A temporalidade na cultura contemporânea

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Por João Adolfo Hansen*

Conferência sobre as metamorfoses da cultura na atualidade

Começo chamando a sua atenção para a própria posição em que falo, uma posição necessariamente aquém do que acontece. Eu acredito que falo, nesse sentido, pelo meio e acho que também dentro de uma situação que na maior parte permanece por mim, pelo menos, ignorada. Tenho nitidamente a sensação, ao falar de um assunto como esse, de falar entre aquilo que ignoro totalmente e aquilo que conheço muito mal.

Acredito que esta, aliás, é uma das principais determinações de qualquer fala sobre a cultura hoje. Certas noções que até ontem pareciam muito evidentes e que eram noções produzidas a partir da segunda metade do século XVIII, noções iluministas como a de crítica, negatividade, transformação, superação, totalização, totalidade, finalidade e sentido da história, perderam a força e a fala que fala sobre elas tem que necessariamente reconhecer sua parcialidade quando fala delas. Nesse sentido, a fala sobre elas tem que reconhecer também que perdeu toda pretensão de prescrição.

Se vocês pensam, por exemplo, que até ontem, enquanto essas categorias aparentemente eram óbvias, o fato de haver supostamente uma causa e um sentido final para a história também determinava a ideia de uma prescrição do que deveria ser a ação em termos de uma ação adequada a esse sentido. Na medida em que hoje uma categoria como totalidade ou totalização desaparece da discussão da cultura, e também desaparece a ideia de um sentido final para a história, toda ideia de uma fala prescritiva quer dizer, de um “dever ser” também desaparece.

Assim, tenho a impressão de que a gente deveria lembrar uma noção exposta há muito tempo por um autor que hoje bastante esquecido devido a essas mudanças na cultura. Karl Marx no início dos Grundrisse – o livro que reúne os rascunhos de O capital – afirma que, no desenvolvimento histórico, geralmente a última fase é muito unilateral em relação às anteriores porque ela supõe que as anteriores foram etapas para ela mesma e que, nesse sentido, ela geralmente tem uma incapacidade de criticar a sua pretensão de universalidade e de se criticar a si mesma. Nesse sentido, diz Marx, o presente é unilateral. E ele é unilateral porque produz unilateralidades, ou seja, ele se apropria do passado de modo unilateral e ele é de algum modo cego em relação a si mesmo porque não tem uma evidência evidente dos processos que ocorrem nele enquanto presente.

Nesse sentido, gostaria de lembrar a vocês uma hipótese feita pelo historiador alemão, Rienhart Koselleck, que, discutindo o processo histórico, propõe que a gente pense a história segundo a categoria “tempo”. Ele propõe o tempo não necessariamente de modo kantiano, como uma categoria prévia de todo pensamento, mas como uma categoria social. Ele propõe que a categoria de tempo permitiria observar determinados períodos históricos, observando por meio dela duas coisas fundamentais: o modo como é recortada uma experiência do passado, em termos de experiência, e ao mesmo tempo o modo como se recorta uma expectativa de futuro.

Koselleck trabalha fundamentalmente, nessa noção, com as histórias de Antigo Regime, com as histórias hoje chamadas barrocas, com as histórias dos séculos XVI, XVII e XVIII, e ele mostra, por exemplo, como essas histórias reciclam uma noção que a gente encontra nas letras latinas, principalmente no Cícero, que é a velha ideia de que a história é mestra da vida. Koselleck propõe: o que permite, por exemplo, que um homem do século XVII pense que a experiência histórica, aquilo que já houve, possa ser, enquanto experiência do passado, modelo para o presente e ao mesmo tempo modelo para a mestra da vida regulação de uma expectativa do que vai acontecer no futuro?

Ele evidencia uma coisa que deve ser evidente para quem trabalha com esse assunto ligado aos séculos XVII e XVIII: que nessas sociedades ditas barrocas o fato justamente de elas suporem que há um fundamento primeiro, único e último da história que é Deus fazia com que elas pensassem que a presença divina, que já aparece no passado, aparece também no presente e no futuro. E, nesse sentido, a hipótese de que os bons e grandes exemplos vividos por homens ilustres, profetas, heróis etc. antigos, que evidenciam a presença de Deus no tempo, na medida que Deus “é” sempre, eles também são repetidos no presente e no futuro. Nesse sentido, na hipótese que o Koselleck mostra, para uma formação histórica como a formação de Antigo Regime, havia uma espécie de nexo quase imediato entre a experiência do passado e a expectativa de futuro devido justamente a essa hipótese teológica de que o tempo tem um sentido religioso e de que Deus se repete nele sempre.

É isso que permitiria, por exemplo, no nosso caso específico, brasileiro, português, a gente entender a experiência de um padre Antônio Vieira, no século XVII, que escreveu um livro chamado História do futuro. A gente, desde a Revolução Francesa, sabe que uma hipótese de escrever uma história do futuro é uma hipótese cabalística, para nós, ou supersticiosa ou, por definição, improvável porque a gente tem uma experiência, desde a Revolução Francesa, de que a história não se repete. Ou, se ela se repete, é como farsa da tragédia que ela foi a primeira vez.

Agora, o Koselleck faz justamente essa hipótese, que é muito interessante pensar: essa ideia de que a cultura enquanto produção social, enquanto representação social, enquanto expectativa social e enquanto consumo social do passado e produção de valores no presente articulada a uma expectativa de futuro também deveria ser historicizada pelo modo como a gente pode pensar a categoria do tempo e que, numa sociedade de Antigo Regime, pré-iluminista, pré-Revolução Francesa, que acredita no Cícero a história é mestra da vida, a história se repete sim. A história se repete e o lapso que há entre o passado e o futuro é praticamente zero. Ou seja, o fator de imprevisibilidade do futuro tende a zero. Por exemplo, para um homem do século XVII provavelmente era bastante evidente a ideia de que, se aconteceu assim, vai voltar a acontecer assim no futuro.

