a terra é redonda

A terra é redonda e o governo Bolsonaro é fascista

Por Armando Boito*

Como
caracterizar o movimento de extrema direita que chegou ao poder no Brasil? E
como caracterizar o governo Bolsonaro? 
Neoliberal? Neocolonial? Neofascista? Todas as anteriores?

Intelectuais
e dirigentes políticos socialistas e progressistas têm afirmado que não se deve
caracterizar o Governo Bolsonaro e o movimento que o apoia como fascistas ou
neofascistas. Argumentam contrapondo tal movimento e tal governo a uma
caracterização a nosso ver errônea do fascismo original. Ao contrário do que
pensam aqueles que recusam o conceito de fascismo ou de neofascismo para
caracterizar o bolsonarismo, não é correto caracterizar o fascismo pela fração
burguesa que deteve a hegemonia política no fascismo original – a grande
burguesia monopolista italiana e alemã – e tampouco é correto caracterizá-lo fazendo
referências genéricas ao nacionalismo, ao militarismo e às práticas imperialistas
característicos da política dos Estados fascistas originais.

Essas
ideologias e práticas também estiveram ou estão presentes em democracias
burguesas daquele e de outros períodos históricos. Dentro de uma mesma forma de
Estado – seja a democracia, a ditadura militar ou a ditadura fascista – são
possíveis diferentes blocos no poder e, consequentemente, diferentes tipos de
política econômica, social e externa.

A
ditadura fascista num país imperialista não terá o mesmo bloco no poder que uma
similar sua implantada num país cuja economia e cujo Estado são, ambos,
dependentes. Isso significa que é possível sim contemplar a hipótese de um movimento
fascista e de uma eventual ditadura fascista submissos ao capital
internacional, e não à burguesia nacional imperialista como sucedeu na Alemanha
e na Itália. Dito diretamente: um governo fascista pode aplicar uma política
econômica e social neoliberal e, nos países dependentes da América Latina, pode
aplicar uma política externa de subordinação passiva aos EUA.

A
distinção entre forma de Estado e bloco no poder é fundamental. Porém, para
caracterizar o neofascismo já em vigor no Brasil, é necessário mobilizarmos
outras distinções conceituais. É preciso explicitar a distinção, que opera
implicitamente no parágrafo anterior, entre a forma de Estado, o movimento e a
ideologia.

A
ditadura fascista supõe a existência de uma ideologia, a ideologia fascista, e
tal regime ditatorial somente se torna realidade se houver um movimento social,
o movimento fascista movido pela ideologia fascista, que lute para a
implantação daquele regime. Mas – atenção! – os fascistas também fazem cálculos
táticos, podem hesitar e nem sempre têm toda clareza sobre os seus objetivos.
Eles podem, numa determinada conjuntura, abrir mão da luta por uma ditadura
fascista, postergá-la, ou mesmo não ter clareza sobre ela.

Palmiro
Togliatti, em seu livro clássico Lições
sobre o fascismo
, mostra que aconteceu um pouco de tudo isso no Governo
Mussolini entre 1922 e 1925. E não estava dado que Mussolini sairia vitorioso
da crise gerada pelo assassinato do deputado socialista Mateotti. Ou seja,
teoricamente é possível admitir que um movimento fascista, movido pela ideologia
fascista, chegue ao governo e não logre implantar uma ditadura fascista.

No
que respeita ao Brasil de hoje temos a ideologia neofascista, o movimento
neofascista e um governo no qual os neofascistas ocupam a posição dominante – lograram,
após alguns meses de governo, deslocar o grupo militar para um plano secundário
e o grupo militar é propenso a outro tipo de ditadura. O que não temos no
Brasil, pelo menos até agora, é um regime político fascista. O regime vigente
no Brasil é uma democracia burguesa deteriorada e em crise.

Fascismo
e neofascismo

Façamos
uma terceira distinção: fascismo é um gênero; o fascismo alemão e italiano, de
um lado, e o fascismo brasileiro, de outro, são, ambos, espécies desse gênero.
Estou chamando o primeiro de fascismo original e o segundo de neofascismo.

O
que é o gênero fascismo? As definições sintéticas são sempre limitadas, mas
podemos arriscar a afirmação, inspirada na análise de Togliatti, de que, nas
suas características mais gerais, o movimento fascista é um movimento reacionário de massa enraizado em camadas intermediárias das formações sociais
capitalistas.[i]
A ideologia fascista e as características típicas de sua base social estão
presentes, com variações, tanto no fascismo original, quanto no neofascismo brasileiro.
Inclusive o analista precisa detectar as relações entre uma – a ideologia – e
outra – a base social.

