A teoria crítica da cultura de Theodor Adorno

Romare Bearden, Memória de Pittsburgh, 1964
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Por LUCAS FIASCHETTI ESTEVEZ*

A crítica dialética e imanente da cultura empreendida por Theodor Adorno nos habilita a pensar na irresoluta inserção da cultura em nosso tempo

A latente sobreposição de profundas crises na sociedade capitalista moderna — seja em seu centro, seja em sua periferia — acaba por ter um impacto relevante não só no lugar ocupado pela cultura, mas também na forma como manifestações artísticas podem representar, trabalhar e tensionar uma resposta estética, e ao mesmo tempo política, aos impasses do tempo presente.

A crítica dialética e imanente da cultura empreendida por Theodor Adorno nos habilita justamente a pensar essa irresoluta inserção da cultura em nosso tempo. A insistência de Theodor Adorno em analisar o objeto estético a partir de sua legalidade imanente, a qual inclui um diagnóstico de época que parte de uma teoria crítica da sociedade, permite que os fenômenos culturais sejam tomados ao mesmo tempo como autônomos e dependentes do estado geral de recrudescimento da barbárie e de desagregação social. Nesse sentido, tratar da estética é ao mesmo tempo trazer à tona questões políticas e sociais.

Dito isto, faz-se necessário relembrar que a crítica cultural empreendida por Theodor Adorno é gestada em um contexto histórico de profunda mudança nos rumos do marxismo. Afinal de contas, o horizonte de expectativas elevado do início do século XX foi sendo gradativamente substituído por um amplo desgaste. Em uma conturbada cena de aprofundamento das contradições do sistema capitalista, a experiência soviética se demonstrava perpassada por tendências autoritárias, enquanto o fascismo crescia em adeptos, inclusive entre as massas trabalhadoras.

Desse modo, era cada vez mais hegemônica a percepção de que o capitalismo se consolidava como uma realidade perene, o que fez com que parte do marxismo voltasse sua atenção às estratégias de reprodução do sistema. É nesse contexto que é gestado o projeto intelectual da Escola de Frankfurt, a chamada “Teoria crítica da sociedade”. Em linhas gerais, devemos aqui lembrar que a análise da cultura frankfurtiana parte desse mesmo diagnóstico de época relativo à estabilização do capitalismo. Naquele contexto, torna-se uma tarefa urgente da teoria crítica — enquanto abordagem marxista atualizada do capitalismo — compreender o papel da cultura como elemento integrador e reificante do status quo.

Assim, era preciso então redefinir as relações entre a vida material da sociedade e a vida espiritual para além dos moldes do marxismo ortodoxo. Para os frankfurtianos, a cultura deve ser vista sob uma contradição imanente, a saber, ao mesmo tempo em que é determinada por elementos externos a si própria, ela também detém certo grau de autonomia perante tal exterioridade, não sendo, portanto, reduzida a um mero reflexo ou epifenômeno das leis da sociedade.

Nesse sentido, a cultura também se revela como uma força motriz da reprodução social, e não apenas sua linha auxiliar. Ao mesmo tempo em que é ideológica, ela se consolida através de práticas sociais reais que estão na base da vida material capitalista. Sob essa interpretação, a cultura tende ou a reforçar caracteres regressivos da sociabilidade ou a ser um espaço de liberação de ímpetos transformadores e críticos. Entretanto, tendo em vista a estabilização do capitalismo e a perda de suas forças negativas e contestatórias, a cultura se enrijece como afirmação do existente, enquanto a arte autônoma — que também é fruto do próprio mundo burguês — é tragada para o mesmo sistema de produção padronizada.

Neste sentido, é importante que diferenciemos a crítica cultural adorniana tanto das interpretações que tratam a obra como uma realidade independente em si mesma, como daquelas que só levam em consideração o contexto e a coerção social que o meio exerce em sua produção. Theodor Adorno compreende que, por um lado, devemos considerar os elementos externos como aqueles pertencentes à realidade social de uma determinada época, os quais indicam o estágio de desenvolvimento das forças de produção e das relações sociais implicadas na produção das obras artísticas.

Por outro lado, há o trabalho de elaboração e as leis internas que levaram à constituição da obra, que podem ser avaliadas a partir da identificação de quais técnicas e processos de elaboração estética foram usados pelo artista e de que modo ele responde às exigências hegemônicas em voga, tornando possível assim entrever o nível de sua autonomia.

Partindo dessas duas dimensões, Theodor Adorno opera entre ambas uma operação dialética, que compreenda tanto as forças de produção como a constituição interna da obra como momentos interdependentes de um mesmo processo. Nesse sentido, Theodor Adorno insiste na urgência em se analisar o objeto estético a partir de sua legalidade imanente que inclui em si um diagnóstico de época a respeito das pressões externas que constrangem ou liberam o objeto.

