A solidão e a escrita

Imagem: Joao Teles
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram
image_pdfimage_print

Por RENATO ORTIZ*

O volume das interações torna-se a tal ponto estridente que é necessário sobreviver ao ensurdecimento das informações

Levantei cedo, tomei o trem-bala e cheguei a Kyoto no final da manhã; felizmente Yoshino foi prudente, enviou-me por fax, em japonês, as instruções para eu chegar ao Nichibunken. O chofer de táxi não teve problemas em encontrá-lo, uma jovem estava à minha espera, foi gentil, ciceroneou-me pelo centro, almoçamos juntos, apresentou-me a biblioteca e emprestou seu cartão magnético para eu fazer algumas fotocópias, instruiu-me ainda como chegar ao hotel “Oaks” na parte central da cidade.

O International Research Center for Japanese Studies é imponente, uma construção enorme, exala riqueza, fica fora da cidade no alto de uma colina. Ambiente bucólico, mata e pássaros. O edifício contém uma grande biblioteca, salas de trabalho e conferência, escritórios para os pesquisadores, teatro, onde esporadicamente se encena peças nô e kabuki. Há ainda um complexo para o alojamento dos professores visitantes e os escritórios do pessoal administrativo.

Foi construído no estilo moderno, é equipado com computadores, bases de dados e material para projeção de vídeos, slides, filmes. O instituto atua como unidade de pesquisa, não há docência, possui um quadro fixo de pesquisadores e recebe visitantes, além de estudantes de doutorado. Pagam regiamente aos professores convidados; fui informado que a qualquer momento poderia apresentar minha candidatura por três a seis meses. O centro impressiona pelo tamanho e as facilidades oferecidas ao pesquisador, mas tenho dúvidas em relação a esse tipo de empreendimento. Isolar o trabalho intelectual no alto de uma colina seria recomendável, as boas ideias floresceriam melhor em um ambiente tão rarefeito?

O trabalho intelectual se realiza no texto, sem ele as ideias flutuam em sua abstração, a escrita as traduz em realidade palpável. Trata-se de um artesanato no qual as palavras lapidam o pensamento. Ele possui ainda uma dimensão feminina, encerra muito da dicotomia masculino/feminino, esquerda/direita, que Robert Hertz apreciava; nos remete aos afazeres domésticos, arrumar a casa é quase homólogo a arrumar a cabeça. Particularmente no que diz respeito a uma atividade específica: a costura.

Costurar requer habilidade, saber que a diferencia de atividades mais simples como limpar a casa. Somente através da prática acumulada pacientemente ao longo dos anos é que se pode chegar a compor o tecido final. Aptidão que expressa a individualidade e a experiência de cada um. Colocar a agulha na linha, combinar os panos, realizar o corte, são operações delicadas, exigem cuidado e concentração.

Nesse sentido, a expressão “costurar as ideias” é reveladora de uma prática que sabiamente as mulheres cultivaram através dos séculos. Diz-se que as ideias estão descosturadas da mesma maneira que uma roupa está mal acabada, as partes destoando do todo. Entretanto, há uma diferença entre as costureiras e os alfaiates. Esses são especialistas em roupas masculinas, trabalham como esses cientistas sociais que costuraram com um número limitados de palavras. Pessoas cujo ofício resume-se a ideias fixas.

Enquanto artesanato o trabalho intelectual encerra uma dimensão de individualidade, diriam os marxistas, seu resultado não se encontra alienado daquele que o realiza. O autor, na sua solitude, diante da página em branco, está condenado à incerteza, embora a especificidade de seu ato não coincida inteiramente com o isolamento do lugar no qual ele se encontra.

Creio que a indistinção entre o ato em si e o espaço no qual ele acontece alimenta a ilusão do recolhimento. Essa é a qualidade que atribui à figura do escritor certo exotismo. Como os monges em suas abadias ele se refugiaria da tentação da carne, exilado, sua inspiração e labor se encontrariam (um pouco como santo Antão, imortalizado nas telas de Salvador Dali e Max Ernst).

Porém, esse ascetismo hiperbólico, na verdade figurado, desconhece que a escrita é em si mesma uma forma de distanciamento do mundo, artifício que nos retira do lugar. Pouco importa onde a realizamos – no deserto, longe das perdições, ou em meio à multidão. A conjunção entre solidão e escrita é um traço imagético petrificado ao abrigo das intempéries, quero dizer, das mudanças; ele se constitui assim em continuidade que se faz perene.

Persiste, mesmo nos tempos atuais, quando as tecnologias de comunicação se tornam móveis e omnipresentes. Por isso, para contornar o dilema de todo escritor, a distração, um novo artefato foi inventado. A vida no universo dos bits assenta-se em um princípio fundamental: a conexão; ela é o recurso técnico que propicia a interação entre as pessoas. Estar conectado é existir. Há, no entanto, um problema: o volume das interações torna-se a tal ponto estridente que é necessário sobreviver ao ensurdecimento das informações.