O
fascismo e o neofascismo são movidos por um discurso superficialmente crítico e
ao mesmo tempo profundamente conservador sobre a economia capitalista e a
democracia burguesa – crítica ao grande capital e defesa do capitalismo;
crítica à corrupção e à “velha política” combinadas com a defesa de uma ordem
autoritária.

A
ideologia de ambos é heterogênea e pouco sistemática; nela se destacam a designação
da esquerda como o inimigo a ser destruído (Bolsonaro não proclamou abertamente
em discurso transmitido nos telões da Avenida Paulista que a esquerda em seu
governo deveria emigrar ou iria para a prisão?); o culto da violência (alguma
dúvida sobre isso no que respeita ao bolsonarismo?); seu caráter principalmente
destrutivo, negativo, não propositivo (Bolsonaro não esclareceu, para
justificar sua falta de propostas positivas, que o governo dele será uma
quimioterapia para o Brasil?); o irracionalismo (a terra é plana e o
aquecimento global uma invenção, certo?); um nacionalismo autoritário e
conservador (culto da homogeneidade da sociedade nacional e rejeição dos
“desviantes”) e a politização do racismo e do machismo, ervas que brotam
espontaneamente no solo da sociedade capitalista – na desigualdade de classe, na
organização patriarcal da família, no autoritarismo da empresa capitalista – e
que o fascismo alça, com o seu programa partidário, para a cena política.

Arriscamos
dizer que se formos procurar as raízes sociais da crítica conservadora, do
combate à esquerda, do culto à violência, da atitude fundamentalmente
destrutiva, do irracionalismo e das demais características da ideologia
fascista e neofascista, encontraremos, sempre, um desespero pequeno-burguês ou
de classe média, desespero de quem se vê diante de uma ameaça, real ou
imaginária, pouco importa, e, ao mesmo tempo, sente-se, também, politicamente
incapaz de oferecer uma solução para os seus próprios problemas. São os
pequenos burgueses enlouquecidos dos quais nos falou Engels ao examinar
situação semelhante.

O
fascismo tem como objetivo eliminar a “esquerda” do processo político, e não
simplesmente derrotá-la. Porém, “esquerda” é um termo genérico e meramente indicativo.
No fascismo clássico essa “esquerda” era composta por dois partidos operários
de massa, que almejavam superar o capitalismo ou reformá-lo profundamente – o
Partido Socialista e o Partido Comunista. Já no neofascismo brasileiro, a
“esquerda” a ser eliminada é o movimento e os governos democráticos, movidos
pelo reformismo burguês neodesenvolvimentista e com apoio popular, campo
político que esteve, até aqui, sob a direção do Partido dos Trabalhadores.

Esse
partido deixou, há muito tempo, de ser um partido de massa e se tornou um
partido de quadros ou de notáveis. O inimigo do fascismo original exige desse
último um partido também de massa. Esse partido de massa foi um partido
pequeno-burguês, que comportava também militantes e dirigentes recrutados em
setores desqualificados da sociedade. Já o inimigo do neofascismo brasileiro
não é uma ameaça aberta ao capitalismo e não organiza politicamente a
heterogênea parcela da população, típica dos países de capitalismo dependente,
que podemos denominar “trabalhadores da massa marginal”. Por isso, o
neofascismo pode, pelo menos até aqui, dispensar um partido de massa, mobilizar
suas bases para lutas específicas pelas redes sociais,[ii] e
se contentar com um lastro político baseado em organizações religiosas.

O
fascismo no poder

O
fascismo e o neofascismo são movimentos reacionários das classes
intermediárias, mas que chegam ao poder, não como representantes dessas camadas
que lhe deram origem, e, sim, após terem sido politicamente confiscados pela
burguesia ou por uma de suas frações com o objetivo de, apoiada neles, superar
uma crise política e implantar um governo antidemocrático, antioperário e
antipopular.

Esse
tipo de crise, que Nicos Poulanzas em sua obra Fascismo e ditadura,
caracterizou para a Alemanha e a Itália da década de 1920, verificou-se também,
mudando o que deve ser mudado, na crise brasileira da década de 2010. A crise
no bloco no poder devido à intensificação da disputa entre as frações burguesas
e a crise ou declínio dos partidos burgueses tradicionais ensejaram a cooptação,
pelo alto, de um movimento que veio de baixo.