Da mesma forma, o caráter progressista ou reacionário de uma obra só pode ser entendido na intersecção de tais dimensões, já que o estágio geral da técnica e das relações sociais sempre estabelece uma relação recíproca com a dimensão interna do objeto. Diante das determinações exteriores, a obra pode afirmá-las ou negá-las — pode reproduzir os clichês em curso e contribuir em sua perpetuação, tal como apontar a uma alteridade ainda não existente. Nos termos até aqui colocados, podemos então considerar uma obra de arte com potencial crítico como aquela que, por meio da elaboração de seu material, ultrapassa as próprias condições nas quais foi gerada, propondo algo de novo que nega o presente, superando-o.

Desse modo, interpretar o potencial crítico de uma obra passa por decifrar seus conteúdos sociais e sua posição perante a ideologia dominante. Dessa maneira, a compreensão da obra só é possível quando as condições de constituição de seu material são tidas como condições históricas, ou seja, quando a análise ocorre a partir da mediação entre a obra individual e a sociedade. Por meio desse esquema, os conflitos sociais se inscrevem na própria obra como problemas imanentes de seu material.

Quando Theodor Adorno coloca os problemas imanentes da obra como o centro de gravidade da crítica, compreendemos como sua abordagem dá liberdade àquilo que a própria obra intenciona dizer para a sociedade, qual posição e às quais demandas sociais, econômicas e políticas ela responde. Assim, deciframos na obra não só sua lógica interna como também sua ideia geral, o que se pretende e o que se faz a partir dela.

Segundo Theodor Adorno, é necessário compreender em que medida o material musical de uma obra mobiliza um questionamento do atual estágio da técnica e da tradição. Entretanto, o autor ressalta como o conteúdo de uma obra não pode ser compreendido de forma a-histórica e axiologicamente neutra, mas somente em sua relação com o pensamento filosófico, com o estágio da técnica e com a crítica orientada à emancipação dos homens. Desse modo, pode-se compreender que a obra tomada em si mesmo, de forma isolada, não é dotada de sentido algum.

Em alguns de seus escritos, Theodor Adorno qualifica de forma minuciosa o que se deve entender por crítica cultural, ideia fundamental para compreendermos o tema aqui exposto.Adorno nota como a chamada “crítica” geralmente é entendida como uma espécie de denúncia, uma insinuação por parte de quem possui a cultura a respeito do que nela falta ou deixa a desejar.

Além disso, a crítica costuma partir de um lugar que entende a cultura como algo isolado, uma esfera à parte do processo social. Por fim, os chamados “críticos culturais” veiculam discursos que prezam a arte pela arte, partindo de uma espécie de caráter essencialista da cultura. No limite, a crítica cultural chega a se transformar num lamento sobre a decadência, num claro viés elitista — que só se satisfaz valorizando as formas do passado.

A fim de se distanciar de tais posições, Theodor Adorno comenta como o crítico não pode se entender como “o representante de uma natureza imaculada ou de um estágio histórico superior, mas é necessariamente da mesma essência daquilo que pensa ter a seus pés” (ADORNO, 2001, p.7). Na maior parte das vezes, mesmo que não saiba, o crítico coopera com a cultura que critica. Na verdade, sua posição supostamente independente cria uma reação negativa do público a seu respeito, já que cultiva uma espécie de ressentimento instalado na sociedade que o encara como aquele que se considera acima de todos, como que a julgar de forma neutra a arte.

Como nota Theodor Adorno, ao ter uma atitude contemplativa em relação à cultura, o crítico “tradicional” costuma se especializar em inspecioná-la, como se fosse um objeto a sua disposição. Assim, o supremo fetiche do crítico se torna o próprio conceito de cultura, tido como uma esfera apartada do todo social onde a prática da liberdade seria possível. Mesmo que tais críticos reclamem da superficialidade e decadência da cultura, eles próprios são parte dessa superficialidade que só dá atenção ao entrelaçamento entre a cultura e o comércio, se esquecendo do conteúdo das obras.

Por outro lado, a própria possibilidade da existência da crítica repousa sobre ideais burgueses, justamente aqueles que dizem respeito à liberdade de opinião e de juízo. Entretanto, a crítica cultural recai sobre uma dialética própria e truncada, já que a crítica à norma acaba por geralmente confirmar a norma. Para Adorno, a transformação do ímpeto inconformista da crítica em seu oposto é de natureza eminentemente histórica, fruto de um processo no qual sobra cada vez menos espaço para uma crítica qualitativamente distinta.

Logo, a crítica cultural também revela a “falsa emancipação” engendrada pelas promessas burguesas. Nesse estado de coisas, a discussão sobre a imanência dos conteúdos particulares das obras é substituída por debates superficiais que dizem respeito ao estilo ou aos valores que elas supostamente carregam — isso quando o debate não desemboca na escrita de perfis sensacionalistas dos artistas, num retalho de informações de sua vida privada tornada pública.

Essa noção regressiva e fetichizada da cultura encontra sua forma histórica na indústria cultural. Segundo Theodor Adorno, isso só foi possível devido ao ambíguo processo de autonomização da arte, que permitiu a ela se desenvolver num espaço próprio e descolado dos interesses da antiga nobreza. Ao longo da história, entretanto, o mercado e suas regras colonizaram a tal ponto a produção das mercadorias culturais que o isolamento da arte se converteu em seu oposto, a saber, em bens culturais mediados inteiramente por critérios externos, que agora atingem os meios e os fins de sua produção.