Agora, vocês estão lembrados, por exemplo, de uma hipótese crítica dessa hipótese feita pelo Kant na Antropologia, que é um livro que ele escreve logo depois da Revolução Francesa, em que ele diz que até então toda a experiência histórica ele está se referindo às sociedades que chama de despóticas, de Antigo Regime tinha sido subordinada ao modelo teológico do sentido do tempo. E ele diz: toda a sociedade estava subordinada ao tempo, na medida que teologicamente o tempo é uma emanação de Deus e, portanto, a história humana faz parte de um projeto divino incluído no tempo.

O Kant vai afirmar, no fim do XVIII, vocês sabem disso, que, a partir daquele momento em que ele escreve, a história não necessitava mais de Deus, Deus está morto, e que, nesse sentido, não há fundamento absoluto para ela e que a história agora passa a ser apenas um processo quantitativo que subordina o tempo a si mesmo e que estabelece, por definição, um lapso de indeterminação entre a experiência do passado e a experiência do futuro. Na hipótese kantiana, já no fim do século XVIII, a ideia iluminista, a ideia de que o futuro é imponderável, a ideia de que nós não sabemos absolutamente o que é o futuro, mas que o futuro depende de um cálculo humano que quantifica as diversas variáveis tentando justamente orientar o tempo no sentido dele, futuro, donde vem o sentido do tempo.

Provavelmente a gente aprende com a Revolução Francesa e com os filósofos iluministas, e depois com o marxismo, no século XIX e ainda no XX, essa ideia de que o tempo tem um sentido. Agora, esse sentido não é mais divino nem teológico, ele é apenas humano e resulta de uma produção de eventos meramente humanos. A discussão é saber se esses eventos são produzidos por tipos individualizados ou por massas proletárias ou por fatores anônimos como a economia ou a política, de maneira indeterminada.

Mas sempre há esse dado nuclear comum que é a ideia de que o tempo avança numa linha reta, o passado não se repete porque ele foi negado pelas práticas do presente, o presente ainda é um estágio onde nós estamos, mas ele é um estágio de contradição e ele ainda não realizou a plenitude do tempo, a plenitude da razão que vai se encarnar nele pra valer, e que então a ideia de que o tempo no presente é, por definição, vocês sabem, o espaço de uma negatividade. Quer dizer, a cultura tem uma função não só de representar o social etc., mas a cultura também tem uma função com a ideia de crítica, ou seja, a ideia de fazer das contradições do presente o material de uma negação que postula uma transformação que vai superar o presente, fazendo o futuro vir rapidamente.

Essa é, por exemplo, a hipótese utópica do início do século XX a hipótese dos surrealistas em 1924, a hipótese dadá ou a hipótese cubista, provavelmente a ideia de que as formas de representação burguesas ou acadêmicas ou oficiais que nós encontramos na cultura são passadistas, ligadas excessivamente a um passado entendido como um passado conservador ou reacionário ou próprio de uma vida administrada. E essa ideia, então, de que a arte ou a cultura tem uma função de, pela racionalização negativa da forma, pela recusa da familiaridade da forma com o mundo administrado, propor uma atividade crítica, que provavelmente atinge o espectador o conscientizando politicamente de uma necessidade de superação daquele estado presente em função do futuro.

Vocês se lembram, por exemplo, que o poeta Maiakovsky vai dizer, quando ele é encarregado pelo Lênin de fazer aquele programa gráfico e ao mesmo tempo poético de arte revolucionária na União Soviética no início dos anos 1920, que o verdadeiro tempo da revolução é o futuro ou seja, tudo vem do futuro, o futuro é o tempo donde vem o tempo. Ou seja, é como se houvesse uma memória do futuro, quer dizer, a gente vive o presente, já que a gente é iluminista, em função de uma crítica do presente, de uma negação contínua do presente, em função de algo que deve ser um futuro que ainda não veio por isso provavelmente ele é “u-tópico”; na verdade, ele é “a-tópico”, ele não tem lugar; mas ele é “u-tópico”, ou seja, ele está fora do topos, ele está fora do lugar.

Provavelmente, a ideia tradicional, então, se vocês pensarem, por exemplo, a constituição de um tipo no fim do século XVIII que é “o artista”, outro tipo que se constitui que é “o crítico’, outro tipo que se constitui que é “o intelectual”, são todos tipos, segundo o iluminismo, dotados de uma função de produzir a cultura, num sentido amplo, ou, no caso mais específico da cultura, de produzir as artes no sentido de uma crítica contínua que postula sempre uma superação do estado presente porque o presente, por definição, é um estado insatisfatório.

Vocês se lembram daquela hipótese, por exemplo, “o sonho da razão engendra monstros”. Vocês se lembram da pintura do Goya, aquela ideia de que o presente é o estado do mito, o presente é o tempo da ignorância, da superstição, e que a crítica iluminista, por ser racional, vai produzir uma abolição radical do mito fazendo com que os valores da res publica, como dizia o Kant, quer dizer, da “coisa pública”, da verdadeira democracia contra o despotismo, se estabeleçam. Agora, o Gilles Deleuze dizia uma piada muito engraçada. Ele dizia assim: sim, o Goya estava certo, o sonho da razão produz monstros, mas a insônia também.