Essa
dinâmica particular do processo político só pode ser devidamente compreendida quando
se leva em conta que nas fases mais avançadas do processo de fascistização,
tanto no fascismo original como no neofascismo, as classes populares vêm de
seguidas derrotas e se encontram politicamente na defensiva – momentaneamente
incapacitadas, portanto, para apresentar alternativas políticas próprias e
viáveis. Essa dinâmica prevaleceu tanto no fascismo original, quanto no
neofascismo brasileiro, a despeito das diferenças entre a espécie de fascismo vigente
no século XX e a espécie de fascismo que está se formando no século XXI.

Se
no fascismo clássico, o grande capital nacional, diante da crise dos partidos
políticos que tradicionalmente o representavam, confiscou o movimento
pequeno-burguês, apoiou-se nele, para implantar a sua hegemonia; no neofascismo
brasileiro, foi o capital internacional que, tendo em vista a crise do seu
tradicional representante no Brasil, o PSDB, tetracampeão em derrotas nas
eleições presidenciais, foi esse capital, principalmente o estadunidense, que
confiscou, em aliança com segmentos da grande burguesia brasileira, o movimento
da alta classe média e logrou restabelecer a hegemonia política perdida durante
os governos do PT.

Foi
a alta classe média que pegou carona nas manifestações iniciadas pelo Movimento
Passe Livre (MPL) em junho de 2013 e que tomou a iniciativa de organizar a luta
pelo impeachment, enquanto o PSDB dividido hesitava, e foi daquele movimento
que surgiu o movimento neofascista. Cabe lembrar que as mobilizações, a partir
de convocação presidencial, da base social do governo Bolsonaro, em 17 de março,
26 de maio e 30 de junho, pode contar – ora com umas, ora com outras –  com as organizações criadas a partir de junho
de 2013 – MBL, Vem pra Rua, Revoltados on Line e outras.

Dos
protestos de junho de 2013, passando pelo antipetismo explícito de 2015 até
chegar ao neofascismo de 2018 e de 2019, o caminho não é tão tortuoso. O
capital internacional e segmentos da grande burguesia brasileira confiscaram
esse movimento de classe média para, no caso do capital estadunidense e dos
segmentos da grande burguesia brasileira a ele associados, além de ampliar a
internacionalização da economia brasileira, perfilar o Estado brasileiro ao
lado dos Estados Unidos na disputa de hegemonia com a China. Tiveram a sua
tarefa facilitada devido ao fato de a burguesia no seu conjunto convergir para
o programa, que o movimento golpista apresentou desde o início, de retirada dos
direitos dos trabalhadores.

O
grupo neofascista consolidou o seu domínio na equipe governamental. As medidas
contra os direitos democráticos se ampliam – censura, ameaças, prisões
arbitrárias. Não digo que seja o mais provável, mas não está descartado
chegarmos a uma ditadura de tipo fascista no Brasil.

*Armando Boito é professor titular de Ciência Política da Unicamp e autor, entre outros livros, de Reforma e crise política no Brasil: os conflitos de classe nos governos do PT. (Unesp/Unicamp, 2018)

Esse artigo é uma versão atualizada e modificada de um texto publicado no jornal Brasil de Fato em março de 2019.


[i] O neofascismo
brasileiro contou também, já no início do movimento, com o apoio dos
proprietários de terra principalmente das regiões Sul e Centro-Oeste. Mais uma
semelhança com o fascismo italiano. Gramsci, num texto de 1921, chega a falar
na existência de dois fascismos desde o início do movimento: um da pequena
burguesia e outro dos proprietários rurais da Emilia, Toscana, Veneto e Umbria.
Ver “I due fascismi”. In Antonio Gramsci, Sul Fascismo. A cura di Enzo Santarelli.
Roma:
Editori Riuniti. 1973.

[ii] Luiz Filgueiras
e Graça Druck, O governo Bolsonaro, o neofascismo e a resistência democrática. Le Monde Diplomatique Brasil, novembro
de 2018. Acessível em
https://diplomatique.org.br/o-governo-bolsonaro-o-neofascismo-e-a-resistencia-democratica/.

A terra é redonda e o governo Bolsonaro é fascista – 17/10/2019 – 1/1
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