A máquina Hemingwriter é o avesso de tudo isso, sua intenção é nos distanciar do ruído ambiente. Foi desenhada exclusivamente para os escritores. Seu formato, inspirado na velha máquina de escrever, imita a mesma disposição das teclas, mas com um visor no qual aparecem as palavras datilografadas/digitalizadas. As funções cortar e colar estão disponíveis facilitando o manuseio do texto. Possui wi-fi e bluetooh, com isso o que se escreve é automaticamente gravado e enviado para a nuvem, podendo posteriormente ser retrabalhado no computador ou em outro aparelho digital.

Entretanto, o autor encontra-se desligado dos distúrbios a sua volta, o acesso à internet é bloqueado. Sua atenção se dirige ao texto, unicamente a ele, e a tentação da distração é inteiramente anulada. A resposta tecnológica apresentada conforta e estimula, traz com ela a promessa que o mundo das ideias, como imaginava Platão, estaria ao alcance dos dedos, baixaria dos céus, via download, nas páginas a sua espreita. A solidão da escrita seria assim a garantia da platitude de sua própria verdade.

*Renato Ortiz é professor titular do Departamento de Sociologia da Unicamp. Autor, entre outros livros, de O universo do luxo (Alameda).

Publicado originalmente no blog da BVPS.


Veja todos artigos de

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

A redução sociológica
Por BRUNO GALVÃO: Comentário sobre o livro de Alberto Guerreiro Ramos
O prêmio Machado de Assis 2025
Por DANIEL AFONSO DA SILVA: Diplomata, professor, historiador, intérprete e construtor do Brasil, polímata, homem de Letras, escritor. Como não se sabe quem vem à frente. Rubens, Ricupero ou Rubens Ricupero
Distopia como instrumento de contenção
Por GUSTAVO GABRIEL GARCIA: A indústria cultural utiliza narrativas distópicas para promover o medo e a paralisia crítica, sugerindo que é melhor manter o status quo do que arriscar mudanças. Assim, apesar da opressão global, ainda não emergiu um movimento de contestação ao modelo de gestão da vida baseado do capital
Aura e estética da guerra em Walter Benjamin
Por FERNÃO PESSOA RAMOS: A "estética da guerra" em Benjamin não é apenas um diagnóstico sombrio do fascismo, mas um espelho inquietante de nossa própria era, onde a reprodutibilidade técnica da violência se normaliza em fluxos digitais. Se a aura outrora emanava a distância do sagrado, hoje ela se esvai na instantaneidade do espetáculo bélico, onde a contemplação da destruição se confunde com o consumo
Tecnofeudalismo
Por EMILIO CAFASSI: Considerações sobre o livro recém-traduzido de Yanis Varoufakis
As origens da língua portuguesa
Por HENRIQUE SANTOS BRAGA & MARCELO MÓDOLO: Em tempos de fronteiras tão rígidas e identidades tão disputadas, lembrar que o português nasceu no vaivém entre margens – geográficas, históricas e linguísticas – é, no mínimo, um belo exercício de humildade intelectual
Na próxima vez em que encontrar um poeta
Por URARIANO MOTA: Na próxima vez em que encontrar um poeta, lembre-se: ele não é um monumento, mas um incêndio. Suas chamas não iluminam salões — consomem-se no ar, deixando apenas o cheiro de enxofre e mel. E quando ele se for, você sentirá falta até de suas cinzas
Conferência sobre James Joyce
Por JORGE LUIS BORGES: A genialidade irlandesa na cultura ocidental não deriva de pureza racial celta, mas de uma condição paradoxal: lidar esplendidamente com uma tradição à qual não devem fidelidade especial. Joyce encarna essa revolução literária ao transformar um dia comum de Leopold Bloom numa odisseia infinita
Economia da felicidade versus economia do bom viver
Por FERNANDO NOGUEIRA DA COSTA: Diante do fetichismo das métricas globais, o “buen vivir” propõe um pluriverso de saberes. Se a felicidade ocidental cabe em planilhas, a vida em plenitude exige ruptura epistêmica — e a natureza como sujeito, não como recurso
Não existe alternativa?
Por PEDRO PAULO ZAHLUTH BASTOS: Austeridade, política e ideologia do novo arcabouço fiscal
Mulheres matemáticas no Brasil
Por CHRISTINA BRECH & MANUELA DA SILVA SOUZA: Revisitar as lutas, contribuições e avanços promovidos por mulheres na Matemática no Brasil ao longo dos últimos 10 anos nos dá uma compreensão do quão longa e desafiadora é a nossa jornada na direção de uma comunidade matemática verdadeiramente justa
Veja todos artigos de

PESQUISAR

Pesquisar

TEMAS

NOVAS PUBLICAÇÕES