silva Michael Löwy Yuri Martins-Fontes Carlos Tautz Mário Maestri Marilia Pacheco Fiorillo Jean Pierre Chauvin Alexandre de Freitas Barbosa Roberto Bueno Eduardo Borges Luiz Bernardo Pericás Tadeu Valadares Juarez Guimarães Ricardo Antunes Henri Acselrad Priscila Figueiredo Lincoln Secco Benicio Viero Schmidt Sergio Amadeu da Silveira Luis Felipe Miguel Francisco Pereira de Farias Luís Fernando Vitagliano André Márcio Neves Soares Marjorie C. Marona Luiz Carlos Bresser-Pereira Daniel Afonso da Silva Ladislau Dowbor Valerio Arcary Ronald León Núñez Igor Felippe Santos Ari Marcelo Solon Armando Boito

NOVAS PUBLICAÇÕES

Pesquisa detalhada