Ao não refletir sobre o próprio conceito de cultura, a crítica “compartilha com seu objeto o ofuscamento”, a saber, aquela opacidade própria do mundo social que esconde as relações de classe nele engendradas. Sempre de acordo com o estado da técnica, a cultura torna-se uma instância de legitimação dessa ordem. Nesse âmbito, a crítica cultural tem como limite ou a apologia não-reflexiva da indústria cultural ou a condenação do existente a partir de um princípio de pureza da cultura supostamente perdido, como fizeram os nazistas em seu chavão da “arte degenerada” ou o Estado soviético com a “cultura burguesa decadente”.

Por outro lado, a crítica dialética e imanente proposta por Theodor Adorno é qualitativamente distinta, já que parte de uma tomada de consciência das aporias da própria cultura. Desse modo, teríamos uma crítica da cultura que se debruça sobre o existente, animada pelo mesmo ímpeto da crítica social, ou seja, com a tarefa de apontar para as tendências emancipatórias e antiautoritárias incrustradas no âmbito do Espírito.

Enfim, devemos elaborar a seguinte questão: como uma crítica cultural dialeticamente orientada pode e deve se realizar?. Para Theodor Adorno, “o procedimento da crítica cultural está, ele mesmo, submetido a uma crítica permanente, tanto em seus pressupostos gerais, em sua imanência à sociedade vigente, quanto nos juízos concretos que enuncia” (Ibid., p.18). Assim, a crítica cultural dialética também afirma seu compromisso com uma cultura qualitativamente distinta, já que a aceita como um fato social transpassado por inúmeras contradições.

De acordo com Theodor Adorno, “o que distingue a crítica dialética da crítica cultural [tradicional] é o fato de que a primeira eleva a crítica até a própria suspensão do conceito de cultura” (Ibid., p.19). Nesse modo de abordar o tema, é necessário reconhecer a sobrevivência, mesmo que tímida, da autonomia da cultura e como ela responde, por meio do lugar que ocupa, ao que lhe é estranho, ao “processo material da vida”. Como diz Adorno, “a crítica dialética posiciona-se de modo dinâmico ao compreender a posição da cultura no interior do todo” (Ibid., p.19) — toma o objeto, o cerca e vai para além dele, implodindo-o.

Por fim e não menos importante, a crítica dialética não deve ser compreendida como um método. Na verdade, ela é guiada pelo próprio objeto e nele entrevê suas relações com o todo social. Ela abole, no limite, a própria separação entre sujeito do conhecimento e objeto. Não há uma série de procedimentos de análise definidos a priori. Para Theodor Adorno, aceitar um “método” de análise limitaria o próprio objeto. Na crítica imanente e dialética, se leva a sério a contradição entre a ideia objetiva da obra e a pretensão do artista, tal como se nomeiam as inconsistências e consistências de uma obra frente à existência social.

Levando essa ideia ao limite, compreender a negatividade da cultura está em tornar possível uma avaliação a respeito da “verdade ou inverdade do seu conhecimento”, tendo em vista que as antinomias da cultura são tomadas elas mesmas como antinomias sociais, a princípio, irresolvíveis pela política vigente, de horizontes sem profundidade e sem crítica.

Ciente das contradições do processo, Adorno reconhece que há o risco da própria crítica dialética ser arrastada “por seu objeto para o abismo” (Ibid., p.25) frente a crescente dependência da cultura em relação ao aparato econômico. Segundo Theodor Adorno, “quanto mais totalitária for a sociedade, tanto mais reificado será também o espírito, e tanto mais paradoxal será o seu intento de escapar por si mesmo da reificação” (Ibid., p.26).

Para escapar de tal conformação entre o espírito e o mundo, a crítica deve urgentemente extravasar a si mesma e abandonar qualquer “contemplação autossuficiente” (Ibid., p.26). Em outras palavras: ela deve se arriscar, insistindo em obras de arte que abolem por meio de sua radicalidade a própria separação entre a estética, a sociedade e a política.[1]

*Lucas Fiaschetti Estevez é doutorando em sociologia na USP.

Referência


ADORNO, Theodor W. Crítica cultural e sociedade. In: Prismas: crítica cultural e sociedade. São Paulo: Editora Ática, 2001, p. 7- 26.

Nota

[1] A teoria crítica da cultura de Adorno, aqui exposta de modo introdutório, será objeto de um minicurso de extensão oferecido pelo Laboratório de Pesquisa Social, da Universidade de São Paulo, em outubro. As aulas serão ministradas presencialmente pelos pesquisadores Lucas Fiaschetti Estevez (Doutorando PPGS/USP) e Bruno Braga Fiaschetti (Mestrando PPGS/USP) às quintas-feiras, das 17h30 às 19h. As inscrições estão abertas através do link: https://sociologia.fflch.usp.br/minicurso_adorno.


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