Dizendo assim que, quando a razão fica louca – e ela fica – ela pode ser uma razão industrial que calcula, por exemplo, quantos judeus a gente vai queimar por segundo num forno. E ele chama a atenção, por exemplo, para um campo de concentração, que é racionalmente construído como razão instrumental, razão iluminista levada às últimas consequências do industrialismo, queimando pessoas. E que é uma razão absolutamente frenética, uma razão levada à insônia máxima, não é uma razão que está dormindo, mas é uma razão acordadíssima.

Nesse sentido, justamente, vocês concordem comigo, nos anos 1960 principalmente, nós encontramos várias atividades na cultura, sobretudo vindas da França, mas também na Alemanha, na Inglaterra, na Itália e depois nos Estados Unidos, um movimento na cultura que inicialmente começou em disciplinas que começaram a criticar o positivismo de historiadores e o positivismo de modo geral dos cientistas sociais e são disciplinas vindas da linguística, da psicanálise, da etnologia, da antropologia que começaram a chamar a atenção desses cientistas sociais e dos historiadores para a particularidade das práticas e começaram a criticar principalmente a ideia de que haja um sentido dado ou de que haja uma unidade dada na ideia de sujeito ou de consciência ou de ideologia ou de representação etc..

Isso constitui aquilo que um filósofo alemão que dá aula em Stanford hoje, que é o Hans Ulrich Gumbrecht, chama de campo não-hermenêutico, no caso da cultura, e que está ligado justamente a uma crítica do iluminismo. Quer dizer, a ideia de que esse modo de organizar o tempo como sucessão, evolução, transformação, superação dialética e como contradição supõe que haja um sujeito unitário, pleno, que é sujeito de conhecimento na relação com um objeto qualquer por conhecer. Supõe, ao mesmo tempo, que é a consciência o lugar onde as operações de conhecimento acontecem. Supõe, ao mesmo tempo, que há uma relação quase de equivalência entre o sujeito que conhece o objeto por conhecer. E supõe, ao mesmo tempo, que o tempo é um contínuo e que ele tem uma unidade.

O que é uma ideia hegeliana, vocês se lembram: essa ideia, no caso das artes, de classificar períodos históricos, com uma única unidade então, “o barroco”, “o clássico”, “o árcade”, “o romântico”. Vocês sabem disso, é óbvio: vários historiadores começaram a mostrar, desde os anos 1920 do nosso século, que dentro de um recorte temporal limitado a gente observa várias temporalidades, que é impossível unificar o tempo debaixo de uma etiqueta única porque a gente observa, por exemplo, que há uma temporalidade da linguagem, há um tempo próprio dos processos econômicos, há uma temporalidade específica das práticas sexuais ou das relações de parentesco, há uma temporalidade própria da política e que há vários tempos num mesmo tempo que impedem a gente de supor essa ideia de uma unidade evolutiva.

Vocês se lembram, por exemplo, dos estudos do Braudel sobre o Mediterrâneo, sobre o Felipe II, como ele mostra que há um longuíssimo tempo, que dura milhares de anos, que é o próprio tempo da rotação das culturas ou da Terra. Depois como há um tempo mais curto que se coloca sobre esse, que é um tempo político uma monarquia, que dura duzentos anos. E depois um tempo quase conjuntural, um tempo rápido, dos eventos, das pequenas guerras. E depois um tempo micro, que seria o tempo dos processos quase individuais. Essa ideia de historiadores é muito interessante pensar.

Ela começou a introduzir, desde os anos 1920, na historiografia francesa, por exemplo Febvre, Bloch, essa ideia de que a gente deveria abandonar esse modelão historiográfico vindo do século XIX, que é o modelo hegeliano, de um evolução contínua, de uma história que tem um sentido já dado e de uma única linha no tempo, mostrando, por exemplo, que essa história é etnocêntrica, ocidental, basicamente alemã, inglesa e francesa e que ela exclui outras historicidades. Ela coloca o Oriente para fora, ela coloca as ditas “sociedades primitivas” para fora etc.. Essa crítica que começou a colocar justamente essa idéia de um tempo descontínuo, que até então era uma coisa que assustava os historiadores, deve ser considerada já um abalo na ideia de que o tempo é um contínuo evolutivo de transformações e que o tempo tem um sentido já dado como uma origem e como um fim.

A gente vai encontrar, por outra parte, por exemplo, em toda a atividade da psicanálise e do desenvolvimento da psicologia no século XX, uma crítica à ideia burguesa de um indivíduo definido como unidade e identidade psicológica sempre irrepetível. A psicanálise freudiana ou lacaniana mostra, por “a” mais “b”, que o sujeito é um acidente numa cadeia significante onde ele ocupa uma posição imaginária permitida a ele pela cultura e que ele pode ser a cada momento vários e sempre outro e que o sujeito não tem nenhuma unidade substancial.

Ao mesmo tempo a gente encontra, na filosofia, nos anos 1950 e 1960, uma recuperação muito forte das hipóteses do Nietzsche e depois do Heidegger sobre o não-sentido fundamental da história, essa ideia de uma anarché. Quer dizer, na hipótese tradicional, iluminista, a história tem uma arché existe uma origem básica e, portanto, existe um fim. Agora a gente vai observar, nos anos 60, essa ideia de uma anarché, de uma não-origem, e que vai produzir, por sua vez, a ideia de um não-sentido dado e a crítica da ideia de evolução, da ideia de progresso, da ideia de identidade, da ideia de unidade, ou seja, como eles diziam, é um “antiplatonismo” generalizado feito como crítica radical à essa ideia de que a consciência é núcleo fundante do processo de conhecimento, porque agora se diz: não, a consciência é o efeito de uma estrutura linguística ou de uma estrutura familiar ou de uma estrutura política ou de uma estrutura econômica ou de uma estrutura “x”.

Aí acaba a ideia, por exemplo, de que a consciência seja o núcleo. Ao mesmo tempo se diz: é falsa a ideia de que haja um sentido já dado no objeto, de que apenas o sujeito reconhece o sentido dado. Na hipótese nietzscheana, por exemplo, o conhecimento não é re-conhecimento, mas é força, o conhecimento é uma violência que se exerce sobre um objeto qualquer que é totalmente estranho a nós. A hipótese, então, de que a própria ideia de verdade, que a gente aprendeu com os gregos que é algo substancial, é um produto histórico e que é uma radical, vamos dizer, historicização de tudo.

Isso levou, vocês sabem muito bem, a uma crítica que vem sendo feita até hoje nas discussões ditas pós-modernas nos anos 1980 que é uma crítica do método tradicional de interpretação da cultura constituído no século XIX, principalmente na Introdução às Ciências do Espírito, do Dilthey. Vocês se lembram, por exemplo, que no fim do século XIX o Dilthey, o filósofo alemão, faz uma hipótese: qual é a relação que nós estabelecemos com uma obra de arte? Na hipótese do Dilthey existe um sujeito criador, que é pensado à moda clássica, como um sujeito unitário, um indivíduo dotado de sentido crítico profundo e psicologicamente original. Esse indivíduo então formaliza, numa obra, a sua experiência individual. Mas que, por ser genial, consegue formalizar na individualização da obra uma experiência que é social e que por isso transcende a mera individualidade e pode ter interesse para outros.

Nós, como leitores ou como espectadores, diz o Dilthey, estabelecemos, enquanto sujeitos que também somos como o autor, uma relação de diálogo com a obra. Ao estabelecermos essa relação, nós vamos buscar aquilo que a superfície da obra oculta e nós vamos perguntar para a obra o que ela quer dizer, se ela tem uma intenção secreta, uma intenção profunda. Então nós vamos interpretar a obra. Ou seja, a obra está dobrada a palavra latina: interpretare, ou seja, ficar no meio da dobra e desdobrar para fora.

O que é interpretar? É buscar na obra aquele sentido oculto na sua profundeza e que corresponde a um sentido oculto na natureza humana e que aquele homem, artista individual, por ser um cara genial o modelo é romântico, ele expressa, ele representa, ou seja, apresenta de novo, ele re-apresenta, ele re-vela, ou seja, quando mostra, ele ao mesmo tempo oculta re-velar. A atividade do crítico, então, é estabelecer uma relação de comentário com o objeto, mostrando para o público no caso, a gente, que não foi capaz de ver aquele sentido profundo, o verdadeiro sentido profundo da obra. Porque, quando se descobre esse verdadeiro sentido profundo, imediatamente a obra se revela como crítica do presente e possibilidade de superação crítica, propondo o advento do futuro.

Agora, esse modelo de interpretação foi pelos ares justamente com a constituição, nos anos 1960, desse chamado “campo não-hermenêutico” porque é a ideia de que é sexo explícito não há nada para ser interpretado porque não há profundo. E a ideia de que a gente deveria trabalhar com relações e não propriamente com essa hipótese de buscar na profundidade suposta do objeto uma interpretação que a gente traria para fora. Isso produz, imediatamente, a hipótese de que não há um sentido dado no processo histórico ao qual a interpretação está relacionada tradicionalmente.

Na medida que não há esse sentido dado, também não há motivo para fazer interpretação porque a gente não tem que procurar o verdadeiro sentido para engatar teleologicamente, finalisticamente, na crítica da história e no avanço, no progresso histórico. A hipótese agora é a de que o sentido é contingente, o sentido é apenas um efeito que se produz aqui e agora como mera relação entre o sujeito que age — e esse sujeito sabe que ele é apenas uma parcialidade, ele não é nada unitário, profundo, ele é apenas uma função sintática — e o objeto.

Isso produz, no campo da crítica de arte e de literatura, um grande deslocamento que vem sendo cada vez maior dos anos 1980 para cá. Provavelmente porque a própria história, enquanto disciplina, os historiadores principalmente, levando em conta essa modificação do campo do conhecimento, eles começaram a chamar a atenção para o fato de que, em vez de estabelecer uma relação com o objeto que deveria ser interpretado, seria preciso começar a discutir as condições de possibilidade do aparecimento daquele objeto.

Então, por exemplo, no caso da literatura, nós percebemos um movimento assim: nos anos 1960, 1970, houve uma espécie de grande concentração na análise “imanente” do discurso ou numa análise que buscava sentidos de um discurso. Subitamente isso ficou esquecido e os estudos se bandearam para uma coisa hoje chamada “estudos culturais”, em que os historiadores da literatura, em vez de discutirem o romance de Machado de Assis, estão discutindo as condições materiais do fim do Império, do desenvolvimento da imprensa ou das técnicas produtivas do livro ou as condições materiais da circulação da leitura ou a oralidade ou o analfabetismo no Brasil para discutir o texto de Machado de Assis no contexto dessas práticas.

Ou então se deslocou para uma história da recepção, quer dizer, vamos ver não propriamente qual o sentido dessa obra. Porque na hipótese do Dilthey a gente estabelece uma relação com a cultura independentemente da materialidade dela, a gente vai buscar na cultura um significado que é transcendental, que é o significado da comunicação de dois sujeitos plenos independentemente de qualquer elemento material. Que é a ideia tradicional: o que quer dizer esse texto? A ideia de que um texto tem um significado universal sempre.

Agora, todo o movimento dos anos 1960 para cá, levando em conta a crítica desse modelo interpretativo, por exemplo, os alemães ligados à teoria da recepção. Aquela hipótese, por exemplo, que o Jauss fez que o Joaci aqui conhece, ele trabalhou uma coisa parecida nas Cartas Chilenas… O Jauss diz, vocês se lembram: o Goethe escreveu, no fim do século XVIII, uma peça que é a Ifigênia em Táuride. A Ifigênia, se a gente a lê interpretativamente, nós vamos dizer: o que quer dizer a peça Ifigênia? Na hipótese do Jauss, vocês se lembram, o sentido cultural da Ifigênia seria a somatória das leituras que foram sendo feitas desse texto desde que o Goethe o publicou no fim do século XVIII. Então a ideia agora é a de que é fundamental levar em conta as condições práticas de apropriação do objeto, que o objeto não tem um sentido produzido.

Não sei se vocês concordam, mas nas discussões que há hoje no campo da cultura nós percebemos que mudou alguma coisa no modo como se orienta a experiência do tempo. Quer dizer, nós evidentemente não somos agentes do Antigo Regime, nós não acreditamos em Deus, por definição nós somos ateus. Acho que mesmo quando a gente é religioso, a gente é ateu prático.

Ao mesmo tempo, o capital revoluciona o mundo de novo hoje com essa revolução tecnológica, por exemplo, da informática. É uma coisa que a gente não sabe o que é, mas é absolutamente espantoso. Outro dia fiquei muito deprimido porque li uma notícia de um assaltante de banco no Canadá que roubou um carro também e fugiu. E ele foi localizado por satélite, um satélite leu a placa dele numa floresta no norte do Canadá e ele foi preso. É muito assustador porque o Lampião, que era um cara vivido, dizia: “Deus é grande, mas o mato é maior”. Hoje, não, Deus é muito grande.

Eu penso na ideia do Deleuze, de que a nossa sociedade hoje não é mais uma sociedade disciplinar, mas de controle. Deleuze propõe que o modelito da sociedade hoje é o cartão de crédito. E ele lembrava, por exemplo, como o cartão de crédito produz dinheiro virtual e também como ele produz tempo virtual. E, como produz tempo virtual para cada um de nós, ele nos obriga, no presente, a que a gente se comprometa com todos os engates conservadores em que estamos metidos. A gente continua casado com a mesma mulher, com o mesmo homem, tem o mesmo amante, o mesmo namorado, a gente continua tendo o mesmo patrão, continua fazendo as mesmas coisas com a ideia da responsabilidade. Quer dizer, eu tenho que pagar isso daqui no mês que vem.

Então o Deleuze demonstra como talvez o cartão de crédito mostra justamente um novo modo de organização do tempo que pressupõe uma outra coisa. E isso é que é terrível, segundo os críticos do pós-moderno: a ideia de que o presente não passa, de que o presente é eterno. Na hipótese iluminista, o futuro é o tempo donde vem o verdadeiro sentido da história e, portanto, o presente é só uma passagem, o presente deve ser declarado rapidamente passado.

Quer dizer, quanto mais a gente matar o presente, mais rápido o futuro vem. Que é a ideia da revolução. A revolução é isso. Agora, no nosso tempo, desde os anos 1980, sumiram radicalmente das discussões termos como revolução, luta de classes não sei se vocês concordam e, hoje, uma pessoa que ouse falar de revolução ou de luta de classes imediatamente será classificada como desadaptada ou neurótica ou romântica ou pouco realista. O nosso presidente propôs: “esqueçam o que eu escrevi”, em nome de um realismo político que a gente sabe que não é só um realismo, mas que é um cinismo radical.

Agora, os críticos justamente criticam a hipótese de que o nosso presente parece que virou um presente de um valor de troca e de fetichismo radical da mercadoria, onde a gente tem apenas um processo contínuo de troca, um troca-troca absolutamente generalizado, e que, como a gente não tem ideia de futuro parece que o presente se repete, todos os passados são empilhados como se eles estivessem à nossa disposição.

Então, por exemplo, alguns urbanistas têm chamado a atenção para o espaço contemporâneo das metrópoles, para como se vive hoje uma espécie de simultaneidade estilística, principalmente na arquitetura, de citação de estilemas de estilos históricos. Então a gente está num espaço que é neobarroco, babilônico, romano, grego, renascentista, neoclássico, romântico, Bauhaus, funcional, Le Corbusier e pau-a-pique. Agora, isso é meramente um modismo? Alguns dizem que não, não é um modismo, que isso está correspondendo a uma estrutura mais funda, mais radical do próprio modo de organização da percepção nas mudanças econômicas, políticas e culturais do presente, que estão fazendo com que o tempo seja vivido de um outro modo.

Por exemplo, o Gumbrecht chama a atenção para o fato de que quem está em Nova York fazer uma ligação para Paris e o Oceano Atlântico não ser um obstáculo espacial. Há uma simultaneidade radical, é como se eu estivesse falando com o meu amigo no quarto ao lado ou aqui, com vocês. O que significa isso? Aquilo que alguns estudiosos chamam de “glocal”, quer dizer, é um global que está no local, uma simultaneidade do espaço de todas as versões, a possibilidade de a gente ter acesso simultâneo a todas as versões.

A gente tem nisso duas posturas básicas, não sei se vocês concordam. Existe uma possibilidade, na medida que hoje a cultura acumula, empilha, tem um padrão de arquivo, vai juntando e citando aparentemente de modo desierarquizado. Quando eu era moço, havia uma discussão básica para a gente que era a distinção entre kitsch e cultura alta. Então a gente dizia: “ah, isso é kitsch”; “isso é a grande poesia”; “ah, essa música é boa, essa outra é kitsch”. E a ideia de uma cultura erudita oposta à indústria cultural. E a ideia ainda de uma cultura popular oposta a uma cultura não-popular.

E a ideia ainda de uma validade de termos como “direita” e “esquerda” na determinação de posições políticas. Agora, a gente sabe que, desde os anos 80, esses termos desapareceram. E principalmente nos midia a gente percebe uma absoluta e radical indeterminação do valor estético, por exemplo. A gente tem, numa mesma página tipo Folha de S. Paulo, mas também seria o New York Times ou Le Figaro, em qualquer parte do mundo, ao mesmo tempo, uma notícia sobre o Caetano Veloso falando do amor dele pelo Fernando Henrique e, do outro lado, um trecho de Mozart, o Macaco Simão falando mal do Mário Covas, um anúncio do Brad Pitt e depois uma pequena notícia de culinária. Há trinta anos atrás uma página como essa seria violentamente criticada por sociólogos, historiadores, críticos etc. como uma contrafacção e como algo kitsch e radicalmente de mal-gosto e como uma coisa ridícula, absurda. Agora, não, a gente tem uma espécie de absoluta equalização, não há intervalos. E há uma espécie de desierarquização do valor artístico.

Isso produz um problema crítico que é divertido e que é o seguinte: os críticos iluministas, que ainda estão aqui, os críticos marxistas, gente que lê muito Adorno ou que tem a cabeça formada pelo Walter Benjamin, quando veem esse espetáculo pensam assim: “nossa, que horror, que horror”! Ao mesmo tempo, quando veem, por exemplo, o novo romance do menino-Folha-de-S.-Paulo, que usa a Folha como meio de marketing para publicar seu novo romance que vai falar das relações incestuosas homoeróticas que agora é politicamente correto, eles dizem assim: nossa, que péssimo esse romance, uma porcaria!

Por quê? Nós lemos Kafka, quando éramos jovens. Kafka! Ao mesmo tempo, eles vão a uma exposição de pintura e veem lá, por exemplo, que o Fulano está repintando a repintura da pintura de Beltrano, que ele está fazendo uma paródia da estilização da citação etc.. Então eles falam assim: putz, mas não tem invenção nenhuma, esse cara não tem nada, nós gostávamos do Picasso, do Klee, essa gente sim, é inventiva. Agora, isso é um problema crítico muito interessante porque esses críticos ficam numa atitude de choro, nostálgica, de melancolia tipo “como era verde meu vale”, dizendo assim: aquele tempo sim, que era bom, e agora vivemos uma decadência radical dos valores.

E eles inclusive produzem uma contradição no próprio discurso que é a ideia de propor produtos da alta modernidade — Kafka ou Picasso, poderia ser Matisse ou Joyce ou Eliot — como modelos para o poetinha ou escritores de hoje. Agora, se a gente é moderno contra o pós-moderno, a gente não pode propor que o moderno seja modelo de coisa alguma porque, por definição, o moderno é uma ideia iluminista que faz com que o moderno tenha que se negar a si mesmo.

O moderno não admite cânones, o moderno não tem modelo. Então o crítico que diz assim: “isso não presta” e Kafka é o modelo para dizer que isso não presta, é de uma violenta contradição porque ele está propondo que um artista moderno como Kafka seja um acadêmico, seja um clássico que sirva de modelo para uma outra produção. Isso é um lado, que tem esse choramingo na cultura e que hoje vem, eu acho, principalmente da área do marxismo. Marxistas que ficam chorando, dizendo que é muito triste. Realmente, a sociedade neoliberal é um horror! Mas não adianta ficar nessa posição só de choro.

Outro problema é o seguinte: como tudo está equivalente, a gente corre o risco de cair num radical relativismo cultural e bater palma para tudo, ficar apenas numa posição de descrição e achar que tudo é legal. O problema que há hoje, no modo como enfrentamos essas questões e também a questão da organização do tempo na experiência histórica da cultura contemporânea, na minha opinião — que é só uma opinião —, é que não temos categorias para descrever o que acontece.

Quer dizer, a realidade é muito maior do que a gente pensa. E ela provavelmente é muito mais rápida. A gente ainda está aplicando categorias iluministas, que são as nossas, para pensar processos que já deixaram o iluminismo para trás. Se a gente fica na posição de crítico modernista, nostálgico de bailado, nostálgico da grande arte do século XX — que é uma grande arte, realmente —, a gente fará enunciados melancólicos e regressivos sobre o presente. Se a gente fica na posição de meramente relativizar tudo, a gente acaba aderindo à essa espécie de liquidação geral que é apenas um marketing da cultura como mercadoria, como regressividade etc.. A questão que se tem, então, que é crítica e teórica, e provavelmente epistemológica, é como nós vamos pensar a cultura hoje de modo que não seja meramente regressivo, propondo voltar a uma coisa que já passou, e que também evite meramente aderir ao que está aí.

De qualquer forma, parece que, na experiência do tempo hoje, o futuro está bloqueado. Por que? Talvez porque o presente não passa. E por que ele não passa? Aí temos duas hipóteses: uma, que vem da área do marxismo e da crítica muito bem fundada ao mundo neoliberal hoje, é a ideia de que o presente não passa porque os processos econômicos e políticos produzem, nos indivíduos, um desinvestimento básico das relações de crítica. Por exemplo, quando o trabalho tem que se aliar ao capital para garantir emprego, a ideia de revolução que até ontem animava o movimento operário foi para o espaço.

Ao mesmo tempo, a ideia de que numa cultura como essa o capital está revolucionando a cultura e que, nesse sentido, o presente não passa e o futuro está bloqueado porque o que está dominando, por enquanto, é esse presente mercantil, financeiro, da troca econômica que transforma a cultura em valor de troca. A gente está percebendo isso, por exemplo, nos programas do Banco Mundial para a universidade ou para o ensino brasileiro, essa ideia de que só interessa, enquanto ensino, enquanto educação, aquilo que seja imediatamente rentável.

O Bill Gates esteve em Stanford há coisa de cinco anos atrás e reuniu todos os artistas, arquitetos, músicos, pintores que dão aula lá, reuniu também o pessoal de letras, os filósofos, historiadores, todas as humanidades e as artes e disse assim para eles: vejam, eu ganho trinta milhões de dólares por mês. É um argumento divino, é absolutamente absoluto. E aí ele disse assim: vocês ainda perdem tempo em ensinar a estrutura do teatro de Shakespeare? Vocês discutem se Macbeth é ou não um criminoso, se ele é ou não maquiavélico? Isso é bobagem.

Vocês, com o saber que têm, devem ensinar seus alunos a produzir enredos que imitem Shakespeare porque a gente tem um grande campo de indústria de divertimento pela frente. Que é o modelo japonês também, vocês sabem. Os japoneses estão fazendo uma aposta que a grande economia do século XXI será o signo. Daí o investimento numa educação que já está treinando gente lá para produzir divertimento para as massas, porque eles estão fazendo uma hipótese de que a informática está liberando as pessoas do trabalho imediato e que o crescimento dessa gente que presta serviços, terciários etc. será infinito.

Agora, a cultura está nessa chave, segundo uma crítica marxista mostraria, justamente por essa ideia capitalista radical de que a cultura eficazmente sempre foi uma mercadoria, um presunto, e que só interessa quando o presunto é imediatamente rentável, ponto. Essa é uma hipótese. Os críticos mais otimistas — e que são pós-modernos — estão dizendo: olha, chega de melancolia, a coisa mudou, o futuro está bloqueado porque a gente tem um excesso de futuro. O presente é tão múltiplo, tem tantas pluralidades, tantas articulações que a gente não sabe qual é o futuro porque acabou aquela ideia iluminista de que o futuro era um só e que seria um futuro superando o presente como revolução. A gente tem milhões de futuros hoje, por isso o futuro aparece bloqueado — ele está indeterminado, nós não sabemos qual seja.

Então, nesse espaço, a gente tem uma discussão acho que brava da cultura, se a gente pensar que, ao mesmo tempo, os processos econômicos neoliberais estão pondo cada vez mais gente para fora da economia, da produção, da educação, da saúde etc. e simplesmente lavando as mãos. Quer dizer, até ontem havia um tipo, que era o intelectual iluminista ou o intelectual crítico, que ainda ousava ter a ideia de que ele podia falar por essas massas.

Hoje essa é uma ideia que envergonha, ninguém tem coragem de falar por ninguém — achar que eu vou doar consciência para um proletário do verdadeiro dever histórico dele, isso deve envergonhar realmente qualquer um. Mas é um equívoco que houve. Ao mesmo tempo, quando desaparece essa ideia da crítica ou do intelectual como um tipo crítico, que tomava partido político na questão da cultura, também desaparece essa velha representação do tempo como contradição, negação, transformação, superação e revolução. Hoje essas ideias estão aparentemente ausentes na cultura não só no Brasil, é um fenômeno mundial. Então a gente está numa situação em que teríamos que discutir o que significa um novo modo de vivenciar o tempo e que cada vez mais a espacialização, a simultaneidade substituem as ideias de contínuo ou de superação e que a negação desaparece e se vive uma espécie de plena possibilidade afirmativa daquilo que foram chamadas as diferenças.

Agora, cada vez mais, a gente tem diferenças que são legiões. Quer dizer, desde gays, lésbicas, homoeróticos, passando por negros, judeus abandonados, crianças, FEBEM, vocês têm tudo. São tantas minorias… Agora, a sociedade de classes, obviamente, está aí e está cada vez mais eficaz. O capital está aí, nós temos uma sociedade ainda baseada na ideia de exploração. Provavelmente, então, o que a gente não tem, na rapidez dessa mudança, são as categorias que permitissem a gente pensar o tempo.

Na ideia do Koselleck, que eu acho uma hipótese muito interessante, pensando no modo como entendemos a experiência, quer dizer, de que modo classificamos e definimos a categoria de experiência, o que entendemos por experiência. Ao mesmo tempo, como acumulamos a experiência, que função tem nela, por exemplo, a memória? O que é a memória, hoje, quando ela está num disco rígido ou em disquete? É interessante pensar.

Que relação estabelecemos com a experiência não só do presente mas principalmente do passado em processos da nossa vida no presente em termos de uma expectativa de futuro? Quer dizer, qual o nosso horizonte de expectativas do futuro? Como nós pensamos o futuro? E se nós não o pensamos, por que não pensamos o futuro? E aí esses elementos — a categoria experiência, a categoria horizonte de expectativa, a categoria previsibilidade e imprevisibilidade do futuro — permitiriam a gente pensar uma outra coisa que é fundamental para pensar o tempo o que é o evento, o que é o acontecimento. Na nossa sociedade não acontece nada — não sei se vocês concordam —, o tédio é mortal — eu pelo menos sinto.

Acho que existe uma espécie de grande agitação da troca, todos correm de um lado para outro, a simultaneidade é cada vez mais radical, mas não acontece nada que seja uma transformação do estado de coisas. Um enunciado como esse — vocês poderiam dizer para mim — é iluminista, você ainda está com o modelo anterior, porque hoje talvez não se devesse nem colocar isso, que não acontece nada. O não acontecer nada talvez seja próprio da troca porque há apenas a manutenção do circuito, sem que aconteça nada no circuito que está circulando, mas nada de novo vem de fora ou de dentro que o interrompa. Nesse sentido, algumas pessoas críticas — não sei se elas são iluministas —, têm o direito de dizer, eu acho, que é muito tedioso, é muito chato, é muito repetitivo.

A gente tem alguns eventos programados. Por exemplo, a gente pode matar um presidente. É o modelo norte-americano de produzir um evento. Ou então, por exemplo, a gente é um serial killer, a gente sobe numa torre e com um rifle mata os nossos colegas na universidade ou na escola.

Agora, será que isso é um evento? A polícia, na periferia de São Paulo, em Carapicuíba, mata de sete a oito por noite. Não é um evento. É um acontecimento, mas não é um evento porque isso não é dado nos midia e isso não afeta, aparentemente, a estrutura da vida. O que é um acontecimento? Parece que a ideia de acontecimento está relacionada também sempre a uma certa expectativa que a gente tem em relação ao futuro, ao modo de trabalhar com a experiência do passado e do presente e ao modo como orientamos, no sentido político da intervenção, essa experiência e essa expectativa no nosso presente. Isso determinava o evento. O que é o evento? É aquilo que acontece podendo não acontecer. Ou seja, ele é uma ruptura, o acontecimento é uma ruptura.

Nesse campo não-hermenêutico atualmente vêm vindo vários estudos justamente sobre novos objetos. E um dos objetos que vem sendo estudado em Princeton, por exemplo, é a teoria da emergência ou a teoria do evento. Quer dizer, a ideia de inventar uma nova ciência, uma heurística, que deve tentar pensar novos objetos que são meio impensados ainda hoje mas que já estão entre nós. Por exemplo, o criminoso que é preso no Canadá porque o satélite leu a sua placa; o cartão de crédito que produz tempo virtual; o fato de a gente ter cada vez mais fenômenos neofascistas; o fato de que, ao mesmo tempo que se vive um absoluto fim dessa ideia iluminista, a gente estar cada vez mais vivendo os cultos de Ísis, cada vez mais há cultos esotéricos, cultos do diabo, essas seitas de televisão que se proliferam.

Quer dizer, há vários eventos, ou melhor, vários fenômenos acontecendo na cultura que mereceriam ser discutidos como objetos novos, mas geralmente o que está acontecendo é que, para falar deles, o crítico ou fica numa atitude melancólica — “oh!, isso não presta, é uma decadência!” — ou ele fica numa atitude de mera validação. E talvez a gente devesse recuar o pressuposto e tentar discutir quais são as possibilidades efetivas de encontrar categorias novas de pensar os objetos. Por exemplo, a universidade não pensa o cotidiano. A universidade pensa só um saber erudito já acumulado que é um saber geralmente morto.

A universidade, onde tem cabeças, geralmente não pensa o aqui e agora de uma prática cotidiana. Ela tem que pensar o século V antes de Cristo, evidentemente, ela tem que fazer isso, que é a função dela. Mas não só isso. Ela precisaria inventar uma heurística, uma arte de inventar problemas futuros que a gente nem imaginou ainda. Aí seria legal, porque resposta a gente não tem nenhuma. Isso é legal também, isso é magnífico, é um tempo de uma absoluta indeterminação.

De qualquer forma, é interessante pensar: talvez pensar seriamente a presença do presente, quer dizer, o que é a presença do presente. Provavelmente a presença do presente é, na minha hipótese, uma desierarquização dos valores, uma absoluta simultaneidade das relações, uma ausência do futuro, que está bloqueado, um acúmulo radical de todos os passados que estão armazenados e citados à vontade e, principalmente, uma indefinição do que seja, por exemplo, o corpo.

A gente teria que pensar também o corpo. O que é o corpo, quando ele se move, quando ele entra em contato com o computador? O que é o sujeito, nessas várias conexões? A gente teria que discutir até se hoje ainda vale o nosso modelo linguístico – significante, significado – que dá conta, como uma semiótica, dos fenômenos culturais, ou se a gente não deveria recuperar aquilo que o Jean François Lyotard propunha como uma energética, uma teoria de pulsões, uma teoria libidinal da produção cultural.

Mas isso são hipóteses. Eu acho que falo muito. Inclusive tinha um texto feito e não o segui, eu me perdi falando outras coisas. Espero não ter sido excessivamente perdido. Desculpem-me, eu falei de maneira arbitrária. Talvez eu tenha sido apenas pós-moderno.

Então, vocês acham que deu para situar alguma questão? A minha ideia foi lhes propor assim, de repente, três hipóteses sobre a temporalidade pensada como uma articulação social. Quer dizer, essa hipótese de que fala o Koselleck, do tempo Antigo Regime, um tempo teológico, em que Deus está presente; o tempo iluminista, que a gente encontra nos iluministas e no marxismo, essa hipótese de uma crítica e da superação; e o tempo pós-moderno, que parece não-tempo, que parece uma eternidade. Como dizia o Drummond, como ficou chato ser moderno, agora serei eterno. É mais ou menos essa situação em que somos póstumos em relação a nós mesmos, nós já morremos e nós continuamos vivos — isso é que é legal.

*João Adolfo Hansen é  professor titular aposentado e sênior da USP. Autor, entre outros livros, de Agudezas seiscentistas – Obra reunida, vol 1 (Edusp).

Este artigo foi uma palestra no evento Conversas no Ateliê. Palestras sobre Artes e Humanidades. Org. Vera Pallamin e Joaci Pereira Furtado. FAU/USP, 2002

 

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